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17 de dezembro de 2016
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17:17

Conheça a história da primeira mulher a dar nome a uma rua da Capital

Retrato da professora Luciana de Abreu, acervo do Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Retrato da professora Luciana de Abreu, acervo do Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre

Uma das primeiras vezes em que uma mulher subiu em uma tribuna para falar sobre direitos iguais para as mulheres no Brasil aconteceu no fim da tarde do dia 15 de dezembro de 1873, em Porto Alegre. Não há registros oficiais sobre o clima na data, público presente ou como a própria oradora se sentiu antes e depois do feito. As sufragistas de Londres ainda estavam alguns anos distantes de organizarem suas manifestações. Por aqui, já havia Luciana de Abreu. Ela era um retrato das mulheres de sua época e ao mesmo tempo sua antítese.

Quem via a professora, morena, “de bons modos”, “modesta”, mãe de dois filhos, via o exemplo de mulher recatada como se esperava que toda mulher do século XIX fosse. Quando ela subia à tribuna para falar, porém, se transformava. Luciana enfrentou a sociedade de Porto Alegre, frequentando espaços públicos e trabalhando grávida, deixando a barriga aparecer por debaixo do vestido sem constrangimento. A professora chocou a sociedade da época tanto quanto encantou mulheres e homens que a ouviam falar. E hoje, pouca gente sabe que ela existiu.

A história da primeira mulher a discursar publicamente sobre assuntos sociais no Brasil começou na Roda dos Expostos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Ao amanhecer de um dia de julho, alguém deixou na roda de madeira, feita para receber as crianças que as famílias não queriam, uma menina e um bilhete: “Minha comadre, quero que minha afilhada chame-se Lucianna Maria da Silva”. O ano era 1847, filhos de senhores brancos e escravas, que nasciam bastardos, eram maioria entre as crianças deixadas na roda. Nunca se soube quem foram os pais de Luciana, mas a cor da pele morena, deixou uma pista de que essa pode ter sido também a sua origem.

14/12/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Retrato da Luciana de Abreu. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Litografia de Luciana, com a cruz de ouro do Partenon Literário, é uma das únicas imagens dela que ainda existem | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A família do guarda-livros que a adotou, resolveu chamá-la de Luciana. Desde pequena, a menina estudava mais que todas as outras crianças e falava em se tornar escritora. As outras meninas da escola, onde se tornou ajudante da professora aos 12 anos, a apelidaram logo, ironicamente, de “a romancista”.

Em 1867, quando Luciana recém casada ainda pensava como seguir seus estudos, o então Presidente da Província, Homem de Melo apresentava à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul os números da educação no estado. O Rio Grande tinha então 3.849 alunos e 2.007 alunas, 74 professores e 58 professoras, 168 escolas públicas – 100 para homens e 68 para mulheres. O estado precisava de um plano para ampliar o número de professores da sua rede e criou para isso a Escola Normal Porto Alegre, no local onde hoje funciona o Instituto de Educação General Flores da Cunha. Luciana estava entre os primeiros 12 alunos a serem aceitos. E frequentava as aulas grávida da primeira filha.

Depois de formada, sem ter conseguido vaga nas chamadas Cadeiras Públicas, dos professores do Estado, com o segundo filho a caminho e as contas de casa a pagar, criou sua própria escola particular. Atrás do Theatro São Pedro, na região da esquina das ruas Riachuelo e General Câmara, abriu a casa que alguns anos depois, em 1878, se tornaria a aula de maior frequência da capital gaúcha, entre as 26 existentes. Luciana ensinava ali 153 alunos, 22 delas eram mulheres.

Nessa época, ela já era um nome tão conhecido nos meios intelectuais quanto seus contemporâneos, Apolinário Porto Alegre ou Caldre e Fião. Tudo graças a um dia de dezembro do ano de 1873 em que subiu à tribuna do Partenon Literário e falou abertamente sobre a importância da educação e da emancipação da mulher. O Brasil ainda estava a 26 anos de se tornar uma República, a 25 anos de ser o último país das Américas a abolir a escravidão. Luciana de Abreu já defendia o direito da mulher de votar.

 

O Partenon Literário concentrava “a nata da intelectualidade porto-alegrense”, segundo a única biografia já escrita sobre Luciana. Eram liberais e independentistas, que nunca tiveram uma sede própria porque toda vez que arrumavam dinheiro e terreno para fazê-la, acabavam trocando para comprar cartas de alforria para escravos da região.

Dos 138 integrantes do Partenon, cinco eram mulheres. Luciana era uma delas, ao lado de Luísa de Azambuja, Amália Figueiroa, Revocata dos Passos de Melo e sua sobrinha, Revocata Heloísa de Melo, que, em 1883, criaria o primeiro jornal feminista do Rio Grande do Sul: O Corimbo. A palavra é uma referência a um ramo em que todas as flores florescem no mesmo nível.

As ideias de emancipação feminina – quando feminismo ainda não existia como palavra – corriam pelo Brasil ainda antes das mulheres do Partenon. Em jornais, poesias, as aspirações das mulheres deixavam a escrita privada de diários e cartas pessoais e iam ganhando o espaço público. O grande nome da luta pelos direitos das mulheres no século XIX, era outra professora, do Rio Grande do Norte: Nísia Floresta. A primeira mulher a publicar textos sobre o tema no país. Mas nenhuma, segundo historiadores, até Luciana havia subido os degraus de uma tribuna para falar em voz alta e para um público sobre estes direitos.

“Ela é uma personagem muito intrigante. O papel dela de vanguarda foi justamente em abordar a questão que era um tabu na época, que era a igualdade de direitos entre homem e mulher. Em uma época em que a mulher só poderia ir da igreja pra casa e da casa para a igreja”, explica Benedito Saldanha, o único biógrafo de Luciana de Abreu. O livro dele, lançado pela primeira vez em 2006, já teve duas edições. Ambas esgotaram.

Naquele dia 15 de dezembro de 1843, homens e mulheres se sentaram para assistir a mais uma reunião do Partenon Literário de Porto Alegre. O discurso sobre emancipação das mulheres já era algo que o grupo debatia internamente, que estava na hora de vir à tona. Encontraram na professora respeitada na província, com a biografia de uma criança rejeitada que conquistou seu próprio espaço, a voz perfeita para fazê-lo.

E assim, ela começou: “Minhas senhoras, nós temos sido vítimas dos prejuízos das preocupações do século, nós temos sido olhadas como seres à parte na grande obra de regeneração social, quando sem nós impossível seria à humanidade aperfeiçoar-se e progredir; porque nós somos mais”.

Luciana criticou em sua fala o fato de as mulheres terem sido historicamente “condenadas à ignorância”, “privada dos direitos de cidadãos, e reduzidas a escravas dos caprichos políticos de legisladores e egoístas”.

“Nós temos sido caluniadas, dizendo-se que somos incapazes dos grandes acontecimentos, que somos de inteligência fraca, de perspicácia mesquinha; e que não devemos passar de seres caseiros, de meros instrumentos do prazer e das conveniências do homem, quando o nosso ensino tem preparado os mais perfeitos heróis da humanidade; e quando, à testa das nações, quer na cadeira, quer na oficina modesta do operário, temos dado exemplos de assombrar os povos e os séculos!”, bradou na tribuna.

Ao final de sua breve fala, ela pedia “deem-nos educação e instrução: nós faremos o mais”. Luciana defendeu que a própria humanidade havia de ganhar com a emancipação e a instrução das mulheres: “Nós, senhoras, aparentemente os vencidos, somos vencedores”, encerrou.

06/12/2016 - PORTO ALEGRE, RS - A Rua Luciana de Abreu foi a primeira rua de Porto Alegre a receber o nome de uma mulher. |Foto: Maia Rubim/Sul21
Luciana também foi a primeira mulher do Rio Grande do Sul a se tornar nome de rua. Foto: Guilherme Santos/Sul21

O discurso de Luciana foi aplaudido por todos. Um mês depois, durante uma homenagem, o Partenon encenou uma peça onde contava toda sua vida, desde o dia em que uma mulher a deixou na roda dos enjeitados até a carreira como professora. Ela recebeu ainda a honraria máxima do grupo: a cruz de ouro. E um ramalhete de flores.

Porém, mesmo com a fala engajada e identificada com as causas do Partenon, nem Luciana foi unanimidade. “Quando ela surgiu com o discurso dela, eloquente e feminista, teve resistência dentro do Partenon, apesar de ter o pessoal que a incentivou também. Eles eram intelectuais, abolicionistas, republicanos, mas também eram parte daquela sociedade conservadora e machista”, afirma Benedito.

A resistência às mulheres que escreviam por conta própria era lei na época. Alguns anos antes do discurso de Luciana de Abreu, em 1840, outra mulher já havia chocado a mesma sociedade machista e conservadora gaúcha por isso. Para conseguir publicar uma coleção de contos e poesias chamada O ramalhete, Ana Eurídice, teve de pedir autorização ao marido. Os dois já não viviam juntos, mas pela lei nenhuma mulher poderia tomar decisões públicas sem o aval do marido.

Com o tempo, Eurídice conseguiu convencê-lo. “Ela não foi uma feminista, mas teve uma atitude desbravadora para conseguir fazer o livro ser publicado”, analisa Benedito.

Os dotes de Luciana como oradora se perderam no tempo. Assim como boa parte do espólio do Partenon Literário. Poucas publicações do grupo sobreviveram e chegaram aos dias de hoje. Nenhum dos museus do Estado têm imagens do grupo reunido.

Como o próprio Benedito Saldanha conta em outro livro sobre a “mocidade do Partenon”, no capítulo dedicado à Luciana: “poucos discursos se salvaram, pois a maioria era feito de improviso e somente algumas de suas brilhantes conferências ficaram registradas em pequenos e inexpressivos resumos. Apenas três trabalhos seus foram publicados na íntegra nas páginas da Revista Partenon: a preleção acima comentada e mais dois discursos no aniversário da agremiação”.

A memória sobre Luciana também enfraqueceu. Ela, que morreu pouco antes de completar 33 anos por tuberculose, foi a primeira mulher a se tornar nome de uma rua no Rio Grande do Sul, em 1921. A placa com seu nome segue no bairro Moinhos de Vento. Uma escola no bairro Santana também foi batizada em homenagem a ela. Mas como acontece a quase todos os nomes que viram endereços, pouca gente sabe da história por trás dele e que a luta das mulheres por igualdade no Brasil teve um pé em Porto Alegre, em pleno século XIX. E a voz de uma mulher chamada Luciana de Abreu.


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