Jaqueline Silveira*
O inverno gaúcho não chegou oficialmente pelo calendário, mas o frio se adiantou e vem sendo constante no Rio Grande do Sul já há alguns dias. Em certos cantos do Estado, inclusive, os termômetros já registraram índices negativos. Na Capital, o inverno castiga principalmente a população em situação de rua que dorme ao relento e conta, muitas vezes, só com jornais e papelões para amenizar o frio. Mas, pelo menos uma vez por semana, um prato de comida quente e agasalhos distribuídos por um grupo de pessoas amenizam o sofrimento na região central.
A última quarta-feira (8) foi um desses dias de distribuição de alimentos a moradores que se abrigam debaixo do viaduto da Avenida Borges de Medeiros e também na Praça da Matriz, no centro de Porto Alegre, lugar de concentração de muitas pessoas que dormem ao relento. A entrega é feita com o suporte de três a quatro carros e o grupo, de 15 a 20 pessoas, divide-se para passar pelos locais e fazer a distribuição da comida e dos agasalhos.
Assim que os veículos identificados com adesivos do projeto estacionaram, rapidamente uma fila se formou para receber a alimentação. Na ocasião, o cardápio era um carreteiro quente. “Isso significa um monte”, resumiu Marcelo Silva, sobre o prato de comida que segurava nas mãos. O vício em cocaína o afastou dos familiares e levou às ruas. Há um ano, Marcelo diz que deixou as drogas e trabalha num depósito de reciclagem, mas o dinheiro que ganha não é suficiente para se manter. Às vezes, conta ele, dorme no albergue municipal, porém, quando chega e o abrigo já está lotado, passa a noite em uma pensão.
A exemplo de Marcelo, há outros com emprego, inclusive na Prefeitura, como os trabalhadores que fazem a coleta do lixo da cidade, que vão pegar a comida doada, em virtude de o salário não ser suficiente para todas as refeições. Desempregada, Indianara Soares mora com o marido e três cachorros em uma barraca, no Parque da Harmonia, e também entrou na fila para pegar o carreteiro. “Acho legal”, comenta ela, sobre a solidariedade do grupo que oferece a alimentação.
Tanto Indianara quanto Marcelo entraram também na fila para receber agasalhos. Moletons, meias, calças foram algumas das peças distribuídas para amenizar o frio daqueles que passam a noite sob viadutos ou em condições de moradia não muito superiores. Um deles chegou atrasado e já não havia mais agasalho para ser doado. “A hora que tiver, guarda um tenizinho para eu trabalhar”, pediu ao grupo.
“É muito satisfatório ver o sorriso no rosto deles ao receberem um blusão quente, um cobertor”, afirma Silvani Tarasconi, uma das voluntárias que participou da distribuição da comida e de agasalhos na noite de quarta, lembrando de um dia em que um “senhor de bermuda” chegou com frio para pegar o agasalho.
Para manter o projeto social, enfatiza a jornalista Juliana Campani, uma das idealizadoras da iniciativa, conta com doações de alimentos não perecíveis e também há uma conta para o depósito de dinheiro, que é usado para comprar o gás, a carne e as embalagens para servir a alimentação. Em média, são oferecidas 200 refeições por semana com gasto de cerca de R$ 150. No início, segundo ela, era servida só a sopa, depois, o grupo passou a fazer “comida de mais sustância”, como carreteiro, feijão e massa.
Ajuda das redes sociais
O projeto tem uma página no Facebook com as informações de como fazer as doações e também se juntar ao coletivo. Foi, inclusive, pelas redes sociais que a iniciativa ganhou novos voluntários. “Na verdade, juntei amigos no meu Facebook e, depois, criei uma página e perguntei quem estava a fim de fazer (o sopão), as pessoas foram demonstrando interesse, o grupo foi aumentando. Somos um coletivo”, relembra Juliana sobre a adesão ao projeto, a partir da divulgação nas redes sociais. “O nosso grupo está crescendo muito”, completa Silvani.
A alimentação que chega aos moradores de rua concentrados no Centro é distribuída entre 20h30 e 21h, mas começa a ser preparada pelo grupo bem antes, por volta das 17h30. Uma empresa cedeu o espaço, no Bairro Floresta, para eles cozinharem. Normalmente, a distribuição da comida e de agasalhos é registrada e divulgada na rede social numa espécie de prestação de contas para quem ajuda com doações e, ao mesmo tempo, uma forma de atrair novos ativistas. “Eles são extremamente gratos e educados, é bem legal fazer essa troca, ajuda a quebrar esses paradigmas e esses preconceitos que a gente carrega. Eles são invisíveis”, avalia Juliana, sobre o contato com a população em situação de de rua.
Manifestação em cartazes
Numa das ações mais recentes, o grupo fez uma atividade diferente com os moradores da rua: levaram cartazes e pediram que eles escrevessem frases sobre assuntos que gostariam que a sociedade tomasse conhecimento. A ideia, explica a jornalista, além de ajudá-los com agasalhos e alimentos, é fazer “uma mediação”, incentivando-os a falarem. As manifestações expressas nos cartazes revelaram desde sentimentos, como saudade de familiares, a angústia e as dificuldades de viver na rua, passando pelo envolvimento com as drogas, até opiniões políticas. “A rua é horrível”, “Eu não quero a volta da ditadura, eu quero uma democracia forte”, “Pessoal! Menos preconceito, mais humanidade” e “Todos nós somos escravos das drogas, desculpe sociedade” foram algumas das frases escritas pela população em situação de rua. “Eles sentem falta desse contato”, comenta Juliana.
O projeto social do sopão completa um ano neste mês e a data será comemorada no dia 15 em ritmo de festa junina com o “arraial solidário”, em um espaço cedido por uma cervejaria. Quem doar dois quilos de alimentos não perecíveis ganha um chope artesanal e os recursos arrecadados com a venda das comidas serão revertidas para o projeto. Mas, independentemente da festa, as doações de agasalhos e de alimentos podem ser feitas a qualquer momento, até porque o inverno só começa oficialmente no dia 21 de junho e promete muito frio pela frente. Mais informações na página do sopão ou pelo e-mail [email protected].
Prefeitura amplia vagas em albergues
Na tarde de sexta-feira (10), a prefeitura da Capital anunciou a ampliação das vagas nos abrigos municipais para a população em situação de rua devido às baixas temperaturas dos últimos dias. A Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) aumentou, até 30 de setembro, em 90 vagas nos três abrigos do município, dois deles mantidos por meio de convênio.
Os albergues funcionam de segunda a domingo, inclusive feriados, das 19h às 7h, e oferecem dormitórios, cuidados de higiene e alimentação e encaminhamentos à rede de saúde.