Cidades|z_Areazero
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1 de dezembro de 2017
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10:23

Empresas descumprem tabela horária, interrompem itinerários e deixam moradores a pé em Porto Alegre

Por
Sul 21
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Linha que atende a Vila Herdeiros sofreu redução drástica há oito meses | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Cristiano Goulart

Passos acelerados e olhos atentos em meio à escuridão. O relógio marca 23h. O silêncio da rua estreita entre árvores frondosas só é quebrado pelo som dos carros que cruzam a Av. Bento Gonçalves, na zona leste de Porto Alegre, em alta velocidade. A iluminação é precária e não há faixa de pedestres para quem tenta atravessar a via e seguir o caminho em direção às comunidades do bairro Agronomia. Esta é a rotina diária enfrentada pela estudante Daniela Rodrigues, de 17 anos, moradora da Vila Herdeiros. A linha de ônibus que a levava para casa está com o itinerário e a tabela horária alterados há 8 meses. De lá para cá, a jovem, que estuda na região central da Capital gaúcha, precisa pegar dois ônibus para chegar ao bairro onde mora e ainda percorrer quase dois quilômetros a pé para concluir o trajeto para casa.

A estudante Daniela enfrenta uma longa caminhada para retornar pra casa à noite | Foto: Cristiano Goulart/Sul21

“Todos os dias, neste horário, eu estou vindo. Daí pego o Agronomia, desço ali na Ufrgs e fico esperando outro pra vir até aqui. Aqui, não tem ensino médio à noite. Pra gente estudar no ensino médio, tem que sair daqui”, lamenta Daniela.

No final da noite do dia 28 de março deste ano, um ônibus da linha 376 Herdeiros/Esmeralda foi incendiado, de forma criminosa, no bairro Agronomia. A partir do dia seguinte ao episódio, os moradores passaram a ser atendidos por um sistema de baldeação, onde o usuário precisa trocar de ônibus para completar o trajeto, seja para ir ao Centro de Porto Alegre ou retornar ao bairro. Outro problema é que, a partir das 22h,os milhares de moradores que residem nas comunidades entre a Av. João de Oliveira Remião e o município de Viamão ficam sem coletivo para retornar para casa. Segundo a Associação de Moradores da Vila Herdeiros, 1,3 mil famílias residem na comunidade.

De acordo com a empresa Sudeste, que pertence ao Consórcio Mobilidade da Área Integrada Sudeste (Mais), após o incêndio do coletivo, a linha 376 passou a operar com 46 horários alimentadores e somente 11 horários até o Centro de Porto Alegre. Às 18h50, sai do Centro o último Herdeiros-Esmeralda com destino direto ao bairro. No início da noite dessa terça-feira (28), 14 passageiros embarcaram no Centro Histórico e 33, ao todo, foram transportadas em direção à Agronomia. Após este horário, os moradores das vilas Herdeiros e Esmeralda precisam buscar outras linhas que cheguem ao Terminal Antônio de Carvalho para completar o trajeto.

Na terça-feira (28), Ademir Bernardes, de 70 anos, pegou o último ônibus para casa no Centro da Capital | Foto: Cristiano Goulart/Sul21

Ademir Bernardes, de 70 anos, trabalha como eletricista no Centro de Porto Alegre e conseguiu embarcar no último coletivo. Morador da Vila Herdeiros, o aposentado afirma que a população é a principal prejudicada com as mudanças na linha: “Esta modificação está terrível. Tá prejudicando todos os moradores. (…) Tu chegando na baldeação 8 horas da noite, não tem mais Herdeiros lá pra cima. (…) E não fomos nós que queimamos o ônibus. Nós cuidamos lá”, defende Ademir.

O eletricista desembarcou na Rua Estrada José Santana, na Vila Herdeiros, às 19h39. O mesmo coletivo que deixou o aposentado na parada de casa retornou ao Terminal Antônio de Carvalho para fazer o último trajeto por dentro da Vila Herdeiros. Após as 19h55, a linha 376 deixa de entrar na rua de Ademir e acessa o lado sul do bairro Agronomia pela Rua Dolores Duran. Se tivesse perdido o ônibus e utilizasse o sistema de baldeação após esse horário, por exemplo, o aposentado teria de descer na rua Dolores Duran e caminhar mais 1,1 mil metros para chegar em casa. Após as 21h30, a linha Herdeiros-Esmeralda deixa de circular e a linha Agronomia passa a ser a única opção para quem desce na Rua Dolores Duran e precisa concluir parte do trajeto a pé.

Venilda Schmitd conta que o tempo do trajeto aumentou em cerca de uma hora em função da baldeação | Foto: Cristiano Goulart/Sul21

A doméstica Venilda Schmitd, de 60 anos, afirma que, após a baldeação, o tempo de descolamento para ir ao trabalho aumentou em mais de uma hora: “É uma baldeação que não existe. Isso aqui é um transtorno para a nossa vida. A gente leva duas horas pra chegar no serviço. Eu saio, por exemplo, às 60h40 e chego 9h. Antes, eu saía às 7h20 e 8h30 eu já estava com a roupa do trabalho. Agora, eu saio 16h30 do meu serviço e chego 18h30, 19h na minha casa. E aí? O que eu desfruto da minha família? Nada. É só ônibus e gasto. (…) Isso aqui é um crime. É um crime contra o trabalhador. (…) Sem contar que o ônibus que tu pega aqui é uma carreta. Mal cheiro, mal tudo”, reclama Venilda.

Sem a linha Herdeiros-Esmeralda e obrigados a utilizar outro ônibus para chegar em casa, a situação dos moradores fica ainda mais difícil após as 22h. A partir deste horário, as comunidades ficam sem o serviço de transporte público porque a linha Agronomia também deixa de acessar a metade sul do bairro pela Rua Dolores Duran. O itinerário do coletivo é interrompido no Campus do Vale da Ufrgs, quase 5 quilômetros antes do final da linha do ônibus. A única opção de quem precisa voltar para casa é pegar um dos ônibus da Carris até a “Parada 31” da Av. Bento Gonçalves e completar o percurso a pé, como fez a estudante Daniela, descrita no início desta reportagem.

Valquiria teme pela filha que vai voltar pra casa sozinha assim que ela acabar o curso que está fazendo | Foto: Cristiano Goulart/Sul21

Desempregada, Valquiria Conceição, de 37 anos, faz curso profissionalizante no Centro de Porto Alegre para tentar voltar ao mercado de trabalho. No retorno para casa, acompanha a filha Sabrina, de 18 anos, que embarca no mesmo ônibus Agronomia em direção ao bairro. Sem baldeação após as 22h, ambas seguem direto para o Campus do Vale, onde são obrigadas a descer do coletivo, que deveria seguir viagem por mais 4,5 quilômetros. De carona em um ônibus da Carris, mãe e filha seguem até a Av. Bento Gonçalves, de onde terão de continuar o caminho a pé. Valquiria teme pela segurança da filha adolescente, que terá de voltar para casa sozinha após as 23h: “É horrível, até pelo horário. Por exemplo, agora eu tô fazendo um curso, com essa função, minha filha vai ter que ir e voltar sozinha e não tendo ônibus, entendeu? E então tem todas as pessoas que trabalham e chegam de noite e antes tinha ônibus até 23h35, mas agora não tem. Então tá complicado pra nós”, lamenta Valquiria.


O que dizem o consórcio Mais e a EPTC

“Os estudos que fazem parte do Plano Diretor de Transportes de Porto Alegre preveem para o futuro sistema de transporte coletivo da Capital uma operação integrada em “Estações de Integração” a serem implantados em todas as regiões da Capital. Alguns já existentes como o Terminal Antônio de Carvalho e o Terminal Triângulo. No caso específico em questão, a EPTC apenas antecipou a implantação deste sistema integrado, motivado principalmente por questões de segurança, uma vez que nos últimos 3 anos, 3 veículos foram incendiados naquela região. A questão de segurança ainda é um problema na região, sendo que no último dia 27/10, o ônibus do Consórcio foi atacado por traficantes, que alvejaram várias vezes o veículo quando o motorista, aproveitando um descuido dos bandidos, acelerou e fugiu do local. Toda a cena foi gravada em vídeo e colocada a disposição das autoridades de segurança. Dando continuidade a este processo de implantação e aperfeiçoamento dos Planos previstos para a cidade, já existem propostas do Consórcio em estudo pela EPTC para ampliação deste sistema integrado para outras linhas da região, o que possibilitaria uma melhora significativa nas condições de atendimento para o conjunto de linhas”, diz a nota enviada pela assessoria de imprensa da Associação de Transportadores de Passageiros (ATP) de Porto Alegre.

O diretor-presidente da EPTC, Marcelo Soletti, afirma que “não há uma solução simples para resolver a situação dos ônibus na Herdeiros”, mas destaca que a Prefeitura tem realizado estudos constantes para encontrar uma solução que garanta a manutenção do serviço para os moradores das vilas Herdeiros e Esmeralda. Em duas semanas, a EPTC pretende reavaliar o funcionamento do sistema de baldeação no bairro Agronomia. O número de coletivos que atendem a linha, segundo Soletti, reduziu de 6 para 5 após o último incêndio provocado em um dos ônibus da empresa Sudeste no mês de março.

Longas filas nas paradas do centro de Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Descumprimento da tabela horária

Os moradores do bairro Agronomia não são os únicos a sofrerem diariamente com as modificações no transporte público. Nas paradas de ônibus da Capital gaúcha, não faltam passageiros denunciando o descumprimento das tabelas horárias. Levantamento enviado pela Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) ao Sul21 nesta quinta-feira (30) aponta que as reclamações não partem de percepções equivocadas. O Índice de Cumprimento de Viagens (ICV) do consórcio Leste, por exemplo – ao qual pertencem as linhas que servem aos moradores do Agronomia – foi, em média, de 82,7% nos nove primeiros meses de 2017, o que permite dizer que, a cada 10 viagens, 1,8 não foram realizadas. De janeiro a outubro, o consórcio Mais foi multado em R$ 455.103,84 por descumprimento da tabela horária.

 


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