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21 de abril de 2018
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11:10

Moradores da Vila Nazaré denunciam violações em cadastramento para retirada de famílias

Por
Sul 21
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Próxima ao aeroporto há 50 anos, Vila Nazaré deve ter moradores removidos em breve | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Fernanda Canofre

No dia 4 de abril, os moradores da Vila Nazaré, na zona norte de Porto Alegre, receberam com protesto a primeira equipe de uma empresa privada, encarregada de fazer cadastramento das famílias a serem removidas do local. A entrada dos funcionários foi barrada. Para os moradores da Vila, sem destino definido, o processo veio atrapalhar as negociações com o poder público sobre os possíveis locais para onde serão realocados.

Desde 2010, a Vila Nazaré, que existe há mais de 50 anos num terreno irregular, próximo à Avenida Sertório, resiste para permanecer na região. A novela da remoção começou com a chegada da Copa do Mundo a Porto Alegre. A Nazaré e suas mais de duas mil famílias estavam no caminho da ampliação da pista do Aeroporto Internacional Salgado Filho, que fazia parte das obras previstas para o Mundial. No fim, o processo se arrastou e a obra nem chegou a ser iniciada, dando um pouco mais de tempo à comunidade, mesmo depois de um levantamento realizado pela Prefeitura.

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Em janeiro deste ano, porém, quando o aeroporto foi passado para a administração privada, num contrato com a empresa alemã Fraport, o relógio começou a correr mais rápido. Há quatro meses, segundo relatos de moradores ouvidos pela reportagem nesta segunda-feira (16), violência policial e violações têm se tornado rotina na Nazaré. Desde a primeira semana do trabalho de cadastramento realizado pela empresa Itazi, contratada pela Fraport, a situação “piorou muito”.

“Eu vi a polícia, na primeira semana da cadastração (sic), mirando de brincadeira nas crianças. Uma amiga minha que estava ali na frente gritou: não, por favor, não atire. Na primeira semana, eles botaram o terror nessa vila. Aqui a gente não tem medo dos moradores da comunidade, a gente tem medo da polícia que entra atirando”, conta uma moradora, que pede para não ser identificada por medo de represálias.

Após ter a entrada barrada, na primeira tentativa de trabalho na região, a Itazi voltou ao local no dia seguinte acompanhada de duas viaturas da Brigada Militar. O trabalho vem sendo realizado todos os dias, incluindo finais de semana, com a equipe sempre acompanhada pelos mesmos policiais, segundo fontes ouvidas pela reportagem.

Respondendo pela Itazi, a assessoria de imprensa da Fraport, diz que a escolta policial foi uma orientação do Ministério Público e da Prefeitura de Porto Alegre. “A Brigada Militar está lá para acompanhar a equipe, não estão com nenhuma função de exercer papel de polícia”, afirma a representante da empresa.

Área marcada no mapa estaria dentro do local afetado pela ampliação da pista | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Quando o Sul21 esteve no local, dois policiais estavam parados em uma esquina, com uma viatura, enquanto os profissionais da empresa privada entravam em uma residência. O segundo veículo, porém, não estava à vista. Segundo moradores, seria o carro conhecido por “sair batendo”.

“Quando eles entram raivado (sic), eles entram quebrando tudo. Eles usam aquele fardamento e se provalecem”, diz um morador. Os “malhados”, como chamam policiais que usam uniforme do Batalhão de Operações Especiais (BOE) da BM, “são os piores”. “A gente era para se sentir segura quando eles estão aqui. Mas não. Uma mãe segura o filho em casa, por medo que ele saia para rua, porque a polícia está aqui”, complementa uma moradora que está há mais de 20 anos na Vila.

Segundo relatos, em abordagens às mulheres, os policiais usam termos como “vaca” e “vagabunda”. Na semana passada, um jovem teria levado um tiro no joelho, depois de ser encurralado em um beco por dois brigadianos. “Até as pessoas de bem daqui andam com medo, daí acabam correndo quando veem a polícia. E eles atiram”, conta o funcionário de um comércio local. “Aqui o trabalhador tem medo da polícia. O pessoal já conhece o carro deles e se esconde”.

Os moradores contam que arrombamentos de casas sem ordem judicial e ameaças de “ser enxertado” – gíria usada por eles para quando um PM planta drogas como provas contra alguém – também se tornaram mais recorrentes. “Mandado é uma coisa que não existe aqui”, diz uma fonte.

Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da Brigada Militar não se manifestou sobre a atuação dos policiais na região ou denúncias de violência.

O caso também vem sendo acompanhado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e pelo Núcleo de Moradia da Defensoria Pública.

Opções oferecidas não permitem atividades econômicas

Caminhando pela Vila, mercadinhos, bazares e galpões de reciclagem se misturam às casas| Foto: Joana Berwanger/Sul21

Para a maioria dos moradores, a situação ideal seria não sair da Nazaré. As opções oferecidas são escolher entre dois empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida ou indenização pelo imóvel que deixariam ali. As duas escolhas tem “poréns”.

Um dos empreendimentos, o Senhor do Bom Fim, que fica próximo à região atual da Nazaré, tem apenas 364 vagas. As unidades foram ocupadas irregularmente e só tiveram a reintegração de posse realizada em março. Já o segundo local, o loteamento Irmãos Maristas, com cerca de mil vagas, fica a mais de uma hora de distância, próximo ao bairro Timbaúva. Os moradores rejeitam a opção porque dizem que a região seria “muito perigosa”. Apesar de ser uma região de tráfico de drogas, na Nazaré, dizem eles, não há execuções e cenas de violência como em outros pontos da cidade.

Já a indenização é questionada porque levaria em conta apenas os materiais usados na construção das casas, não o valor do terreno. Empresa ou Prefeitura nunca teriam dado uma estimativa do valor a ser pago. O levantamento atual estaria levando em consideração questões como tipo de piso, se o forro da casa é de PVC ou madeira, o tipo de tijolo usado.

“Minha sobrinha tem uma casinha ali que vale R$ 20 mil, com todo o material que ela colocou. Eles não dizem quanto vão pagar, quanto vale. Como a gente vai escolher assim?”, diz uma mulher.

“Como a gente vai responder se quer casa ou indenização, se nem falam ainda para onde a gente vai?”, questiona outra moradora. “Eles nunca falam nada, só cadastram”, diz outra. “É muito ruim, aqui eu me sinto segura, nunca ouvi falar de assalto nem nada. E para onde a gente vai, como vou saber se vai ser assim?”, pergunta uma terceira.

As atividades econômicas que mantêm muitos moradores também ficariam inviabilizadas nos locais que estão sendo oferecidos. Caminhando pela Nazaré, mercadinhos, bazares e galpões de reciclagem estão tão presentes no local quanto as próprias residências. Dentro de condomínios do Minha Casa, Minha Vida, porém, seriam proibidos.

“Estão avaliando só o material, não quanto vale o terreno. Chamando o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes), eles nos qualificam como se fossemos invasores de beira de estrada. Nós somos posseiros”, diz Alex da Silva Dutra, que vive na Vila há 42 anos. Ele preside ainda o Instituto Criança Feliz ali.

Moradores se dizem incomodados com perguntas de questionário

Unidade de Saúde, transferida para o outro lado da Sertório, funciona agora como ponto de reunião da Associação de Moradores | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Os moradores também se dizem incomodados pelas perguntas que estão no questionário realizado pela Itazi. Entre questões sobre renda potencial da residência, condição de emprego, tempo de deslocamento de estudantes até a escola, estão perguntas sobre dependência química, se há alguém “preso ou com medida socioeducativa nos últimos 12 meses” e “adolescente grávida ou com filho”. O documento classifica as famílias como não-vulnerável, vulnerável e médio vulnerável.

A Fraport explica que as perguntas fazem parte de um questionário oficial do DNIT. Como a remoção está ligada ao aeroporto Salgado Filho, o órgão precisa ser consultado para tal. A empresa diz que não quer “abrir” mais informações sobre a Itazi, empresa de construção civil que foi a contratada para trabalhar com o levantamento de indenizações das famílias, mas diz que ela tem “experiência” na área.

Nas últimas semanas, o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) também tem entrado em contato com os moradores, para um levantamento paralelo. Segundo a assessoria do setor, como a população da Nazaré teria “muita rotatividade”, estão chamando as famílias para verificar quem estava no local antes de 2010. Esses seriam os únicos a ter direito a indenização.

Questionado se a Prefeitura estaria levando em consideração a questão de segurança, nos locais para onde as famílias podem ser encaminhadas, a assessoria do Demhab respondeu que “não é de sua competência. Quase todas as regiões da cidade já têm problemas neste sentido (se referindo às zonas de disputa do tráfico)”.

Alex conta que chegou à Nazaré quando tinha 6 anos, há mais de quatro décadas. A mãe comprou ali um terreno, ainda irregular, com a promessa de que até o final daquele ano sairia a documentação pelo poder público. Depois de uma sucessão de partidos no Paço Municipal, a promessa nunca se cumpriu.

Nos anos de preparação para a Copa, ele lembra de ter sido “um horror”. Um dos primeiros alunos da escola da Vila, ele viu a Unidade Básica de Saúde e a própria escola serem transferidas para fora da Nazaré nos últimos anos. Os moradores também relatam que há aviões voando mais baixo pela região, há dias em que a Vila fica sem fornecimento de água ou luz.

“Eles criam problemas, até que fique insustentável a situação, para que o povo daqui queira ir embora”, diz Alex.

Alex mostra o mapa apresentado pela empresa, de casas que teriam que sair | Foto: Joana Berwanger/Sul21

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