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10 de março de 2018
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11:29

Estudante mapeia prédios vazios no centro e sugere transformação em moradia popular

Por
Sul 21
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Loreni da Silva Alves, na frente de sua casa. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Giovana Fleck e Luís Eduardo Gomes

Embaixo do viaduto da Avenida Júlio de Castilhos, o número 588, azul e pequeno, é um ícone curioso, geralmente percebido de relance, por quem passa de carro ou de ônibus por ali. A casinha de madeira é propriedade, com banheiro, cozinha, quarto e dispensa. Loreni da Silva Alves dorme no seu interior. O cachorro nem late. É a hora do descanso.

Loreni é catador. Geralmente, faz a coleta do início da tarde ao início da noite. Ele nasceu em Tenente Portela. Após a morte da mãe, aos seis anos, se mudou para Porto Alegre e passou a viver nas ruas.

“A história dessa casinha é a minha história de rua.” Ao todo, Loreni viveu sem casa por 38 anos. Embaixo de barracas, lonas ou até ao relento – foram mais de três décadas viajando para fora de Porto Alegre como dava, mas sempre voltando. Em 2014, chegou a vender um carrinho de reciclagem para realizar um curso profissionalizante por conta da lei que proíbe a circulação de carrinhos e carroças em Porto Alegre. Quando terminou, ficou sem nada.

Com o tempo, juntou pertences suficientes para construir um novo carrinho que o ajudava a sobreviver recolhendo descartes pela cidade. Televisão, fogão à gás, uma cobertura para proteger da chuva:”tinha tudo. Pena que foi roubado.” Em junho de 2017, coletou madeiras suficientes para algo maior. Comprou pregos, martelo e serrote. “Precisava, né? Pra melhorar um pouco. Morando em barraca tu não pode ter nada; roupa, panela. O pessoal via, esperava eu sair e roubava.”

Completamente instalado embaixo do viaduto, Loreni também mantém sua carroça e divide a moradia com seu cachorro. Foto: Guilherme Santos/Sul21

A situação de Loreni não é única, sequer incomum. De acordo com o Departamento Municipal de Habitação (em pesquisa de 2009), o déficit habitacional de Porto Alegre era estimado em 53 mil unidades. Estimativas mais recentes, realizadas pelo Centro de Desenvolvimento Econômico Social em 2016, indicam que este número chega a 75 mil unidades habitacionais. Por outro lado, segundo o último censo realizado pelo IBGE, há cerca de 40 mil imóveis em estado de abandono em Porto Alegre.

Mesmo em pequenas proporções, a casa conta com cozinha, banheiro e quarto. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Partindo dessas contradições, Adriana Sabadi – graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFRGS – decidiu propor soluções para os problemas de moradia em seu Trabalho de Conclusão de Curso. A ideia surgiu a partir de conversas com membros do Monumenta – programa federal executado pelo Ministério da Cultura do Brasil e patrocinado pelo BID, que consiste na reforma e resgate do patrimônio cultural urbano em todo o Brasil. Adriana inicia sua pesquisa questionando o que é morar no centro da cidade, propondo uma alternativa: ocupar prédios vazios e em desuso de forma criativa, criando um balanço entre residências e pontos comerciais que ajudariam a sustentar a ideia.

Metodologia 

Mapa com a localização dos principais prédios abordados pela pesquisa. Imagem: Adriana Sabadi

Adriana cresceu e viveu em torno da Avenida Júlio de Castilhos até se formar. “Sempre convivi com imóveis abandonados.” A presença de um prédio em particular chamou sua atenção. Ao lado da Igreja Universal, um edifício de mais de dez andares, hoje coberto por lonas, corta a vista da maioria dos prédios mais baixos da região. Segundo Adriana, por anos a construção ficou parada. Recentemente, as obras foram retomadas pelo grupo português Casais.

Nas ruas do entorno, outros prédios vazios são facilmente evidenciados. O trabalho de Adriana consistiu, primeiramente, em um mapeamento visual. Junto com seu orientador, João Farias Rovati, caminhou pelo Centro Histórico em um raio próximo a Júlio de Castilhos.Por observação, Adriana identificou 49 imóveis. “A maioria deles, totalmente vazios”, completa. Sua avaliação se deu percebendo se o prédio se encontrava em situação de abandono ou esparsamente ocupado, com a maior parte dos andares disponíveis para aluguel. A Galeria Malcon, na Rua dos Andradas, por exemplo, tem o térreo ocupado pelo comércio, mas a maioria dos andares superiores estão ociosos.

Em consultas ao Arquivo Público, teve acesso às plantas originais. Porém, como muitos são antigos, os desenhos não são mais precisos. Assim, parte das alterações propostas pela arquiteta foram baseadas em suposições. Adriana também esclarece que não teve acesso a dados referentes ao tempo que os imóveis ficaram vazios.

Políticas públicas

Hoje, Porto Alegre conta com, basicamente, duas alternativas para quem fica sem casa: o acolhimento em abrigos e o aluguel social. O primeiro, pelo caráter provisório em si, não resolve o problema. Já o aluguel social tem sido alvo de críticas nos últimos anos. O programa compreende benefício de cerca de R$ 300 a R$ 600 para famílias que conseguirem locar, por esse montante, um imóvel escriturado. Hoje, o custo médio do aluguel no Centro Histórico é de R$ 21,12 por metro quadrado, segundo levantamento do Sistema Secovi-RS realizado em 2017. Ou seja, a maioria dos beneficiados acaba alugando espaços pequenos nos bairros, especialmente em locais longe do centro da cidade. Além disso, participantes do programa denunciam atrasos constantes no pagamento.

De acordo com o IBGE (2010), o perfil atual do morador do Centro Histórico é majoritariamente feminino e jovem – a faixa entre 20 e 30 anos tem a maior porcentagem de habitantes. Porém, o número médio de habitantes por imóvel é baixo. Conforme a pesquisa de Adriana, entre 30% e 40% dos moradores da região residem sozinhos ou compartilham seu imóvel com apenas uma pessoa. Por outro lado, cresce a presença da população em situação de rua e das ocupações urbanas. “No centro, portanto, há muita casa sem gente e muita gente sem casa”, afirma Adriana.

Mapa que descreve as zonas do Centro de Porto Alegre conforme sua utilização para os frequentadores. Imagem: Adriana Sabadi

A partir desse contexto, Adriana propõe que os prédios pesquisados se transformem em apartamentos que absorvam esse déficit de moradia. Ela aponta para zonas onde há pouca diversidade, as quais, defende, apresentam pouca movimentação e um sentimento de insegurança em determinados horários e dias da semana. “Através da razão entre habitação e comércio, verifica-se que estas zonas são justamente as que têm menos moradias. Ao cruzar estes dados com os dados relativos a edifícios em estado de abandono ou subutilizados, constata-se que parcela expressiva destas edificações está localizada nesta zona de habitação rarefeita”, escreve. Assim, mais do que o acesso à moradia, esta seria uma política de requalificação do centro.

Ela propõe a criação de uma empresa pública dedicada à transformação de imóveis em habitação popular e com capacidade de gerir posteriormente o aluguel social. Adriana destaca que muitos dos imóveis são públicos e que nem todos podem ser convertidos por conta de graves problemas estruturais. Porém, com um cronograma de até 30 anos, ela estipula que a conversão de pelo menos 16 prédios poderia abrigar 1,8 mil pessoas.

É viável?  

Ao ser questionada sobre a viabilidade do projeto, Adriana exemplifica a partir de experiências recentes com o programa Minha Casa, Minha Vida do governo federal. Basicamente, empreendimentos que necessitam de instalação de diversos equipamentos públicos – como saneamento, drenagem, iluminação, pavimentação, entre outros – custam muito mais, e levam muito mais tempo para conclusão, do que trabalhar com edificações existentes. “O que não tem mesmo é interesse político e dos proprietários.”

A transformação de prédios vazios para habitação de interesse social está prevista desde a publicação do Plano Nacional de Habitação de 2009. No entanto, o próprio Plano reconhece que o implementado efetivo é inviável sem um conjunto de medidas estratégicas para a promoção de programas de produção habitacional e de regularização fundiária dos assentamentos urbanos de interesse social.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

Para Adriana, os prédios podem ter uso misto, entre comércio e residências. Enquanto alguns térreos dariam espaço a coworkings e pequenas empresas, os andares superiores seriam destinados a moradia.

“O que eu quis promover é a ideia de que as pessoas podem ter acesso a moradia digna, qualidade de vida e a serem pedestres”, enfatiza. É um projeto que busca a democratização do centro, fazendo com que pessoas como Loreni pudessem contar com uma casa permanente e segura. Adriana reconhece que a pesquisa é inicial, mas afirma que pretende dar continuidade ao projeto em seu mestrado. “São poucas as fontes de esperança para quem precisa de moradia. Se tu para pra olhar o entorno do centro, não tem como não questionar o que que está acontecendo. A ideia foi apresentar algumas alternativas, que, mesmo otimistas, poderiam acontecer se existisse interesse público de verdade.”


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