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9 de maio de 2018
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10:30

Apenas cinco famílias da Lanceiros Negros conseguiram receber aluguel social

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Sul 21
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Reunião com famílias que participaram da Ocupação Lanceiros Negros ocorreu no Plenário Ana Terra, na Câmara de Vereadores
(Foto: Ederson Nunes/CMPA)

Luís Eduardo Gomes 

Rosane de Fátima de Lima Carvalho morou na ocupação Lanceiros Negros com a filha, de 12 anos, e viveu os processos de desocupação no prédio da General Câmara esquina com Andrade Neves e, depois, no hotel da rua da Praia. “Na primeira noite que saímos da Ladeira eu dormi na Rodoviária, porque não tinha para onde ir. Depois ficamos na rua atirados, naquele Centro Vida, onde chovia e molhava tudo”, relatou Rosane na reunião da Comissão de Urbanização, Transporte e Habitação (Cuthab) da Câmara Municipal de Porto Alegre, realizada na manhã desta terça-feira (8). A reunião contou com a presença de integrantes do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), representantes da Prefeitura e do Ministério Público Estadual.

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Assim como muitos outros moradores da antiga ocupação, Rosane não quer sair do Centro. “Trabalho aqui e a minha filha estuda aqui”. Ela trabalha como camelô na Rua da Praia e está morando em um apartamento alugado na Júlio de Castilhos, que lhe cobra R$ 550 por mês. Às vezes paga em dia, mas às vezes atrasa dois meses. Tentou alugar o mesmo espaço pelo aluguel social, mas o local é sublocado pelo proprietário e a pessoa que cobra o aluguel teria que regularizar a situação para que ela pudesse receber o benefício. O prédio ainda está em más condições, com risco de interdição. Rosane vive a iminência de um novo despejo. “O homem já falou que provavelmente a partir de janeiro a gente não vai ter mais onde morar”.

André Luís Ferraz, da coordenação municipal do MLB, disse que as famílias ou estão morando na casa de parentes ou estão na rua. Apenas cinco famílias conseguiram acessar o aluguel social, segundo foi confirmado pelo Demhab na própria reunião. “As pessoas não conseguiram passar pela burocracia que tem, porque cada proprietário exige uma coisa diferente. Um vai querer dois meses de aluguel de caução, outro seguro-fiança”, assinalou.

Ele relatou ainda que algumas das famílias que participaram da ocupação acabaram se dispersando, a maioria delas por bairros de periferia, e voltando a enfrentar problemas que muitas já haviam superado nas ocupações, como o envolvimento com drogas. Segundo ele, a maioria até já desistiu do aluguel social, como é o caso de Rosane, que diz já ter até rasgado a documentação que levantou quando tentava acessar o benefício.

Natalielli Almada, também integrante do MLB, disse que, após a reintegração de posse, o compromisso firmado foi que o município iria conceder o aluguel social para 24 das 72 famílias que estavam na ocupação. Porém, destas, apenas cinco conseguiram receber o benefício. Segundo a jovem, os problemas para a efetivação da ajuda estão no valor reduzido, de R$ 500 e nas dificuldades burocráticas.

Representantes dos moradores expuseram demandas na Cuthab. (Foto: Ederson Nunes/CMPA)

Proponente da audiência, a vereadora Fernanda Melchionna fez uma retomada do histórico da ocupação e lembrou que o prédio segue abandonado. Depois da desocupação, um grupo de trabalho chegou a ser criado para buscar o aluguel social e uma tentativa de moradia permanente para as famílias. A reunião desta terça-feira decidiu recompor esse grupo de trabalho para tratar da situação das famílias despejadas. Melchionna disse que está se buscando uma alternativa, que poderia ser o encaminhamento das famílias para imóveis abandonados do Minha Casa Minha Vida, para empreendimentos ainda em construção do programa ou para imóveis abandonados, como é o caso dos ocupados pelo movimento em 2015 e 2017, além da resolução do impasse do aluguel social.

Um relatório feito pela Cuthab em dezembro passado apontou, a partir de relatos de síndicos de condomínios do MCMV, que há dezenas ou até centenas de imóveis construídos no programa já abandonados e que os próprios síndicos cobram da Caixa Econômica que sejam encaminhados para outras famílias. O banco foi convidado, mas não compareceu à audiência na Câmara de Vereadores.

O coordenador jurídico do Demhab, Reginaldo Videgaray, destacou que Porto Alegre tem hoje 48 mil famílias aguardando por moradia definitiva — número de cadastros feitos no programa Minha Casa Minha Vida ainda em 2009 — e que a Prefeitura tem tentado enfrentar o problema habitacional por três eixos, com a regularização fundiária — disse que está sendo estudada a regularização de 90 áreas –, pela produção de novas unidades habitacionais e pela promoção do cooperativismo. Este último foi o caminho que ele sugeriu que a Lanceiros Negros seguisse, a formação de uma cooperativa para negociar por conta própria com a Caixa e sem “depender da Prefeitura”, mas reconheceu que essas soluções seriam de médio e longo prazo.

Quanto à reclamação pela liberação do aluguel social, ele disse que o Demhab desde o início se dispôs a ajudar o movimento, inclusive a tentar a combinação de todos os benefícios em um único aluguel coletivo, que era a intenção do movimento. Contudo, disse não entender porque as outras 19 famílias — foram liberados 24 alugueis sociais nas negociações para desocupação do Hotel Açores — ainda não conseguiram acessar o programa. Ele chegou a ironizar dizendo que era “óbvio” que não iria se conseguir um apartamento no bairro Bela Vista, mas que, se o programa não funcionasse, não seria utilizado por cerca de 800 famílias.

Coordenadora estadual do MLB, Nana Sanches avaliou que a fala de Reginaldo era ofensiva ao sugerir que as famílias não tentavam resolver suas vidas por conta própria, sem depender do Estado. “Nós resolvemos a nossa vida quando entramos num prédio que estava vazio”, disse. Ela argumentou que, apesar do Demhab apontar que há 800 famílias na cidade que conseguiram encontrar imóveis que aceitassem o aluguel social, a maioria das famílias da Lanceiros, que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade, não consegue cumprir as exigências impostas pelos proprietários, como por exemplo o pagamento de caução. “A sensação que a gente tem é que é feito um grande esforço pra fingir que a gente não existe”, disse. “Tem que se parar de tratar como benfeitoria do estado resolver o problema de moradia, é uma obrigação”, disse.

Cláudio Ari Pinheiro de Mello, da Promotoria de Ordem Urbanística, do Ministério Público do Rio Grande do Sul, avaliou que o movimento da Lanceiros Negros foi vitorioso por inaugurar o debate sobre as ocupações em Porto Alegre. Do ponto de vista simbólico, defendeu, a Lanceiros revelou pra Porto Alegre que existe o problema e que as soluções são insuficientes. “É preciso perder o preconceito com os movimentos sociais. As pessoas que vivem em ocupações não existem no Brasil e nunca existiram. O Brasil nunca teve uma oferta consistente de habitação popular. As políticas são insuficientes porque respondem a apenas 2, 3, 4% do problema”, afirmou.

O promotor defendeu que o município deveria fazer um inventário das ocupações que existem hoje na cidade e encontrar maneiras de regularizar a situação das pessoas que estão nesta situação. Para Cláudio Ari Pinheiro de Mello, o modelo do Minha Casa Minha Vida que joga as famílias para locais distantes não é a solução. “Se continuarem respeitando uma lógica de mercado, vão continuar levando as pessoas pra onde não tem cidade”, afirmou. O promotor cobrou políticas emergenciais para atender as pessoas que estão sem casa e lembrou que só o processo de credenciamento de uma cooperativa leva em torno de três anos. “Depois é preciso apresentar um projeto. Se tudo correr bem, levaria cinco anos. Isso não é política de curto prazo”.

A Cuthab propôs quatro encaminhamentos a partir do encontro desta terça-feira: a convocação ainda no mês de maio do Grupo de Trabalho montado na Prefeitura para tratar do caso da Lanceiros com o objetivo de resolver a situação do aluguel social, o encaminhamento de um ofício cobrando que a Caixa Econômica realize um mutirão para o levantamento dos imóveis do MCMV que estão desocupados e que promova o destinamento deles para famílias em situação irregular — incluindo da Lanceiros –, a cobrança para que a Prefeitura faça um inventário das áreas passíveis de regularização fundiária e outro sobre os imóveis abandonados. Além dos dados do cadastro para o MCMV de 2009, a Prefeitura não possui qualquer levantamento sobre o déficit habitacional da cidade.


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