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8 de abril de 2018
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16:10

Após remoções em condomínios Minha Casa, Minha Vida, comunidade ocupa prédio no Centro

Por
Sul 21
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Moradores com a faixa feita para identifica a ocupação. que Foto: Guilherme Santos/Sul21

Giovana Fleck

“A gente não ocupa simplesmente porque gosta. A gente ocupa porque não temos condições de comprar uma casa”. Ana Luísa Bandeira da Rosa passou parte da vida em abrigos. Já adulta e com filhos, conseguiu morar um tempo com a irmã para juntar algum dinheiro. Com o que economizou, comprou um pequeno terreno e material para construir uma casa de dois cômodos em uma área de risco; sem luz ou água. Toda vez que chovia, ela e os filhos se revezavam para tentar impedir que a água subisse mais dentro da casa.

Assim como outras 364 famílias, a de Ana Luísa encontrou morada digna na ocupação Senhor do Bom Fim. Estabelecida em um empreendimento Minha Casa, Minha Vida, a ocupação foi formada por famílias de diversas partes de Porto Alegre e região que não tinham onde morar.

Os condomínios foram erguidos como parte de um projeto que implica na retirada de famílias da Vila Nazaré para a ampliação da pista do Aeroporto Salgado Filho. Porém, muitas das famílias que seriam transferidas não quiseram sair da Nazaré. Com os condomínios vazios, parte da população que enfrenta problemas históricos com moradia se organizou no que resultou na Ocupação Senhor do Bom Fim.

Após meses de negociação com a Caixa Econômica Federal e a Prefeitura, a ordem para reintegração de posse foi emitida e, pouco depois, efetivada. Em ação que envolveu 500 agentes da Brigada Militar, as famílias foram removidas dias depois. Algumas foram acolhidas por parentes, outras conseguiram alugar peças pequenas em bairros distantes e outras foram para as ruas.

Da janela de um dos apartamentos, moradores acompanhavam os mais de 500 brigadianos que foram mobilizados para a operação. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Reunidas na Praça da Matriz, algumas mulheres da ocupação, chefes de suas famílias, formaram um grupo que passou a pensar em uma solução para o problema. No total, 15 famílias participaram do encontro no sábado, 10 de março. Elas procuraram Adriano Silva, uma das lideranças da Senhor do Bom Fim para pensar em alternativas.

Pouco tempo antes, caminhando pelo Centro de Porto Alegre, Adriano havia notado a construção alta, grafitada e com as portas e janelas com cadeados na esquina das ruas Jerônimo Coelho e Marechal Floriano. “Isso dá casa”, disse. Ele conversou com alguns amigos e conhecidos da região sobre o prédio e constatou que, de fato, ele estava desocupado há anos. Assim, apresentou a ideia para as famílias. “Eu disse que existia essa possibilidade, mas que não tinha como saber como estava até entrar. Elas me disseram que não tinham outra opção. Uma senhora chegou a dizer que era para pegarmos os seus dois filhos porque ela não podia mais voltar com eles para a rua”, conta.

Teto, água e luz

Após uma série de alagamentos, Ana decidiu aderir à Senhor do Bom Fim. “Quando meu filho entrou no apartamento e viu o banheiro ele chorou. Ele chorou.” Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ana Luísa resume em três fatores o básico de uma “vida calma”: ter teto, água e luz. Antes de integrar a Senhor do Bom Fim, ela morava em uma casa de dois cômodos que construiu para si e seus filhos mais novos em outra ocupação, chamada Progresso . “O sol ia embora e ficávamos sem luz. Banheiro dentro de casa? Eu não tinha nem como cavar uma fossa lá. Além disso, entrava água até os tornozelos no dia de chuva. Era mais uma cabana do que uma casa.”

Após uma série de alagamentos, Ana decidiu aderir à Senhor do Bom Fim. “Quando meu filho entrou no apartamento e viu o banheiro ele chorou.” Ana conta que a vida foi tranquila enquanto esteve lá; ela é cuidadora de idosos e conseguiu trabalho por perto, assim como escola para os filhos. “Trabalho de dia para comer de noite. Com R$ 50, R$ 60 por serviço tu não compra uma casa.”

Com o anúncio da reintegração, ela começou a procurar auxílio da Prefeitura para garantir que não ficaria na rua. “A assistência social só me disse que os abrigos para famílias estavam lotados. Até tinha vaga para mim e para os meus filhos, mas ficaríamos todos separados.”

Antes de ir para a Progresso, antes de ter seus filhos, Ana morou em um abrigo católico. Desesperada, ela procurou o padre que a acolheu quando jovem. “Ele me deixou ficar. Mas disse que ia ser por pouco tempo, porque não podiam descobrir que eu estava lá com as crianças.” Ana Luísa foi uma das mulheres que participou da reunião na Praça da Matriz. “Nós já somos família, entendemos que precisávamos ficar juntas.”

O quarto de Ana cheira a chocolate. Um ovo de páscoa azul foi colocado em destaque em cima de uma das únicas prateleiras do cômodo improvisado. Sacolas e mochilas servem como guarda-roupas até que ela consiga um móvel. As três janelas têm parapeitos largos, onde as crianças acomodaram alguns brinquedos. Um fogão à gás, um microondas e um forno elétrico complementam o ambiente. Fora isso, dois colchões finos de solteiro estão empilhados em um dos cantos, onde uma criança desenha. “Essa é a minha pequena”, aponta Ana para a menina. “Estamos todos juntos, fora as minhas irmãs e minhas filhas mais velhas que também vieram para cá.”

“Não é concreto, mas é uma parede”

Segundo Adriano, o auditório do prédio deverá ser limpo em breve e se transformar em um espaço cultural. Foto: Guilherme Santos/Sul21

No domingo de Grenal, após a reunião da sexta-feira (10), alguns membros da comunidade chamaram um chaveiro. Pagaram R$ 100. Entraram no prédio. “Se vocês acham que agora está ruim, quando entramos não dava para caminhar”, descreve Adriano. Os corredores estavam repletos de entulhos. Pedaços do piso, do teto, da fiação caíram nos últimos quatro anos em que o prédio esteve desocupado. Móveis antigos e materiais de escritório abandonados bloqueavam parte do caminho. O último andar virou residência para as pombas que precisavam de abrigo da chuva. A tubulação de ar tombou do teto em alguns andares. Os banheiros, com azulejos originalmente brancos, estavam marrons.

A ocupação foi rebatizada: Ocupação de Mulheres Nossa Senhora do Bom Fim. “Quando a gente diz que as famílias não tinham para onde ir eram as mulheres e seus filhos – e alguns homens”, define Ana Luísa.

Segundo os novos moradores, o prédio é de propriedade da Prefeitura. A última vez que foi utilizado, que se tenha conhecimento e registros, foi após o incêndio do Mercado Público, quando organizações sociais, como a União das Associações de Moradores de Porto Alegre (Uampa), ficaram desalojadas e passaram a usar o prédio como sede. Chegou a ser cogitado que as ONGs permanecessem administrando o imóvel, porém ele foi a leilão duas vezes sem conseguir um comprador definitivo.

A primeira semana foi de limpeza. “Isso é luxo perto do que estava”, diz Adriano. Segundo ele, a construção estava fechada há tanto tempo que tiveram que comprar máscaras hospitalares para poder respirar lá dentro. Começaram no quinto andar. Os entulhos e os materiais foram levados para o auditório no térreo do prédio. “Tiramos fotos de tudo. Ninguém pode dizer que roubamos nada. Está tudo aqui. Mas é complicado, lixo gera umidade e mofo. Estamos vendo como limpar tudo definitivamente”, explica.

Vinte e sete famílias remanescentes da Senhor do Bom Fim entraram na primeira semana. Em pouco tempo, os cubículos que antes foram escritórios ganharam ares de lar. As salas foram distribuídas com base no tamanho das famílias. “Não é concreto, mas é parede”, define Adriano. Alguns ocupantes fizeram questão de conversar com os moradores dos prédios ao redor e explicar o que estavam fazendo. “Muitos são idosos, e gostaram da ideia. Pelo menos os que conversamos. Disseram que tinham medo pelo fato da área ficar sempre abandonada”, explica Adriano. Regras de convivência foram criadas para que não atrapalhassem uns aos outros e nem os novos vizinhos. 22h30 é o horário máximo de barulho. Há divisão de tarefas para limpeza das áreas comuns e responsáveis pela parte funcional do prédio, como elétrica e hidráulica.

Permanência

Jéssica, em sua casa. “Antes de ocupar na Senhor do Bom Fim, morei na Zona Sul. Era tiroteio quase todos os dias, não tinha como continuar lá.” . Foto: Guilherme Santos/Sul21

Jéssica Rosa de Xavier entrou há pouco mais de uma semana. Ela e o companheiro conseguiram uma casa emprestada, mas não poderiam ficar mais do que alguns meses. “Eu espero que, a partir daqui, a gente consiga um lugar fixo, onde a gente possa ficar junto. Ninguém é bicho aqui dentro.” Ela diz se sentir em família dentro da Nossa Senhora do Bom Fim, mas principalmente segura. “Antes de ocupar na Senhor do Bom Fim, morei na Zona Sul. Era tiroteio quase todos os dias, não tinha como continuar lá.” Hoje, ela estagia perto de onde mora e está há poucos meses de concluir o Ensino Médio.

Katiele Carvalho também morava em uma zona de risco antes de conseguir um apartamento na Senhor do Bom Fim. “As facções estavam em guerra por território. Durante o dia era tiroteio. Eu saí correndo de lá com meus dois filhos.” Depois da reintegração, ela conseguiu alugar um lugar próximo de onde era a ocupação. No entanto, ela se separou do companheiro durante o processo. “Eu estou desempregada. Fui demitida hoje. Era auxiliar de costureira. É… Tá todo mundo sendo demitido. E eu vejo que aqui eu tenho chance de conseguir algo melhor.”

Katiele prepara o chimarrão. No último andar, uma mesa grande foi mantida com algumas cadeiras de escritório. Uma cesta de frutas, algumas garrafas e um pacote de pão foram colocados no centro, sobre uma toalha bordada. Katiele pega a cuia e serve a água quente. “É muito fácil pra quem olha de fora julgar a gente. Eles não sabem da realidade. Dói ouvir que a gente não tem direito. Mas a gente vai levando. Sabemos que não estamos fazendo nada de errado.”

Segundo Adriano, ainda há espaço para mais famílias. “Mais ou menos umas 10 poderiam entrar agora. Mas, dependendo do tamanho, podemos dividir algumas salas.” Além disso, o térreo do prédio conta com um auditório que, assim que limpo, servirá de espaço cultural com áreas específicas para a convivência das crianças.

Na quarta-feira (04), representantes da Nossa Senhora do Bom Fim foram ouvidos pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. Segundo Bruna Rodrigues, do gabinete da deputada estadual Manuela D’Ávila, e que vem acompanhando a ocupação desde o início, a comunidade foi ouvida e se encaminhou um pedido de mediação entre eles e a Prefeitura. No entanto, Bruna ressalta existe uma expectativa grande de que eles possam permanecer no imóvel. “Eles cumprem um papel social que a Prefeitura não conseguiu. Isso é significativo.”

Ana Luísa conta ter escutado de duas assistentes sociais que, por ter residido em uma ocupação, não conseguiria o benefício do aluguel social – programa controverso da Prefeitura de Porto Alegre que garante até R$ 500 para aluguel em imóveis escriturados. “Eu vejo isso como jogo de dinheiro. Eu não tenho como repor esse dinheiro que eles acham que perdem, né.” Como exemplo, ela cita a empresa alemã Fraport, responsável pela expansão do aeroporto que resultará na remoção de famílias da Nazaré. “Eu sou pequena perto disso, tenho me sentido como uma formiguinha no meio disso tudo”, desabafa.

A Prefeitura foi procurada para prestar esclarecimentos. Não houve resposta com informações sobre o prédio ou sobre possíveis negociações com as famílias.

“É muito fácil pra quem olha de fora julgar a gente. Eles não sabem da realidade. Dói ouvir que a gente não tem direito”, diz Katiele. Foto: Guilherme Santos/Sul21

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