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4 de outubro de 2015
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16:17

Especulação imobiliária e propriedades divididas: polêmicas marcam retorno da área rural da Capital

Por
Sul 21
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Região sul e extremosul da Capial são conhecidas pela preservação da natureza e beleza| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Região sul e extremo sul da Capital são conhecidas pela preservação da natureza e beleza| Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Jaqueline Silveira

Considerado o cinturão verde de Porto Alegre, a região sul e extremo sul são um encanto para os olhos e um sopro de ar puro para os pulmões. Cercada por mata nativa, morros e arroios, parte da área de 17 mil hectares será transformada em zona rural. Em 14 de setembro, a Câmara de Vereadores da Capital aprovou, por unanimidade, o retorno da zona rural. O próximo passo será a confirmação do projeto em lei pelo prefeito José Fortunati, o que deverá ocorrer em solenidade a ser marcada no próprio meio rural.

Festejada pela maioria e olhada com incerteza por uma minoria, a zona rural, no entanto, corresponderá a 4 mil hectares, apenas 8,28% da extensão total de 17 mil hectares definidas no antigo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA), em vigor até 1999. A área delimitada recentemente está localizada no extremo sul da Capital e abrange parcialmente localidades como de São Caetano, Lami (exceto a praia), Lageado, Belém Novo, Extrema e Canta Galo.

Extinta em 1999 com a instituição do novo Plano Diretor de Desenvolvimento, a zona rural passou a ser denominada “rururbana”. A extinção, porém, passou a dificultar o acesso dos agricultores a linhas de crédito e o licenciamento de empreendimentos essencialmente do meio rural, motivando reivindicações pelo retorno da área. “O rururbano era uma forma de uma capital se administrar melhor”, avaliou à época Maryângela Fernandes Ferreira, líder comunitária da região e que participou das discussões para mudar o Plano Diretor.

A área aprovada compreende a quatro mil dos 17 mil consierados como zona rural da Capital
A área (em amarelo) aprovada compreende a quatro mil dos 17 mil considerados como zona rural da Capital |Foto: Felipe Castilhos/Sul21

O traçado aprovado como rural no mês de setembro corresponde à mesma área estabelecida no PDDUA como de produção primária. Essa região é utilizada, principalmente, para a plantação de hortaliças e de orgânicos, além da pecuária. Os quatro mil hectares não contemplam, entretanto, os 500 produtores existentes no local – somente 300 estão incluídos.

“Evidentemente que nos deixa satisfeitos, nós lutávamos há 20 anos pela zona rural de direito. É uma satisfação estranha”, comenta o presidente do Sindicato Rural de Porto Alegre, Cleber Vieira, reconhecendo que a área delimitada não é a ideal. Ele afirma que, apesar de nem todos os produtores estarem contemplados no novo traçado, eles terão seus direitos garantidos, como, por exemplo, os plantadores de arroz.

Até o final de 2016, conforme Vieira, a prefeitura deverá mapear a área rural e verificar os problemas a serem resolvidos. Pelo traçado, alguns agricultores, apesar das atividades rurais, ficaram no meio urbano e outros, em propriedades divididas entre as duas áreas. “Não é uma coisa de terrorismo, momentaneamente era o que foi possível incluir”, afirma o presidente do Sindicato Rural. “É melhor ter isso do que não ter nada”, avalia ele.

Com o novo traçado, o produtor Luiz ficou os 51 hecatares da propriedade divididos| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Com a nova demarcação, o produtor Luiz Carlos Bohel Filho ficou com os 51 hectares da propriedade divididos| Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Um pé na zona rural e outro na urbana

Morador da zona rural há décadas, o produtor Luiz Carlos Boehl Filho foi um dos que ficou com um pé na zona urbana e outro na rural. Isso porque aproximadamente 19 dos 51 hectares da propriedade, ocupada com fruticultura e agropecuária e com atividade de turismo rural, ficaram no novo traçado. “Eu achei bom a volta da zona rural, mas com essas ressalvas. Tem esse tipo de problema, é uma coisa que não dá para entender, mas tenho esperança que isso mude”, destaca o proprietário, junto com o irmão, da Granja Lia, localizada nas localidades de Passo da Taquara e São Caetano. Ele conta que sempre pagou Imposto Territorial Rural (ITR).

Propriedade ficou com aproxidamente 19 dos 51 hectares em área rural e restante, na urbana | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Propriedade ficou com aproximadamente 19 dos 51 hectares em área rural e o restante, na urbana | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Já Maryângela, que mora há 33 anos na localidade de Chapéu do Sol, ficou fora da área delimitada como rural, embora localizada nos arredores de outros lugares contemplados na nova demarcação. Na propriedade de um hectare, ela tem uma agroindústria de pastas e cultiva os produtos usados no empreendimento, como cenoura e berinjela. Ela diz que apoia a zona rural, contudo critica a área delimitada que não contempla boa parte dos produtores e nem as reservas.

“É muita politicagem. Desmancham uma coisa e fazem outra”, alfineta a produtora, referindo-se ao tempo de discussão e reuniões com a comunidade sobre alterações anteriores feitas no Plano Diretor e as consequências para a região da transformação em rururbana. “É fictícia (área rural), antes de ser implantada já estão tomando um pedaço”, acrescenta ela, sobre um projeto que está na Câmara para reverter uma parte em urbana.

Dona de uma agroindústria, Maryângela Ferreira ficou excluída do meio rural. Para ela, o novo traçado é fictício| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Dona de uma agroindústria, Maryângela Ferreira ficou excluída do meio rural. Para ela, o novo traçado é fictício| Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Empreendimentos fora do meio rural

Criadouros de porcos e ovelhas e aviários, além da fruticultura, produzida especialmente na Vila Nova, ficaram de fora do meio rural. “A Vila Nova não tinha como ser rural, infelizmente, mas tem de encontrar uma forma de dar um tratamento aos produtores”, avalia Felipe Viana, conselheiro do Conselho Municipal do Meio Ambiente há mais de seis anos e integrante do Instituto Econsciência. Hoje, a vila abriga mais núcleos urbanos do que rurais.

Conhecida pela fruticultura, a Vila Nova não está contemplada na área rural| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Conhecida pela fruticultura, a Vila Nova não está contemplada na área rural| Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Relator da proposta na Câmara de Vereadores, engenheiro Carlos Comassetto (PT)  propôs algumas alterações ao projeto original para uma adequação à realidade do meio rural, como as emendas para excluir do novo traçado as comunidades do Chapéu do Sol e Jardim Floresta – que constituem Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS) -, Lageado, Boa Vista e Extrema. Os núcleos urbanos dessas localidades somam aproximadamente 33 mil moradores. Também, por meio de emenda, ficou excluída uma faixa ao longo da Avenida do Lami que abrange áreas industriais, comerciais e residenciais. Mas essas modificações dependem, ainda, da confirmação do prefeito Fortunati, que ainda não transformou o projeto em lei.

O novo traçado ficou picoteado. A área com jegues está incluída como rural. Já o Morro São Pedro, aos fundos, está fora| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
O novo traçado ficou picotado. A área com jegues está incluída como rural. Já o Morro São Pedro, aos fundos, está fora| Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Bens naturais fora do traçado

Ambientalista, Felipe Viana reclama de área rural ser pequena e não contemplar os bens naturais| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Ambientalista, Felipe Viana reclama de área rural ser pequena e não contemplar os bens naturais, como arroios| Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Do ponto de vista dos ambientalistas, a maior queixa é pelo fato de os bens naturais terem sido excluídos do traçado rural. No extremo sul da Capital, fica, por exemplo, o Morro São Pedro, que abriga animais raros e ameaçadas de extinção, como o mão-pelada, o graxaim e o bugio-ruivo, e a Reserva do Lami, com cerca de 300 espécies vegetais nativas e mais de 200 de aves nativas. “A minha crítica é que a área rural tinha de ser muito maior, não levou em conta a paisagem rural. A área rural não é o cinturão verde, os morros ficaram de fora, os arroios, as nascentes”, argumenta Viana.

Durante a discussão do projeto no Legislativo,  Comassetto propôs duas emendas que acabaram rejeitadas em relação ao meio ambiente. Uma delas concedia prazo de cinco anos para a redução gradativa até a proibição do uso de agrotóxicos. A outra proposta proibia a produção de alimentos transgênicos.

Construtoras X ambientalistas

O  retorno da área rural envolveu uma disputa entre produtores ecológicos e representantes de construtoras. Ambientalistas queriam frear a ocupação urbana e preservar os bens naturais, enquanto que as construtoras projetam expandir conjuntos de prédios pela região. No extremo sul, foram erguidos tanto loteamentos populares quanto condomínios de luxo.

Região possui condomínios de luxo, como em Belém Novo| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Região possui condomínios de luxo, como em Belém Novo| Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Com a palavra, o Executivo

Arquiteta da prefeitura que trabalhou no grupo que delimitou o território rural, Andrea Oberrather diz que na época do estudo para elaboração do projeto foi proposto um levantamento atualizado da região, no entanto, “o nosso gestor” avaliou que não teria condições para fazer essa análise. Então, segundo ela, foi definido que seria demarcado como área rural o traçado já estabelecido no Plano Diretor como de produção primária. “Foi um primeiro passo, não é o último. Não é um guarda-chuva para toda a cidade, foi o possível para as condições que se apresentaram”, enfatiza a arquiteta, sobre a alternativa encontrada na época para não penalizar os produtores.

Andrea comenta que, após a oficialização do retorno da área rural, caberá à prefeitura se “debruçar” no território e fazer “uma análise criteriosa e um detalhamento” para fazer os ajustes necessários em relação às situações apresentadas. Sobre os bens naturais, apesar de considerar que devem ser discutidos numa análise posterior pelo Executivo, a arquiteta ressalta que há uma legislação específica que protege as reservas.

O engenheiro Carlos Comassetto (PT), que é da zona sul, avalia que boa parte dos

Relator do projeto, engenheiro Comassettodisseque prdutores que ficaram fora da área não deverão ser prejudicados| Foto: Desirée Ferreira/CMPA
Relator do projeto, Comassetto diz que produtores que ficaram fora da área não serão prejudicados| Foto: Desirée Ferreira/CMPA

produtores que ficou de fora do novo traçado não serão prejudicados, uma vez que o Plano Diretor os protege. Isso porque a produção primária estabelecida na legislação contempla atividades vegetal, animal e mineral. Para os que ficaram na zona rural, segundo o parlamentar, o que muda é que passarão a pagar ITR. Os outros permanecerão como “rururbano”.  “Estou convencido que o nosso Plano Diretor é bom, o que falta é uma gestão com profundidade”, observa Comassetto.

Fazenda a um passo de virar condomínio de luxo

Ao mesmo tempo em que tramitava no Legislativo o projeto de retorno da área rural, a prefeitura mandou, em março de 2015, à Câmara uma nova proposta que mexe, justamente, com o traçado recentemente definido. Trata-se de mudança no Plano Diretor para reverter parte da zona rural em urbana com o fim de construir condomínios de luxo com mais de duas mil casas na Fazenda Aras do Arado, além de um polo comercial, localizada entre Belém Novo e Lami. Parte dos 426 hectares pertence à área recém aprovada como rural, próxima à Estrada do Lami. Com estudo de impacto ambiental e pareceres das comissões do Legislativo, o projeto deverá ser votado na próxima segunda-feira (5).

A arquiteta Andrea Oberrather diz que não acompanhou esse projeto, mas que a prefeitura terá que providenciar ajustes, uma vez que parte está no traçado já delimitado como zona rural. Entretanto, ela afirma que é possível fazer alterações para a construção dos condomínios, pois o Plano Diretor permite, desde que cumpridas todas as exigências técnicas da legislação.

 

Com 426 hectares, fazenda deverá abrigar condomínios de luxo. Parte da área é considerada rura |Foto: Reprodução youtube
Com 426 hectares, fazenda deverá abrigar condomínios de luxo. Parte da área é considerada rural |Foto: Reprodução/YouTtube

O ambientalista Felipe Viana pontua que o problema é a brecha prevista no Plano Diretor, que prevê modificar a lei em caso de “projeto especial”, como se enquadra a situação do Aras do Arado. Ele questiona, ainda, que as medidas compensatórias previstas não são suficientes para garantir a preservação da área diante da construção de condomínios.

O relator do projeto da zona rural avalia que “é uma contradição” do governo, ao propor alterações em parte de uma área que acaba de ser aprovada como rural. “Não se trata de ser a favor ou contra, mas, sim, de saber que benefício (o empreendimento) poderá trazer para a cidade? A expansão urbana é inevitável, mas qual é a contrapartida”, questiona Comassetto, referindo-se a melhorias de infraestrutura, mobilidade, educação, saúde, entre outros. Ele sugere que seria importante a regularização dos inúmeros loteamentos erguidos nos arredores como contrapartida do empreendimento.

Presidente do Sindicato Rural, Cleber Vieira observa que se fosse tentado barrar o projeto do Aras do Arado correria-se o risco de não ter garantido o retorno do meio rural. “A construção civil é mais forte que o produtor. As construtoras têm muito mais dinheiro para fazer lobby”, compara Vieira.

Recentemente em artigo no Sul21, o economista Paulo Muzzel questionou a posição das entidades ambientais em permitir que os interesses imobiliários mais uma vez prevaleçam.

Vídeo mostra a fazenda Aras do Arado, que deve ser transformada em condomínio de luxo:

 


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