Cidades|z_Areazero
|
20 de janeiro de 2018
|
15:10

Sem recurso público e após ameaça de repressão, Carnaval de rua garante desfiles na Cidade Baixa

Por
Luís Gomes
[email protected]
Datas do Carnaval de rua de Porto Alegre foram divulgadas nesta semana | Foto: Guilherme Santos

Luís Eduardo Gomes

Na última quarta-feira (17), a Prefeitura de Porto Alegre divulgou o calendário para o Carnaval de rua deste ano, com 10 datas a partir do próximo dia 27 de janeiro, sendo seis na Cidade Baixa, encerrando assim especulações de que o evento pudesse não acontecer no bairro que está na origem do movimento de blocos de rua que vem crescendo nos últimos anos. Esta ameaça surgira na semana anterior, quando a Brigada Militar convocou uma reunião de emergência para solicitar que o Carnaval não fosse realizado na região. A situação acabou sendo resolvida, mas o Carnaval não passará mais pela rua João Alfredo, palco de conflitos recorrentes entre moradores e frequentadores. Há ainda uma discussão pendente sobre quem tem a responsabilidade de arcar com os custos da estrutura necessária para que o evento seja realizado. Os blocos cobram da Prefeitura, que pelo segundo ano consecutivo se mantém irredutível na posição de não investir dinheiro público na festa, ainda que a expectativa seja de que a edição deste ano tenha crescimento do público em relação a 2017, quando cada desfile atraiu entre 5 e 20 mil pessoas.

Antônio Gornatti, coordenador do Escritório de Eventos da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (SMDE), destaca que as reuniões com representantes dos blocos carnavalescos, de associações de moradores e do Ministério Público sobre o Carnaval de rua de 2018 começaram ainda em junho do ano passado. A preocupação inicial dos moradores era com o número de datas, que consideram excessivo, defendendo que os desfiles fossem realizados na Cidade Baixa em apenas dois dias (10 e 13 de fevereiro). Já os blocos reivindicavam que a Prefeitura se responsabilizasse pelos custos estruturais do evento, notadamente a contratação de banheiros químicos, de ambulância, pela segurança e pela limpeza das ruas após o evento.

Para ele, apesar das divergências, conseguiu-se chegar a um bom termo, com os moradores sendo convencidos da realização do Carnaval em seis datas, desde que os desfiles sejam encerrados no máximo às 21h com locais específicos para dispersão, a fim de dificultar que grandes aglomerações se estendam pela Cidade Baixa noite e madrugada adentro, o que é o principal foco de reclamações das associações, inclusive em outras datas do ano.

Ian Angeli, da Liga das Entidades Burlescas da Cidade Baixa – que representa 9 blocos da cidade – e integrante do bloco Turucutá, defende que a responsabilidade pela estrutura é da Prefeitura e que isso está previsto em uma lei municipal de 1991, o que vinha sendo respeitado pelas gestões anteriores.

Ele destaca que o Carnaval de rua da Capital passou por uma explosão a partir de 2014, com o surgimento acelerado de blocos e de desfiles – chegou-se a ter 19 datas na Cidade Baixa. Em 2015, esses custos foram repassados para uma associação de comerciantes do bairro fazer a contratação dos serviços exigidos, como instalação de banheiros químicos, contratação de ambulância, segurança privada, etc. “Foi um caos”, diz Ian, acrescentando que, além de problemas de falta de estrutura, relatados por moradores e foliões, houve denúncias de desvios de recursos. Em 2016, por meio de um processo de dispensa de licitação, a Prefeitura contratou a produtora Austral para organizar o evento, ainda com repasse público. “A produtora então restringiu o Carnaval aos blocos que ela queria e se colocou como dona da Cidade Baixa”, diz Ian. Em 2017, com a troca de governo, a gestão de Nelson Marchezan Júnior (PSDB) cortou os recursos para o Carnaval de rua, assim como fez com o do Porto Seco, e repassou para os blocos a responsabilidade de arcar com as exigências de estrutura. Situação que se repete em 2018.

Ian Angeli, representante da Liga das Entidades Burlescas da Cidade Baixa Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ian argumenta que é uma falácia dizer que o corte é necessário para que os recursos sejam investidos em outras áreas. Segundo ele, os gastos com a limpeza, por exemplo, não somariam R$ 50 mil em todos os dias de desfiles, por exemplo. Para além disso, destaca que, assim como ocorre em outras cidades, onde o Carnaval de rua é mais forte do que em Porto Alegre, a Prefeitura poderia assumir a responsabilidade de organizar o Carnaval e buscar parceiros na iniciativa privada.

“A gente defende que a questão da estrutura é obrigação da Prefeitura. E aí tem três momentos: a Prefeitura faz um chamamento público para saber quais são os blocos que querem sair e quando. Com esse mapa de saídas, ela consegue organizar quais seriam os gastos para dar estrutura, a limpeza, horas extras de funcionários, tudo isso pode ser quantificado. Com essa quantificação, ela faz uma licitação de uma marca para ter a exclusividade sobre o Carnaval, para botar decoração das ruas, tudo isso. Isso é um trabalho. Significa administrar o público”, diz. “Uma Prefeitura que trabalhe sério, poderia conseguir R$ 100 mil. Mas é uma Prefeitura que se apoia na inação para não realizar suas obrigações”.

Por sua vez, Gornatti destaca que a Prefeitura deixou claro que não tinha condições de fazer os investimentos necessários em estrutura e que ficou acordado que a única taxa que os blocos irão pagar será a de limpeza para o DMLU, mas destacou que o valor que cada um terá que dispender ainda será definido, sendo proporcional ao número de foliões que cada entidade apresentou como previsão de público na ficha de inscrição à Prefeitura. “Ocorre uma geração de resíduo extraordinária. Se não tivesse Carnaval, não teria tanto resíduo”, diz Gornatti para justificar a cobrança.

Ela ainda salienta que, para este ano, a Prefeitura optou por tratar cada passagem de bloco como um evento separado, mas não descarta que, no futuro, o Carnaval de rua vá se organizando para que haja patrocínio para todos os blocos, aos moldes do que acontece em outros locais.

Alternativas de financiamento

Apesar da polêmica, a realidade para este ano é que os blocos precisaram encontrar alternativas para arcar com os custos, que, segundo Ian, giram em torno de R$ 10 mil e R$ 12 mil, dependendo do tamanho de cada bloco. Há pelo menos um que conta com um patrocinador próprio. Outros foram contratados pela Austral, que continua a atuar no evento, se responsabilizando por arcar com os custos de estrutura e atrair patrocinadores para os eventos. É o caso do Areal da Baronesa. “Nós entramos só com o trabalho de levar o bloco para a rua”, diz Cleusa. Mas há diversos que são independentes. Para Ian, a falta de repasses acaba colocando sob ameaça blocos menores. “Quais as opções dos blocos? Ou você procura patrocínio ou pede doações, faz eventos, financiamento coletivo”, diz.

O Turucutá optou por realizar um financiamento coletivo. Até a conclusão dessa reportagem, havia arrecadado cerca de R$ 9 mil dos R$ 20 mil que pedia – sendo o valor destinado a cobrir os custos, pagar as recompensas para os apoiadores e a taxa exigida pelo site que hospeda a “vaquinha” online. Como o bloco só irá desfilar no 18 de março, ainda há cerca de 40 dias para a meta ser atingida. Outra entidade que optou pelo financiamento coletivo, o Bloco da Laje, um dos mais populares da Capital, conseguiu arrecadar R$ 38 mil em sua campanha. Ian afirma que a Liga ainda está tentando negociar com a Prefeitura para que ela ajude a financiar os custos ao menos daquelas entidades que não estão conseguindo obter os recursos.

No entanto, Gornatti diz que 95% dos blocos já estão com a situação financeira resolvida e que o volume de recursos exigidos para a infraestrutura “não são inviabilizadores” para as entidades realizarem seus desfiles, com a exceção de poucos blocos menores que a Prefeitura se dispõe a ajudar na busca por parcerias. Ele descartou qualquer possibilidade de investimento direto da Prefeitura no Carnaval.

Ele ainda afirma que os blocos devem assinar, na próxima semana, o termo de cooperação com Ministério Público, moradores e Prefeitura. Também espera-se ainda uma autorização final do MP para que a dispersão dos blocos que passarão pela Cidade Baixa ocorra no Largo Zumbi dos Palmares, visto que há um termo de ajustamento de conduta vigente que impede a realização de eventos desse tipo no local.

Em 2018, Carnaval sairá na Cidade Baixa, mas não na João Alfredo | Foto: Ricardo Giusti/PMPA

Intervenção da Brigada 

O tenente-coronel Eduardo Amorim, comandante do 9º Batalhão de Polícia Militar (BPM), responsável pelo policiamento da região da Cida Baixa, diz que a preocupação da Brigada é para que não haja trancamento das ruas além do horário limite estabelecido pela passagem dos blocos e, consequentemente, que haja a dispersão dos foliões. Segundo ele, em anos anteriores, mesmo depois das 22h, e até no início da madrugada, muitos moradores sequer conseguiam acessar suas casas. “A única coisa que pedimos é que tem que ter uma dispersão”, afirma Amorim.

Cleusa Astigarraga, presidente do Instituto Cultural Integração do Areal da Baronesa do Futuro, do qual o bloco Areal da Baronesa faz parte, destaca que o importante para a entidade é que o desfile fosse realizado na Cidade Baixa, como ocorre desde a sua fundação, há 12 anos. “Chegou-se a uma definição, se é bom ou ruim, nós vamos ver agora, porque é a primeira vez que vai sair na José do Patrocínio. Mas acho que houve uma boa negociação, não houve nenhum atrito, porque o que nós queremos fazer é Carnaval, fazer o povo se divertir e nos divertirmos. Botar o bloco na rue é o importante para nós”, afirma.

Ian critica o fato de que a Brigada Militar interveio na situação depois que todo o cronograma do Carnaval de rua já estava definido, o que foi feito ainda em dezembro. “Em janeiro, a Brigada chama uma reunião de emergência com os blocos dizendo que, para eles, não tem blocos na Cidade Baixa. Fizeram todo o combinado e os órgãos públicos não se falaram. A BM chega depois e quer impor sua decisão”, diz.

O integrante do Turucutá afirma que entende o pedido da BM para que os blocos não passem pela João Alfredo, visto os diversos embates que ocorreram entre moradores e frequentadores de festas no bairro ao longo do ano. Contudo, pondera que o fato de inicialmente a Brigada ter apresentado apenas alternativas de trajeto que não passassem pelo bairro denota que a intenção real das autoridades seria tirar o Carnaval da Cidade Baixa. Diante da repercussão negativa da denuncia, ficou então acordado que serão feitos trajetos alternativos no bairro.

Para Cleusa, as características da Cidade Baixa como um bairro boêmio e como berço do samba na Capital não podem ser perdidas. “Aqui foi fundado o Imperador (Imperadores do Samba), tinha tribos, o bairro tem uma história bem diversificada em função da Carnaval. Então, acho que o Carnaval só morre aqui se todos nós morrêssemos de uma vez só”, diz.

O representante do Escritório de Eventos salienta que houve uma preocupação por parte do órgão em relação ao pedido da BM de que o Carnaval não fosse realizado na Cidade Baixa, mas diz que a situação acabou não virando um problema como pareceu a princípio que se tornaria e que a situação, de acordo com as partes envolvidas, está melhor do que esperava.

Porém para os blocos, a situação ainda não está totalmente apaziguada. Ian destaca que, na reunião, o comando da Brigada disse que, se necessário, irá empregar instrumentos de repressão, como bombas de efeito moral para liberar a rua .”Não consigo imaginar que o Coronel Amorim não tenha outra alternativa de dispersão que não seja o uso de bombas”, critica.

Amorim, por sua vez, diz que a cobrança da Brigada é para que os blocos assumam a responsabilidade pelo encerramento das festas no horário combinado para a dispersão, às 21h. “Os blocos desligam o som às 21h e vão embora, mas a rua fica trancada. Ninguém procura conversar com aquelas pessoas e informar para elas que é importante a questão da desobstrução da ruas”, diz o comandante do 9º BPM. “O posicionamento da BM é bem claro, se a pessoa for lá para curtir, tranquilo. Agora, não se pode trancar uma rua até as 2h da manhã. E as ruas são trancadas por quê? Por causa dos blocos que passam até às 21h”, completa.

Cleusa, porém, questiona esse discurso de que é responsabilidade dos blocos garantir que as ruas serão liberadas após às 21h. “Cada um é dono do seu nariz. Quem é que vai para casa com esse calorão todo em Porto Alegre? A pessoa vai tomar mais uma cerveja, ouvir mais uma música, quem vai impedir de fazer isso? Somos cidadãos e temos direito de ir e vir e frequentar o local que quisermos”, diz.

Blocos piratas

O período oficial de Carnaval de Rua de Porto Alegre compreende os desfiles que ocorrerão entre 27 de janeiro e 18 de março, incluindo cerca de 50 blocos que fazem suas festas na Cidade Baixa, Centro, Santana, Glória, Petrópolis, Bom Jesus, Restinga e outras localidades da cidade. Há ainda os chamados “blocos piratas”. O primeiro deles, Axé que Enfim, toca já neste sábado (20), mas seriam mais de 50 pela cidade, segundo Ian. Em geral, menores, são compostos por “fanfarras” – apenas instrumentos de sopro e percussão – e saem sem horário e local previamente avisados. Com isso, não há o bloqueio do trânsito pela EPTC e não há contratação da estrutura nos moldes acordados com a Prefeitura.

Para Ian, a preocupação em relação a esses blocos é que eles possam ser reprimidos com violência caso a BM seja acionada por moradores incomodados pelo barulho. Gornatti destaca que, em caso de reclamação de moradores e trancamento de vias, os blocos piratas estão sujeitos a multas e a polícia poderá agir como se fosse um dia normal, isto é, atuando para liberar o trânsito com os instrumentos que achar necessários. Contudo, ele mesmo destaca que esses blocos já existem há anos e que, por serem menores, dificilmente há grandes transtornos nas suas passagens. “A gente tem um histórico dos outros carnavais. Não tem nada de diferente do que já aconteceu”, diz.

Confira todas as datas do Carnaval de rua de Porto Alegre:
27 de janeiro 
Panela do Samba – As Batucas (15h às 22h): do Anfiteatro Pôr do Sol à Praça do Canhão, na Orla do Guaíba
28 de janeiro 
Bloco da Laje (9h às 14h): entre as ruas Rio Pardo e 24 de Junho, no Parque Alim Pedro, Zona Norte
3 de fevereiro 
Maria do Bairro (15h às 21h): na rua Sofia Veloso, Cidade Baixa
Galo do Porto (15 às 21h): entre a rua Joaquim Nabuco e o Largo Zumbi dos Palmares, na Cidade Baixa
Do Jeito que tá Vai (15 às 21h): entre a rua Comendador Velos e o Largo Zumbi, na CB
4 de fevereiro
Banda do Saldanha (15h às 22h): do Anfiteatro e rua Fernando Lúcio da Costa, na Orla
Panela do Samba (12h às 21h): entre a Praça Garibaldi e o Largo Zumbi, na CB
10 de fevereiro 
Banda DK (15h às 21h): entre a rua da República e o Largo Zumbi, na CB
13 de fevereiro 
Rua do Perdão (entre às 15h e 21h): na rua da República, na CB
Deixa Falar (entre às 15h e 21h): na rua da República, na CB
17 de fevereiro 
Amigos do Porto (entre às 15h e 21h): entre a Comendador Batista e a rua da República, na CB
Puxa que é Peruca (entre às 15h e 21h): na rua da República, na CB
Areal da Baronesa (entre às 15h e 21h): entre o Largo Zumbi e a Praça Garibaldi, na CB
18 de fevereiro
Floresta Aurora – Kiridão (entre às 15h e 21h): entre a Praça Garibaldi e o Largo Zumbi, na CB
Império da Lã – Skafolia (entre às 15h e 22h): entre o Anfiteatro e a Praça do Canhão, na Orla
24 de fevereiro 
Bloco do Isopor (entre às 15h e 21h): entre a Av. Aureliano F. Pinto e o Anfiteatro, na Orla
Bloco do Ziriguidum (entre às 15h e 21h): No Viaduto Imperatriza Leopoldina, na CB
18 de março
Turucutá (entre às 12h e 20h): entre o Colégio Parobé e a Rótula das Cuias, no Centro

Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora