Cidades|z_Areazero
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26 de fevereiro de 2017
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12:51

“É melhor que não tenha Carnaval nesse ano”, afirma um dos carnavalescos mais premiados da Era Porto Seco

Por
Sul 21
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Abandono e péssimas condições do Complexo Cultural Porto Seco. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Giovana Fleck

Calmaria e calor. Chegamos ao Complexo Cultural Porto Seco esperando pela agitação do período próximo ao Carnaval. Nada. A paisagem refletia o esquecimento; grama alta, vidros estilhaçados, lixo e até um gambá em decomposição. Tudo embaixo de um mormaço escaldante que impelia o desconforto.

Uma menina se aproximou da janela do barracão da Bambas da Orgia. Nos apresentamos e entramos no prédio. Abafado e colorido, o primeiro cômodo servia como uma lembrança de apresentações passadas. No galpão, duas estruturas de metal dominavam o espaço – enquanto três homens com aparência cansada subiam e desciam os quatro andares das vigas de metal. Fomos apresentados ao carnavalesco.  

Silvio de Oliveira é o carnavalesco mais premiado da Era Porto Seco. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Há mais de 20 anos, Silvio de Oliveira trabalha no carnaval do Rio Grande do Sul. No Grupo Especial de Porto Alegre, é seu décimo ano. “Um aniversário meio triste”, ele afirma. “O Carnaval sempre teve essa coisa imediata, essa característica de procrastinar e ser concluido no último minuto. Mas eu nunca vi um cenário como o desse ano”.

Em janeiro de 2017, pouco após assumir a Prefeitura, Nelson Marchezan Jr. anunciou o corte do repasse público para a realização do Carnaval. Com a medida, ficou decidido que os desfiles seriam viabilizados com recursos da iniciativa privada. As apresentações, que tradicionalmente ocorrem no final de fevereiro, foram transferidas para os dias 23, 24 e 25 de março. “Tomara que tenhamos a felicidade de fazer um Carnaval razoável”, diz Silvio, “excelente nós já sabemos que vai ser impossível”. Segundo ele, tanto a Bambas quanto outras escolas sem patrocínio – que compõem a maioria – não têm perspectiva de “colocar o desfile na rua”. Durante a conversa de quase quinze minutos, sete vezes ele citou a frase “é o pior ano do Carnaval disparado”.

Silvio é o carnavalesco com mais títulos desde o início da era Porto Seco, em 2004. Ele ressalta a importância como os detalhes diferenciam uma escola campeã das outras. “Não dá tempo pra gente se dedicar a isso nesse ano, o que tira todo o prazer do processo. Estamos trabalhando com pouco dinheiro e sob pressão”, ele afirma, com um tom de voz variando entre o calmo e o irritado. “Não sei se, logo mais, não vamos ter que parar de trabalhar e esperar uma decisão mais concreta”.

Do outro lado, perto da oficina, enquanto finalizava o acabando de adereços dourados, Luma Oliveira murmurou um “tá difícil”. Logo depois, ela, que trabalha no Carnaval de Porto Alegre há cinco anos, completou seu pensamento afirmando que nunca tinha visto o Porto Seco tão parado no início do ano. “Parece que estamos vendo o Carnaval indo embora”, disse.

Luma termina o acabamento do adereço que irá compor um dos carros alegóricos da Bambas da Orgia. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Silvio retoma seu raciocínio afirmando que o Carnaval vinha perdendo sua essência nos últimos anos – o que ele diz ser consequência do comodismo ao ser refém do poder público e de se permitir ser “sucateado” a cada ano.  “No momento em que a Prefeitura se retirou ficamos de mãos amarradas. Nunca pensamos num Plano B. E é esse Plano B que está nos fazendo falta”. Ele faz uma pausa e olha em volta. “Tá complicado […], mas se é tão complicado talvez seja o momento de segurarmos a produção, refletirmos e fazermos um espetáculo melhor no próximo ano. Do jeito que está sendo feito, é melhor que não tenha carnaval”, finaliza.  

Saindo da Bambas, entramos na próxima porta aberta. Do lado de dentro, um dos homens que monta a estrutura dos carros pergunta sobre o dinheiro para comprar cola e outros materiais. Jacira Costa, diretora financeira da Academia de Samba Praiana, abre a carteira, entrega o seu cartão de crédito pessoal e diz a senha discretamente. Nos aproximamos e nos apresentamos como reportagem. “A primeira coisa que vocês têm que saber é que aqui a gente tá trabalhando na base da união”, ela diz. Desde o ano passado, a escala de produção da Praiana é baseada em um formato colaborativo, em que participam desde os diretores até os trabalhadores do barracão.

“Como não temos verba certa, decidimos tirar o dinheiro do nosso bolso”, afirma Jacira. Além disso, a escola optou por utilizar materiais reciclados e aproveitar estruturas de outros anos. Ela aponta para um adereço pendurado no canto oposto ao que conversamos. “Tá vendo aqui ali? É lindo, não é? Foi o carnavalesco que fez a partir de uns CDs. Quem é que precisa daqueles acetatos caríssimos?”.

Há cerca de 15 dias, Jacira realizou uma cirurgia complexa no ombro. Com o braço enfaixado, ela revela que deveria estar em repouso. “Mas jura que eu não vou estar aqui”. Segundo ela, os 137 batuqueiros,  auxiliares, mestres de bateria, baianas e outras alas e destaques sairão, sim, na avenida acompanhados dos dois carros alegóricos. “É muito amor pela camiseta, nada mais”, afirma, “ninguém vai nos tirar o direito de competir”.

Focos de lixo  são comuns na paisagem do Complexo Cultural Porto Seco. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Porém, com mais de 450m de comprimento e 16m de largura, a pista de desfiles se encontra em estado de decadência. No meio do mato alto, um cavalo pasta, despreocupado. Focos de lixo tomam conta da paisagem. “É sério, toma cuidado. “Eles” surgem do nada”, alerta uma das frequentadoras da Prainha ao afirmar que a violência dentro do Complexo chega a ser “terrível”.

Para o presidente da Império da Zona Norte, João Carlos da Silva Martins, o “gago”, o entorno dos barracões representa o resumo do Carnaval de 2017. “Tenho visto muito sofrimento aqui em volta. É triste”. Segundo ele, poucas escolas irão desfilar com enredos inéditos. “A maioria ou vai com o mesmo desfile do ano passado ou nem vai conseguir sair”, disse. 

“É na crise que as pessoas crescem e se superam”, afirmou Marchezan ao anunciar a retirada de verba pública do Carnaval. Ao que Gago discorda: “Tudo bem não ter dinheiro, tudo bem querer trazer a iniciativa privada […] o Carnaval é maior que isso, a gente se adapta. Mas não em dois meses”. Para ele, a falta de tempo gera essa incerteza com a qual ninguém consegue tomar decisões, resultando na inércia aparente no Porto Seco. “Era pra ter 500 pessoas trabalhando aqui. Hoje, se eu vejo 20, já é muito”, conclui. 


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