Cidades|z_Areazero
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8 de junho de 2016
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12:57

Nova forma de colonização tornou moradia mercadoria e ativo financeiro, diz urbanista

Por
Sul 21
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Auditório da Faculdade de Economia da UFRGS ficou lotado para ouvir palestra da urbanista Raquel Rolnik. "Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Auditório da Faculdade de Economia da UFRGS ficou lotado para ouvir palestra da urbanista Raquel Rolnik. “Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Marco Weissheimer

O mundo vive hoje uma nova forma de colonização caracterizada pelo domínio da produção de espaços urbanos pelos setores imobiliário e financeiro que tornaram a habitação uma mercadoria e um ativo financeiro. Essa colonização tem, ao mesmo tempo, uma dimensão global, reproduzindo-se em diferentes regiões do planeta e uma cor local, ditada pelas circunstâncias sociais e políticas de cada país. Essa é uma das principais teses do novo livro da urbanista Raquel Rolnik, “Guerra dos Lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças” (Boitempo Editorial), escrito a partir das experiências da professora da Universidade de São Paulo (USP) como relatora da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Moradia Adequada, entre 2008 e 2014.

Raquel Rolnik esteve em Porto Alegre nesta terça-feira (7), a convite do Grupo de Pesquisa em Economia Urbana e Direito à Moradia, da Faculdade de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para participar de um debate sobre a “guerra dos lugares” travada hoje nas principais cidades do mundo e abordada em seu livro. À tarde, Rolnik visitou a Ocupação Lanceiros Negros, no centro de Porto Alegre, onde conversou com jornalistas e moradores da ocupação. No início da noite, a urbanista falou sobre o seu mais recente trabalho para um público que lotou o auditório da Faculdade de Economia da UFRGS. O mandato que Rolnik cumpriu como relatora da ONU para o Direito à Moradia transcorreu exatamente no período da grande crise financeira de 2007-2008, causada pelo estouro de uma bolha imobiliária nos Estados Unidos.

Raquel Rolnik relatou que, quando começou o seu mandato como relatora da ONU, começaram a surgir notícias sobre o surgimento de uma séria crise de moradia nos Estados Unidos. Muitas famílias perderam suas casas e foram morar na rua dentro de furgões ou automóveis. A urbanista brasileira solicitou então ao governo norte-americano que a convidasse para uma missão oficial com o objetivo de acompanhar o que estava acontecendo. Após essa viagem, ela cumpriu outra missão, desta vez no Cazaquistão, território que havia pertencido à União Soviética. Qual não foi sua surpresa quando, ao chegar ao Cazaquistão, a primeira coisa que presenciou foi uma manifestação, com greve de fome, de pessoas que tinham colocado toda sua poupança em um projeto habitacional que faliu. Elas ficaram sem moradia e sem sua poupança. A coincidência da ocorrência de problemas habitacionais nos Estados Unidos e no Cazaquistão chamou a atenção de Rolnik que começou a identificar o caráter global de um fenômeno que segue atual.

Após a crise financeiro-imobiliária de 2007-2008, destacou Raquel Rolnik, não houve nenhum recurso público destinado a enfrentar o impacto da crise das moradias sobre a população. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Após a crise financeiro-imobiliária de 2007-2008, destacou Rolnik, não houve nenhum recurso público destinado a enfrentar o impacto da crise das moradias sobre a população. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Pessoas ficaram endividadas e sem casa

Mais tarde, a consultora da ONU testemunharia os efeitos desse modelo na Espanha – onde milhares de pessoas perderam suas casas e ainda ficaram devendo aos bancos, o que deu origem a um forte movimento social contra as execuções – e em Israel, onde ela encontrou, em 2011, um acampamento de sem-teto em uma das ruas centrais de Tel Aviv. Após a crise financeiro-imobiliária de 2007-2008, destacou Raquel Rolnik, não houve nenhum recurso público destinado a enfrentar o impacto da crise das moradias sobre a população, ao contrário do que ocorreu com os bancos e outras instituições financeiras que receberam bilhões de dólares de dinheiro público.

Em países como Estados Unidos, Espanha e Irlanda, assinalou ainda a urbanista, pessoas de baixa renda foram empurradas para o modelo de financiamento imobiliário, em função do desmonte do sistema de políticas habitacionais que possuía instrumentos como aluguel subsidiado e habitação social, entre outros. Esse desmonte foi acompanhado por reformas do sistema financeiro que tornaram possível disponibilizar crédito financeiro para pessoas de baixa renda. Os primeiros passos da transformação da habitação em mercadoria e em ativo financeiro começaram nos anos Reagan e Thatcher. Os Estados Unidos lideraram o processo de transformação da moradia em ativo financeira. Rolnik citou a observação do economista Nouriel Roubini, para quem a moradia tornou-se uma espécie de caixa eletrônico para o sistema financeiro, que passou a usar as hipotecas imobiliárias para captar recursos para financiar a educação privada e o consumo. “A privatização da moradia foi fundamental para isso”, destacou a urbanista.

Um processo imerso na economia política local

Raquel Rolnik chamou a atenção para o fato de que todo esse processo foi marcado também por uma economia política. Citou como exemplo a decisão de Margaret Thatcher que causou um grande estrago na base social dos trabalhistas ingleses ao dar ao oferecer aos trabalhadores a propriedade privada das casas onde moravam com subsídio estatal. Na Espanha, acrescentou, o boom econômico do país foi um boom imobiliário, um processo marcado por muita corrupção. A crise de 2007-2008 implodiu esse modelo jogando milhares de pessoas nas ruas e provocando uma forte reação social. Não é à toa, notou a professora da USP, que a nova prefeita de Barcelona é uma liderança do movimento de luta contra as execuções de hipotecas. “Esse é um processo global que é profundamente imerso na economia política de cada local”, resumiu.

A transformação da moradia em um ativo financeiro global insere-se no processo massivo de financeirização da economia mundial. Essa economia, hoje, observou Rolnik, é atravessado por nuvens de capital financeiro que atravessam o planeta em busca das melhores taxas de rentabilidade. Se tomarmos somente o caso do fundo de investimentos da Apple, exemplificou, veremos que apenas 1% é destinado a investimentos em novos produtos de tecnologia. Cerca de 9% dele é uma nuvem de capital que se move pelo mundo a procura da melhor rentabilidade.

“Se a corrupção fosse o problema, seria fácil resolver”

A urbanista apontou ainda o que considera as duas mentiras fundamentais do mercado, que prometeu dar conta do problema da habitação e destruiu o modelo da habitação como política social. A primeira dessas mentiras foi exposta pela crise financeiro-hipotecária de 2007-2008 que deixou milhares de pessoas endividadas e sem casa. A segunda consistiu em afirmar que o modelo de financeirização da moradia diminuiria o gasto público. “Não diminuiu nada, pois há um grande volume de recursos públicos subsidiando o sistema imobiliário-financeiro. Programas como o Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, são 100% subsidiados com dinheiro público”.  No caso brasileiro, observou Rolnik, o complexo imobiliário-financeiro tem como ator central, além do Estado, as grandes empreiteiras que constroem as moradias com o suporte de fundos públicos. “Se a corrupção fosse o problema, seria fácil resolver. O problema é que o destino das nossas cidades está sendo decidido por esse complexo, tornou-se refém dele”.

"O problema é que o destino das nossas cidades está sendo decidido por esse complexo imobiliário-financeiro, tornou-se refém dele”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“O problema é que o destino das nossas cidades está sendo decidido por esse complexo imobiliário-financeiro, tornou-se refém dele”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Esse modelo de construção em massa de moradias pelo mercado, em geral localizadas nas periferias dos centros urbanos, teve o Chile como principal laboratório, durante a ditadura Pinochet, observou Rolnik. Por meio dele, o Estado passou a subsidiar a compra de moradia para pessoas de baixa renda, produzindo uma enorme concentração de conjuntos habitacionais, sem uma estrutura de cidade em volta. Nas últimas décadas, em países como Brasil, África do Sul e Índia, acrescentou, houve um processo de remoção estratégica de assentamentos humanos que estavam na frente de expansão do complexo imobiliário-financeiro. “Os espaços construídos por esse complexo, como o Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, têm todos a mesma forma, seja qual for a parte do mundo, com torres corporativas e shopping centers. Ao presenciar essa homogeneidade arquitetônica em diversas cidades do mundo, Rolnik brincou: estaríamos diante de uma epidemia global de falta de criatividade de arquitetos e urbanistas? Não, nada disso, respondeu. É o mesmo produto mesmo, uma espécie de buffet associado a grandes fundos de investimentos globais.

O setor imobiliário tem dois grandes atrativos para o capital financeiro, assinalou a urbanista. O primeiro deles está relacionado ao tempo. Um determinado espaço pode não ter retorno no presente mais imediato, mas renderá no futuro. O segundo está ligado à ideia disseminada na sociedade que a compra de um imóvel é um negócio seguro que fica para toda a vida.

Raquel Rolnik destacou, por fim, que a hegemonia desse modelo imobiliário-financeiro vem enfrentando crescentes resistências no mundo inteiro. “Esse modelo está morto, mas nós estamos vivendo dentro do cadáver. Há uma guerra de lugares em curso no planeta, uma luta de resistência contra a colonização. E o principal front dessa luta é urbano e se dá nas cidades onde vivemos”.


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