Cristiano Goulart
Passos acelerados e olhos atentos em meio à escuridão. O relógio marca 23h. O silêncio da rua estreita entre árvores frondosas só é quebrado pelo som dos carros que cruzam a Av. Bento Gonçalves, na zona leste de Porto Alegre, em alta velocidade. A iluminação é precária e não há faixa de pedestres para quem tenta atravessar a via e seguir o caminho em direção às comunidades do bairro Agronomia. Esta é a rotina diária enfrentada pela estudante Daniela Rodrigues, de 17 anos, moradora da Vila Herdeiros. A linha de ônibus que a levava para casa está com o itinerário e a tabela horária alterados há 8 meses. De lá para cá, a jovem, que estuda na região central da Capital gaúcha, precisa pegar dois ônibus para chegar ao bairro onde mora e ainda percorrer quase dois quilômetros a pé para concluir o trajeto para casa.
“Todos os dias, neste horário, eu estou vindo. Daí pego o Agronomia, desço ali na Ufrgs e fico esperando outro pra vir até aqui. Aqui, não tem ensino médio à noite. Pra gente estudar no ensino médio, tem que sair daqui”, lamenta Daniela.
No final da noite do dia 28 de março deste ano, um ônibus da linha 376 Herdeiros/Esmeralda foi incendiado, de forma criminosa, no bairro Agronomia. A partir do dia seguinte ao episódio, os moradores passaram a ser atendidos por um sistema de baldeação, onde o usuário precisa trocar de ônibus para completar o trajeto, seja para ir ao Centro de Porto Alegre ou retornar ao bairro. Outro problema é que, a partir das 22h,os milhares de moradores que residem nas comunidades entre a Av. João de Oliveira Remião e o município de Viamão ficam sem coletivo para retornar para casa. Segundo a Associação de Moradores da Vila Herdeiros, 1,3 mil famílias residem na comunidade.
De acordo com a empresa Sudeste, que pertence ao Consórcio Mobilidade da Área Integrada Sudeste (Mais), após o incêndio do coletivo, a linha 376 passou a operar com 46 horários alimentadores e somente 11 horários até o Centro de Porto Alegre. Às 18h50, sai do Centro o último Herdeiros-Esmeralda com destino direto ao bairro. No início da noite dessa terça-feira (28), 14 passageiros embarcaram no Centro Histórico e 33, ao todo, foram transportadas em direção à Agronomia. Após este horário, os moradores das vilas Herdeiros e Esmeralda precisam buscar outras linhas que cheguem ao Terminal Antônio de Carvalho para completar o trajeto.
Ademir Bernardes, de 70 anos, trabalha como eletricista no Centro de Porto Alegre e conseguiu embarcar no último coletivo. Morador da Vila Herdeiros, o aposentado afirma que a população é a principal prejudicada com as mudanças na linha: “Esta modificação está terrível. Tá prejudicando todos os moradores. (…) Tu chegando na baldeação 8 horas da noite, não tem mais Herdeiros lá pra cima. (…) E não fomos nós que queimamos o ônibus. Nós cuidamos lá”, defende Ademir.
O eletricista desembarcou na Rua Estrada José Santana, na Vila Herdeiros, às 19h39. O mesmo coletivo que deixou o aposentado na parada de casa retornou ao Terminal Antônio de Carvalho para fazer o último trajeto por dentro da Vila Herdeiros. Após as 19h55, a linha 376 deixa de entrar na rua de Ademir e acessa o lado sul do bairro Agronomia pela Rua Dolores Duran. Se tivesse perdido o ônibus e utilizasse o sistema de baldeação após esse horário, por exemplo, o aposentado teria de descer na rua Dolores Duran e caminhar mais 1,1 mil metros para chegar em casa. Após as 21h30, a linha Herdeiros-Esmeralda deixa de circular e a linha Agronomia passa a ser a única opção para quem desce na Rua Dolores Duran e precisa concluir parte do trajeto a pé.
A doméstica Venilda Schmitd, de 60 anos, afirma que, após a baldeação, o tempo de descolamento para ir ao trabalho aumentou em mais de uma hora: “É uma baldeação que não existe. Isso aqui é um transtorno para a nossa vida. A gente leva duas horas pra chegar no serviço. Eu saio, por exemplo, às 60h40 e chego 9h. Antes, eu saía às 7h20 e 8h30 eu já estava com a roupa do trabalho. Agora, eu saio 16h30 do meu serviço e chego 18h30, 19h na minha casa. E aí? O que eu desfruto da minha família? Nada. É só ônibus e gasto. (…) Isso aqui é um crime. É um crime contra o trabalhador. (…) Sem contar que o ônibus que tu pega aqui é uma carreta. Mal cheiro, mal tudo”, reclama Venilda.
Sem a linha Herdeiros-Esmeralda e obrigados a utilizar outro ônibus para chegar em casa, a situação dos moradores fica ainda mais difícil após as 22h. A partir deste horário, as comunidades ficam sem o serviço de transporte público porque a linha Agronomia também deixa de acessar a metade sul do bairro pela Rua Dolores Duran. O itinerário do coletivo é interrompido no Campus do Vale da Ufrgs, quase 5 quilômetros antes do final da linha do ônibus. A única opção de quem precisa voltar para casa é pegar um dos ônibus da Carris até a “Parada 31” da Av. Bento Gonçalves e completar o percurso a pé, como fez a estudante Daniela, descrita no início desta reportagem.
Desempregada, Valquiria Conceição, de 37 anos, faz curso profissionalizante no Centro de Porto Alegre para tentar voltar ao mercado de trabalho. No retorno para casa, acompanha a filha Sabrina, de 18 anos, que embarca no mesmo ônibus Agronomia em direção ao bairro. Sem baldeação após as 22h, ambas seguem direto para o Campus do Vale, onde são obrigadas a descer do coletivo, que deveria seguir viagem por mais 4,5 quilômetros. De carona em um ônibus da Carris, mãe e filha seguem até a Av. Bento Gonçalves, de onde terão de continuar o caminho a pé. Valquiria teme pela segurança da filha adolescente, que terá de voltar para casa sozinha após as 23h: “É horrível, até pelo horário. Por exemplo, agora eu tô fazendo um curso, com essa função, minha filha vai ter que ir e voltar sozinha e não tendo ônibus, entendeu? E então tem todas as pessoas que trabalham e chegam de noite e antes tinha ônibus até 23h35, mas agora não tem. Então tá complicado pra nós”, lamenta Valquiria.
O que dizem o consórcio Mais e a EPTC
“Os estudos que fazem parte do Plano Diretor de Transportes de Porto Alegre preveem para o futuro sistema de transporte coletivo da Capital uma operação integrada em “Estações de Integração” a serem implantados em todas as regiões da Capital. Alguns já existentes como o Terminal Antônio de Carvalho e o Terminal Triângulo. No caso específico em questão, a EPTC apenas antecipou a implantação deste sistema integrado, motivado principalmente por questões de segurança, uma vez que nos últimos 3 anos, 3 veículos foram incendiados naquela região. A questão de segurança ainda é um problema na região, sendo que no último dia 27/10, o ônibus do Consórcio foi atacado por traficantes, que alvejaram várias vezes o veículo quando o motorista, aproveitando um descuido dos bandidos, acelerou e fugiu do local. Toda a cena foi gravada em vídeo e colocada a disposição das autoridades de segurança. Dando continuidade a este processo de implantação e aperfeiçoamento dos Planos previstos para a cidade, já existem propostas do Consórcio em estudo pela EPTC para ampliação deste sistema integrado para outras linhas da região, o que possibilitaria uma melhora significativa nas condições de atendimento para o conjunto de linhas”, diz a nota enviada pela assessoria de imprensa da Associação de Transportadores de Passageiros (ATP) de Porto Alegre.
O diretor-presidente da EPTC, Marcelo Soletti, afirma que “não há uma solução simples para resolver a situação dos ônibus na Herdeiros”, mas destaca que a Prefeitura tem realizado estudos constantes para encontrar uma solução que garanta a manutenção do serviço para os moradores das vilas Herdeiros e Esmeralda. Em duas semanas, a EPTC pretende reavaliar o funcionamento do sistema de baldeação no bairro Agronomia. O número de coletivos que atendem a linha, segundo Soletti, reduziu de 6 para 5 após o último incêndio provocado em um dos ônibus da empresa Sudeste no mês de março.
Descumprimento da tabela horária
Os moradores do bairro Agronomia não são os únicos a sofrerem diariamente com as modificações no transporte público. Nas paradas de ônibus da Capital gaúcha, não faltam passageiros denunciando o descumprimento das tabelas horárias. Levantamento enviado pela Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) ao Sul21 nesta quinta-feira (30) aponta que as reclamações não partem de percepções equivocadas. O Índice de Cumprimento de Viagens (ICV) do consórcio Leste, por exemplo – ao qual pertencem as linhas que servem aos moradores do Agronomia – foi, em média, de 82,7% nos nove primeiros meses de 2017, o que permite dizer que, a cada 10 viagens, 1,8 não foram realizadas. De janeiro a outubro, o consórcio Mais foi multado em R$ 455.103,84 por descumprimento da tabela horária.