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9 de agosto de 2015
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11:26

Conheça 4 locais de Porto Alegre por onde a Ditadura passou e quase ninguém sabe

Por
Sul 21
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Penitenciária Feminina Madre Pelletier. Foto: Luiza Castro/Sul21
Penitenciária Feminina Madre Pelletier. Foto: Luiza Castro/Sul21

Fernanda Canofre

Nos tempos de um porto não muito alegre, Porto Alegre vivia histórias clandestinas. Hoje, 30 anos após o fim da ditadura militar, nem todas os episódios e locais onde ocorreram violações aos direitos humanos na capital são conhecidos. Muitos deles morreram junto aos testemunhos de seus personagens. Outros se transformaram em documento através de trabalhos de escuta constante, como das Comissões da Verdade e do Comitê Carlos de Ré. Pelos testemunhos recolhidos durante anos, o Comitê conseguiu traçar uma cartografia da tortura em Porto Alegre e região metropolitana, apontando 49 locais onde a ditadura operou. O trabalho foi apresentado recentemente.

Embora muitos dos endereços incluídos na lista da Capital sejam conhecidos – como o Palácio da Polícia, na Avenida Ipiranga, ou a sede do Dopinha, no Bom Fim, que tenta se tornar um Centro de Memória – outros seguem camuflados mesmo para seus vizinhos. Por isso, o Sul21 conta aqui a história de cinco lugares onde a ditadura esteve e quase ninguém sabe.

Dos locais selecionados na lista abaixo, apenas a Penitenciária Feminina Madre Pelletier consta na lista da Comissão Estadual da Verdade dos locais de repressão e detenção. Todos os demais foram descobertos através de relatos dos personagens da história:

A Penitenciária Feminina Madre Pelletier atualmente. Foto: Luiza Castro/Sul21

A primeira vista um presídio pode parecer o local mais óbvio para uma ditadura operar seu esquema de tortura. Ainda mais no estado que abrigou 39 centros de tortura e repressão. Em números, o maior aparelho repressivo do país. Mas ainda assim há detalhes que nem todo mundo conhece. O que aconteceu com Ignez Serpa, a Martinha da VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária), dentro das solitárias da Penitenciária Feminina Madre Pelletier é uma destas histórias.

Ignez foi presa aos 21 anos por ser integrante do Partido Operário Comunista (POC) e da VAR. A vertente trotskista ela herdou do tio. Quando o golpe militar aconteceu, Ignez se preparava para estudar russo na Rússia. Os militares, no entanto, esmagaram os planos. E ela logo adaptou os sonhos. Aos 14 anos, de tempos em tempos, subia no trem Minuano – que ligava Porto Alegre a Uruguaiana – com uma sacola carregada de livros e cartas para levar ao tio que estava no exílio no interior de Rivera, no Uruguai. “Fiz algumas viagens dessas, emocionada por ser clandestina. Meu tio adorava ler também e isso foi o que me deixou mais triste quando me prenderam. Levaram todos os meus livros”, conta.

Ela passou um ano em uma das quatro solitárias isoladas num canto do pátio da penitenciária Pelletier. As quatro celas do comprimento e largura de uma cama de solteiro, que eram reservadas como castigo para presas comuns, com a ditadura foram transformadas em espaço cativo das presas políticas. Em cada cubículo, as mulheres tinham de conviver com o mau cheiro do buraco no chão, que chamavam de banheiro, e esperar que o vão na pesada porta de ferro se abrisse com a refeição. Como a “Martinha” era um nome conhecido dentro da VAR, cada vez que alguém ia preso, era o nome dela que entregava. Assim, diferente do que aconteceu com a maioria dos outros presos, Ignez viveu 365 dias de uma rotina de ida e vinda entre a cela e a tortura, a penitenciária e o DOPS (Departamento de Ordem Político e Social).

A leitura seguia sendo um de seus refúgios. “Na prisão eu li ‘Memórias da Casa dos Mortos’, do Dostoiévski. Tu vê? Li também ‘Memórias do Cárcere’, do Graciliano Ramos. Nunca deixei minha moral baixar lá dentro!”, lembra rindo de quem tentou fazê-lo.

Durante os horários de banho de sol, aproveitava para lavar roupa e limpar a cela. Quando tinha companhia de outras mulheres no corredor da solitária, jogavam cartas e passavam o tempo falando de marxismo, filosofia e das notícias do jornal do dia que deixavam passar pela guarda. Os toques na parede também carregavam mensagem de uma para a outra. Às vezes, ela recebia a visita da mãe por uma hora aos domingos. Outras tinha de cumprir um horário com uma psicóloga que se oferecia para levar cartas aos companheiros presos na Ilha das Pedras Brancas, no Guaíba. A tal psicóloga era, na verdade, uma prima de Átila Rohrsetzer, apontado como um dos mentores da tortura no Rio Grande do Sul.

Mas Ignez achou seu próprio jeito de escrever. Alguns brigadianos que ficavam de guarda dos presos políticos acabaram simpatizando com eles e faziam o serviço de leva e traz das cartas. “Eu sei que eles não abriam porque o DOPS nunca tomou conhecimento do que a gente falava. Até porque eles [os policiais] também pegariam cadeia se descobrissem o que estavam fazendo”, conta ela. “Nunca soube o nome de nenhum deles. Mas nos ajudaram”.

O Pelletier ainda funciona como penitenciária feminina. Pouco tempo depois, as celas das presas políticas foram transformadas em canil para os cães da Brigada Militar. Passados alguns anos, o canil foi desativado porque o espaço, antes ocupado pelas mulheres, foi considerado insalubre para os cães.

O cais do porto, onde os “caldos” eram prática comum. Foto: Guilherme Santos/Sul21

O “Caso das Mãos Amarradas” é um dos mais emblemáticos do início da ditadura militar. Em 24 de agosto de 1966, o sargento Manuel Raimundo Soares foi encontrado morto boiando no rio Jacuí, com as mãos amarradas às costas. Quem o matou esqueceu de esconder a prova da última tortura.

Manoel Raimundo, um subtenente brizolista, estava em Porto Alegre para organizar um dos focos daquela que seria a primeira tentativa de resistência armada contra o regime: a guerrilha do Caparaó. O grupo era formado por ex-militares contrários ao golpe, apoiados por Leonel Brizola, já no exílio no Uruguai. Manoel Raimundo foi entregue por um agente infiltrado e preso no Auditório Araújo Viana, no dia 11 de março de 1966. Levado para o DOPS, ele teve de suportar 9 dias de tortura até ser levado para a Ilha das Pedras Brancas, no rio Guaíba. Nos próximos 6 meses essa seria sua rotina.

Em 12 de agosto, agentes do DOPS retiraram Manoel Raimundo da Ilha e o levaram para uma sessão de “caldos” – técnica pela qual a pessoa é afogada repetidas vezes. Dessa vez, no entanto, houve um “acidente de trabalho”. Os militares perderam o corpo do subtenente na água. Ele só apareceria boiando no delta do Jacuí 10 dias depois. O caso ganhou atenção da imprensa e uma CPI na Assembleia Legislativa, mas só seria reconstituído 20 anos depois, com os nomes de 21 oficiais apontados no envolvimento do assassinato.

O que conecta o caso de Manoel ao cais do porto são depoimentos de ex-presos da Ilha. Paulo de Tarso Carneiro, militante da VAR-Palmares, bancário no Banco do Brasil, foi preso em uma operação da Brigada Militar e das polícias Civil e Federal que cercou a cidade de Garibaldi. Ele esteve na Ilha – local para onde eram levados moradores de rua, mendigos e menores – num tempo em que ela chegou a ter 70 presos políticos. PT Carneiro conta que ouviu dos carcereiros que foi no cais que afogaram Manoel. “Quando estive preso na Ilha o carcereiro, inspetor lá, o Cantuária, disse isso”, afirma. Carneiro lembra ainda que a técnica do “caldo” já era velha conhecida do porto de Porto Alegre. Era assim que os trabalhadores do porto castigavam suspeitos de roubo desde sempre.

A folha de registro de entrada e saída de Manoel Raimundo na Ilha sumiu e nunca foi encontrada. As cartas que ele enviou à esposa são o que comprova seu tempo de permanência lá. Numa delas, contou que ouviu dizer que havia sido o detido mais “tratado” no DOPS. Manoel Raimundo morreu sem entregar nenhum nome.

Catedral Metropolitana de Porto Alegre. Foto: Guilherme Santos/PMPA

A Catedral Metropolitana também foi palco de ação crua da ditadura militar: o espancamento coletivo de estudantes dentro da igreja.

Era 1967. A União Gaúcha de Estudantes Secundaristas (UGES) e o movimento estudantil universitário organizavam uma série de protestos contra os acordos MEC-US Aid, que o Ministério da Educação pretendia assinar com a agência governamental norte-americana e previa a reforma e privatização do ensino público no Brasil. No Colégio Júlio de Castilhos, o Julinho, os estudantes travavam a própria briga dentro da instituição. Como conta Carlos Gutiérrez no livro “A Guerrilha Brancaleone”: “No Julinho, o embate político quanto à reforma somava-se a questões de costumes e à oposição da direção a atividades culturais promovidas pelo Grêmio, como um debate com a participação de Vinícius de Moraes no Clube de Cultura e uma peça teatral de Brecht”. O jornal da escola passou a questionar o autoritarismo da diretoria, a ditadura que governava o país e a reforma proposta para o ensino.

Depois de uma assembleia geral, os alunos decidiram levar o Grêmio estudantil para uma barraca na praça em frente à escola. Foi dali que eles decidiram marchar contra os acordos de Brasil e Estados Unidos, saindo da Esquina Democrática – que na época ainda não levava esse nome – até a Praça da Matriz. Lá, cerca de 800 estudantes protestaram e entregaram ao então deputado Pedro Simon (MDB) um abaixo-assinado contra a privatização do ensino público. Em seguida desceram à praça Montevidéu, em frente da qual funcionava o Consulado dos Estados Unidos, onde queimaram uma bandeira americana. E seguiram em marcha outra vez em direção a Praça da Matriz. Nesse momento, os estudantes já eram 2 mil.

Calino Pacheco, militante da União Gaúcha de Estudantes Secundaristas e mais tarde integrante da VAR-Palmares, conta que ficou sabendo do episódio por amigos. Segundo ele, na Matriz, os estudantes se viram de repente cercados pela Brigada Militar por todos os lados. Sem saída, sentindo que algo estranho estava acontecendo, correram para a Catedral. Uma vez lá dentro, conforme eles iam recuando em direção ao altar, os brigadianos marchavam em frente descendo seus cassetetes em todo mundo que alcançavam no caminho.

A edição nº 4 do jornal “O Julinho” denunciava o ocorrido. O enfrentamento entre a Brigada e os estudantes começou na Rua Riachuelo. Na Catedral, os sinos chamavam para a missa das 18h, quando parte dos estudantes correu para dentro. O artigo do jornal relata:  “A polícia penetra no templo, perseguindo e espancando todos quantos estivessem lá dentro. Viravam bancos, devastavam confessionários, espancavam meninas e meninos junto ao altar-mor. Átila, o sanguinário e bárbaro Átila, quando invadia cidades, poupava seus templos e os que se refugiavam neles…”.

Era o início do fim do Grêmio livre na maior escola pública do estado. Os integrantes foram levados a depor e fichados pelos DOPS. A maioria deles ainda iria ser apresentada ao trabalho de Átila em breve.

Aeroporto Internacional Salgado Filho. Foto: Jonathan Heckler/PMPA

O chamado aeroporto de São João, que já em 1953 levava o nome de Aeroporto Salgado Filho, foi cenário de uma técnica de tortura psicológica recorrente em ditaduras do Cone Sul: o simulacro de fuzilamento. O nome vinha do Aeródromo da Brigada Militar construído ali em 1924. A vítima foi um jornalista, ligado a organizações de esquerda, que relatou o ocorrido ao Comitê Carlos de Ré. O Sul21 tentou entrar em contato com ele, mas ele disse preferir não falar sobre o assunto.

Segundo informações do próprio Comitê, depois de sessões de tortura, o homem foi levado com um capuz sobre a cabeça para uma região que não conseguia identificar. Ele passou a noite sendo ameaçado de morte pelo pelotão. Ele só ficaria sabendo mais tarde que estava na pista do aeroporto.

Em 2001, em depoimento ao Conselho de Direitos Humanos de Minas Gerais, a presidente Dilma Rousseff narrou o episódio em que foi vítima de um simulacro quando esteve presa em São Paulo. No Chile, vários relatos apontam que a técnica era de uso comum dos militares. No Uruguai foi o 10º tipo de tortura mais comum entre os homens e 9º entre as mulheres. Segundo o relatório “Uruguay: Nunca Más” (1989), 57% dos homens presos e 60% das mulheres declararam terem sofrido esse tipo de tortura.

Uma delas diz em depoimento que no caminho até o paredão, através de seu capuz, um dos tenentes tentou convencê-la a passar para o lado dos “ganhadores”, para “salvar a própria vida”. Ela segue: “Assim sou levada e parada contra uma parede com os quatro [prisioneiros] restantes. Aí escutamos os gritos e ruídos do carrossel. Se escutam botas e a voz anuncia a chegada do pelotão de fuzilamento. Barulho de armas e o ‘apontar, preparar, fogo!’. Efetuam os disparos. Logo, desde o carrossel mandam ‘recolher os corpos’ e assim somos levados, alçados e tirados lá de dentro. A essa altura, o ambiente de loucura coletiva havia chegado ao máximo. Eu, ao cair, gritei pelo golpe e porque queria avisar que estava viva. Os gritos me valeram uma chuva de socos. Depois, nós ‘os mortos’ voltamos ao plantão e assim seguimos até à noite”.


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