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6 de agosto de 2016
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11:44

Sofia Veloso: a história da mulher, da rua e de suas casas centenárias

Casas “espelhadas” construídas nos anos 1930 estão presentes na rua | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Casas “espelhadas” construídas nos anos 1930 estão presentes na rua | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Porto Alegre, final do século XIX. O que hoje é conhecido como o bairro Cidade Baixa, em sua maioria, era uma área composta por chácaras semi-rurais, que utilizavam mão-de-obra oriunda de trabalho escravo. Grande parte era território da Baronesa de Gravataí, cuja mansão se localizava onde hoje é o Pão dos Pobres, mas havia outra mulher, também de origem nobre, que possuía terras na região. Nascida em 1856 na própria capital gaúcha, Sofia Veloso possivelmente morava onde hoje é a avenida João Pessoa, e tinha propriedades na área onde fica a rua que leva seu nome.

A pequena rua Sofia Veloso é uma das duas únicas vias da Cidade Baixa que levam nomes de mulheres — a outra é exatamente a Baronesa de Gravataí. Em toda a cidade, são menos de 400 logradouros que homenageiam figuras femininas, num universo de 9.453 ruas. Ter se destacado na época em que viveu é ainda mais impressionante, visto que as mulheres não tinham voz e, durante as primeiras eleições diretas no país, em que Sofia era viva, também não podiam votar. Os que pesquisam a respeito apontam que Sofia possivelmente tenha herdado grande parte de sua propriedade, mas ela própria não teria tido filhos e, provavelmente, nem se casado.

Nascida em 1856, Sofia foi, segundo o Guia Histórico de Porto Alegre, ativista abolicionista e integrante do Centro Abolicionista da cidade, criado em 1883. Seu nome, no entanto, não é citado entre as principais lideranças do movimento, composta principalmente por homens. A participação feminina foi registrada na imprensa da época como relacionada com filantropia e reformas sociais, a partir da visão que se tinha na época do papel das mulheres, relacionado à delicadeza e generosidade.

| Foto: Guilherme Santos/Sul21
Casas históricas foram construídas em terreno pertencente à Sofia Veloso | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Mesmo com a falta de informações sobre Sofia, sabe-se que ela realizou pelo menos um ato de filantropia: a doação de grande parte de sua propriedade para a Sociedade Humanitária Padre Cacique, responsável pelo asilo de mesmo nome. As casas que ainda restam na rua que leva seu nome foram construídas nos anos 1930, no local que havia sido doado por ela, onde antes possivelmente encontrava-se uma chácara. Como a própria Sofia morreu em 1930, estima-se que ela haveria doado o terreno para o asilo e, alguns anos depois, o então prefeito José Montaury mandou construir as casas, para que a renda de aluguéis fosse direcionada para o Padre Cacique. Essa situação mantém-se até os dias de hoje.

As razões que a levaram a doar o terreno para o Asilo, porém, não são conhecidas, segundo Oscar Bitencurt Chagas, morador da Cidade Baixa há 65 anos que realizou pesquisas sobre Sofia. “Não se sabe qual era a relação dela com o asilo, mas imaginamos que ela não tivesse herdeiros”, afirma ele, que atualmente mora em um prédio na esquina da Sofia Veloso com a Lima e Silva. Outra questão que nunca foi descoberta é se ela chegou a morar no local ou se apenas era proprietária do terreno. Oscar afirma que ela morou no local, mas o levantamento histórico feito pelo Asilo Padre Cacique não menciona este fato, e arquitetos que trabalham na rua acreditam que ela nunca tenha vivido no terreno.

A doação realizada por Sofia pouco antes de morrer é uma das principais fontes de receita do Asilo Padre Cacique até hoje. Uma das instituições mais antigas da capital gaúcha, o local existe há 118 anos e se mantém totalmente com o dinheiro de aluguéis — além das casas, há mais dois terrenos — e doações da comunidade. Atendendo 150 idosos de forma gratuita, o Asilo tem grandes gastos principalmente com alimentos e remédios, segundo o assistente de direção Romeu Alberto Guzzo. “São cerca de 110 litros de leite consumidos diariamente aqui”, exemplifica.

| Foto: Guilherme Santos/Sul21
Atualmente, muitas empresas funcionam em esquema de co-working na rua | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Dez casas que fazem parte deste lote doado por Sofia estão registradas na mesma matrícula junto ao poder público e são listadas como Patrimônio Histórico, o que significa que não podem ser demolidas e nem sofrer grandes alterações. Isso, embora preserve o valor arquitetônico dos imóveis, tem se tornado um impasse para o asilo, que precisa dispor de grandes verbas para realizar reparos nas casas históricas. “Estamos recuperando algumas casas nas portas, janelas, que são da época. Estima-se que elas tenham cerca de 100 anos”, afirma Romeu.

Agora, arquitetos trabalham no projeto de desmembramento das casas, para no futuro cogitar a possibilidade de vendê-las. “Elas continuam ajudando o asilo, é uma renda que o asilo tem. Mas a recuperação tem um valor muito alto”, lamenta o funcionário. Dentre as casas, grande parte é “espelhada”, ou seja, são duas construções idênticas lado a lado, das quais algumas são alugadas de forma conjunta e, outras, separadas.

As casas históricas atraíram para a rua diversos escritórios de arquitetura, além de design e artes em geral. Dentre os atuais inquilinos, há várias empresas que trabalham em esquema de co-working, alugando as casas de forma conjunta. Isso, segundo Oscar, é um fenômeno relativamente recente, pois há 15 anos, quando se mudou para o prédio onde vive, a Sofia Veloso era majoritariamente residencial.

| Foto: Guilherme Santos/Sul21
Formato em “L” distingue a rua, mas a torna mais propícia a assaltos | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Os arquitetos também foram atraídos à rua pela sua localização próxima ao Centro e no coração do bairro boêmio, conforme estimam Cristian Illanes e Gustavo Jaquet, sócios da empresa Pulso Arquitetura. “Em 2000, quando viemos para cá, era tudo residencial. Agora, são cerca de 60 arquitetos na rua”, afirma Cristian. “Acho que um ‘puxou’ o outro, em uma época teve um plano de fazer algum tipo de intervenção urbana diferenciada, mas nunca saiu do papel”, completa Jaquet. Há ainda, na Sofia, um restaurante árabe, uma escola de educação infantil, um asilo, uma clínica de Pilates e uma escola de Yoga.

Além das dez casas que estão na mesma matrícula e que ficam localizadas uma ao lado da outra, há outras casas na rua que não são listadas, como é o caso do prédio que fica em uma das curvas da rua em “L”. Em projeto realizado pela Pulso, a casa foi transformada em um pequeno edifício residencial, chamado Na Volta da Esquina, em 2010, e conta com 16 apartamentos duplex. O próprio formato curioso da rua também chama atenção, mas os arquitetos contam que nem sempre foi assim: há alguns anos, havia uma passagem paralela à rua da República, que dava acesso à avenida João Pessoa, mas que posteriormente foi fechada.

Esse desenho em “L”, porém, é apontado como um dos possíveis motivos para a rua ter se tornado insegura, especialmente durante à noite. Oscar é um dos moradores que lamenta que a Sofia tenha se tornado ponto de tráfico de drogas e seja frequentada por usuários. Por ser uma rua que não é passagem para outros logradouros, acaba servindo de estacionamento para quem frequenta o bairro de carro, além de ser local de assaltos.

 Foto: Guilherme Santos/Sul21
Rua faz esquina com República e Lima e Silva | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ao mesmo tempo que repele, a violência foi uma das motivações para o renascimento do carnaval de rua no bairro, que surgiu exatamente na Sofia, em 2007, com o bloco Maria do Bairro. Criado por moradores e trabalhadores da própria rua, o bloco teve, desde o início, o objetivo de revitalizar e torná-la mais ocupada. “Tivemos uma preocupação de mostrar que a rua também pode ser para os moradores. E resgatar o carnaval fez a gente descobrir várias coisas que já tinham existido ali e nas proximidades, todo um histórico”, afirma Zeca Brito, um dos fundadores do Maria do Bairro.

No século XIX, período que abrange a época em que a própria Sofia era viva, surgiu o carnaval de rua na Cidade Baixa, o qual logo se tornou reconhecido e prestigiado. Mais de 100 anos depois, porém, não havia mais essa tradição de blocos de rua em Porto Alegre, o que mudou com a chegada do Maria do Bairro. “Foi um catalisador de uma vontade na cidade de se apropriar da rua e retomar esse carnaval espontâneo. É essa vontade de dar vida à rua e ter uma festa que fosse absolutamente de todos”, resume Zeca.

Quase dez anos depois do surgimento do Maria do Bairro, a programação do carnaval de rua é extensa na Cidade Baixa. Desde 2015, a Prefeitura tem captado e distribuído para os blocos dinheiro de patrocinadores, o que colabora para sua manutenção, mas, conforme Zeca, não é a situação ideal. Ele defende uma política cultural capaz de permitir que os blocos continuem existindo sem depender de apoios privados.

| Foto: Guilherme Santos/Sul21
Casas são alugadas em prol do Asilo Padre Cacique | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Documentos e textos usados como fonte:

– Livro “Porto Alegre e suas escritas: história e memórias da cidade“, de Charles Monteiro

– Livro “Porto Alegre: Guia Histórico”, de Sérgio da Costa Franco, 4a ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006

– Artigo “A invenção branca da liberdade negra: memória social da abolição de Porto Alegre“, de Maria Angélica Zubaran

– Documento “História dos bairros de Porto Alegre“, da Coordenação de Memória Cultural da
Secretaria Municipal de Cultura.


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