Caminhos do Lixo|z_Areazero
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6 de fevereiro de 2020
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11:41

40 mil toneladas por mês: O caminho do lixo orgânico entre o descarte na Capital e o aterro em Minas do Leão

Por
Sul 21
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Aterro de Minas do Leão, para onde vai o lixo orgânico descartado em Porto Alegre. Foto: Ministério Público RS

Annie Castro 

Qual o destino final da casca de banana, da borra de café, da fralda descartável e da erva mate reunidos na sacolinha plástica e depositados no contêiner em frente ao seu prédio ou deixados na calçada em frente a sua casa? O resíduo orgânico produzido pela população de Porto Alegre, na maior parte domiciliar, roda quilômetros passando, primeiro, pela Estação de Transbordo, na Lomba do Pinheiro, e seguindo até o aterro sanitário em Minas do Leão.

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Mensalmente, Porto Alegre envia mais de 40 mil toneladas de resíduos para o aterro, conforme Leomyr de Castro Girondi, diretor de Desenvolvimento e Negócios da Companhia Riograndense de Valorização de Resíduos (CRVR), empresa responsável pelo aterro. O valor investido anualmente pela Prefeitura para que os resíduos da Capital sejam aterrados em Minas do Leão é de mais de R$ ‭30 milhões, de acordo com o contrato vigente, que vai de maio de 2018 a março de 2021. Além da Capital, cerca de outros 100 municípios também enviam seus resíduos ao local.

O processo é longo, dispendioso e complexo, mas não é só isso. Os caminhões da coleta domiciliar ou automatizada, que deveriam recolher apenas resíduos orgânicos destinados ao aterro, acabam transportando plástico, vidro, papelão, animais mortos, restos de móveis e todo tipo de material indesejado que, seja por desconhecimento ou descaso, são descartados incorretamente e vão parar em Minas do Leão.

Uma vez que tenha sido descartado de maneira equivocada, o destino do lixo está selado. Não há separação, nem no transbordo, nem no aterro. “Algumas cidades têm uma coleta seletiva mais efetiva e outras uma menos efetiva, mas, tudo que vem para cá fica no aterro. Então, esses materiais que são misturados e acabam não podendo ser reciclados vão para dentro dessa massa de resíduos aterrados, que ao longo do tempo vão se decompondo”, explica Girondi.

Em Minas do Leão, os resíduos descartados por Porto Alegre são aterrados em uma área de 84 hectares. Descarregados, compactados e recobertos após um processo de preparação do solo, estariam prontos para se decompor, liberando gases tóxicos e líquidos poluentes. Entra aí a etapa de recolhimento do chorume, que é tratado antes de ser enviado de volta ao meio ambiente, e de captação do metano, que, por tubulação, é enviado para purificação e utilizado como combustível de motores que geram energia elétrica. “A gente vende para consumidores essa energia, geralmente para grandes empresas. Em uma ordem de grandeza, essa energia poderia atender uma população de 150 mil habitantes”, afirma o diretor da CRVR.

População descarta incorretamente resíduos recicláveis nos contêineres cinzas de Porto Alegre, que são exclusivos para lixo orgânico e rejeito. Foto: Luiza Castro/Sul21

Impactos ambientais

Apesar dos métodos utilizados para conter os gases tóxicos e líquidos poluentes e da utilização de gases como o metano na geração de energia, a escolha pelo aterramento de materiais orgânicos e rejeitos é questionada por diversos setores da sociedade devido aos impactos que o processo pode gerar para o meio ambiente e, até mesmo, para os seres humanos.

Para o biólogo e presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Francisco Milanez, os aterros sanitários servem apenas ao retardamento da contaminação ambiental. “O aterro sanitário dito isolado e impermeável é uma ficção. Se tu pegar estudos científicos, vai ver que em 10 anos o espaço ocupado pelos resíduos aterrado migra mais de um metro. Então, o líquido que sai do lixo vai se movendo até contaminar o lençol freático. O grande impacto do aterro é que é impossível isolá-lo, porque a membrana vai se decompor e vai vazar, ou pode haver uma grande ruptura também”, explica. Ele aponta ainda que é impossível realizar a limpeza de um lençol freático contaminado. “Se for em um rio, a contaminação, chove na nascente e vem uma água nova, mas a água subterrânea não tem como limpar, uma vez contaminada é sempre contaminada”.

Para o presidente da Agapan, o aterramento de resíduos orgânicos desperdiça um material que poderia ser reaproveitado se fosse destinado a outros fins e passasse por diferentes processos após ser descartado pela população. “É um absurdo carregar para Minas do Leão o orgânico porque não é lixo, já que ele é 100% reciclável, porque é 60% água. Com isso, estamos gastando um dinheirão. O que é da natureza, não é lixo”, afirma o biólogo, que pontua que os materiais orgânicos podem ser fonte para a compostagem na agricultura e até mesmo para a produção de biogás.

Ao se tratar do consequente aterramento de materiais não orgânicos, Milanez ressalta que os impactos ambientais e para os seres humanos são ainda maiores, uma vez que esses materiais levam um longo período para decomposição, que pode ser superior a 500 anos, e liberam diversos elementos tóxicos durante esse processo. Existem ainda casos de materiais, como pneus e vidros, que possuem um tempo indeterminado de decomposição ou que, ao se decomporem, se dividem em micropartículas que ficam para sempre na natureza, como é o caso de diversos tipos de plásticos.

O processo de aterramento de resíduos possui diversas etapas para lidar com a decomposição dos resíduos e com os gases tóxicos e líquidos poluentes liberados por ela. Foto: Divulgação/CRVR

Passo a passo

Caminhões responsáveis pela coleta domiciliar ou automatizada levam os resíduos orgânicos até a Estação de Transbordo, uma parada provisória pela qual passa todo lixo orgânico, rejeito ou material sem valor reciclável recolhido na Capital antes de ser enviado ao aterro sanitário. A seguir, detalhamos cada uma dessas etapas:

Coleta Domiciliar

Um dos caminhos feito pelo lixo orgânico descartado pela população em Porto Alegre começa na Coleta Domiciliar de Resíduos Orgânicos e Rejeito, também chamada pelo Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) de ‘Porta a Porta’. Nesta modalidade, os trabalhadores recolhem os resíduos junto às lixeiras das residências das pessoas e das vias públicas e vão depositando na caçamba do caminhão compactador.

Realizada pela empresa terceirizada B.A. Meio Ambiente LTDA desde 2015 e com um custo anual de R$ 50.684.511,48 para a Prefeitura, esta coleta acontece somente nas regiões onde não existem os contêineres da Coleta Automatizada e é feita três vezes por semana em vias normais e de segunda-feira a sábado nas principais avenidas da Capital.

A Coleta Domiciliar de Resíduos Orgânicos e Rejeitos é realizada pelas equipes da terceirizada B.A. Meio Ambiente LTDA. Foto: Cristine Rochol/PMPA

Conforme o diretor-geral do DMLU, René José Machado de Souza, a Coleta Domiciliar atende hoje 136 setores da cidade, que é como são chamadas as rotas feitas pelos caminhões. Dividida por dia e por rua, a coleta nestes setores pode ser feita durante o dia ou no turno da noite. Atualmente, no site do DMLU é possível inserir o nome de uma determinada rua e consultar os dias e os horários que os caminhões da Coleta Domiciliar passam no local.

De acordo com o Código Municipal de Limpeza Urbana de Porto Alegre, o lixo orgânico deve ser deixado para recolhimento separado dos resíduos recicláveis, que devem ser encaminhados à Coleta Seletiva. Porém, muitas pessoas ainda misturam materiais recicláveis junto com os orgânicos e rejeitos que descartam na Coleta Domiciliar. A partir do momento em que a caçamba do caminhão fica lotada, todos os resíduos recolhidos, sejam eles orgânicos ou não, são levados até a Estação de Transbordo, localizada na Lomba do Pinheiro, e de lá, encaminhados para a Central de Resíduos Recreio, aterro sanitário pertencente à CRVV, em Minas do Leão.

Coleta Automatizada

Outros resíduos orgânicos produzidos em Porto Alegre fazem um trajeto diferente antes de chegar ao Transbordo: são colocados pela população em contêineres e depois recolhidos pela Coleta Automatizada de Resíduos Orgânicos e Rejeito. Diferentemente da ‘Porta a Porta’, na Coleta Automatizada a população descarta os resíduos em um dos 2.400 contêineres cinzas que estão espalhados em 19 regiões mais centrais da Capital.

Os contêineres cinzas estão espalhados em 19 regiões mais centrais da Capital. Foto: Luiza Castro/Sul21

Atualmente, o serviço atende totalmente os bairros Auxiliadora, Bom Fim, Bela Vista, Centro Histórico, Cidade Baixa, Farroupilha, Independência, Moinhos de Vento, Mont’Serrat, Praia de Belas e Rio Branco. Já os bairros Azenha, Floresta, Higienópolis, Petrópolis, Menino Deus, Santa Cecília, Santana e São João são regiões onde a Coleta Automatizada funciona de modo parcial, estando presente em determinadas ruas.

Esta modalidade de coleta é realizada pelas terceirizadas Conesul Soluções Ambientais LTDA. e Transportes RN Freitas LTDA. Segundo o Diretor-geral do DMLU, este serviço é prestado por duas empresas devido a “uma questão de território da cidade e de momento de implantação desse sistema de coleta”.

Embora sejam destinados exclusivamente para resíduos orgânicos e rejeitos, os contêineres cinzas, assim como a Coleta Domiciliar, recebem diariamente materiais que não deveriam ser descartados neles pela população. Por isso, é comum que dentro dos contêineres uma cena se repita: sacos plásticos contendo restos de comida, lixos de banheiro ou outros resíduos orgânicos misturados a embalagens plásticas, restos de móveis, papéis, copos plásticos ou de isopor e diversos outros itens que deveriam ser destinados à Coleta Seletiva.

Resíduos recicláveis são descartados incorretamente em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

Ao serem descartados incorretamente nos contêineres, esses resíduos acabam recolhidos pela Coleta Automatizada vão parar direto no Transbordo.

Transbordo

Localizada em uma área de 18 hectares no bairro Lomba do Pinheiro, a Estação de Transbordo funciona como uma parada provisória para todos os resíduos que são recolhidos pelas coletas domiciliares, gerados por algumas empresas privadas, rejeitos das unidades de triagem conveniadas ao DMLU e derivados de limpeza pública.

Ali, caminhões de diversos portes depositam os resíduos em uma espécie de pátio ao ar livre, formando montes de materiais de todos os tipos. “Existem diversos tipos de resíduos que recebemos aqui. Cerca de 60% é da Coleta Domiciliar, tanto a Porta a Porta quanto a Automatizada; em torno de 25% a 30% é de Coleta de Focos, que são aquelas feitas em locais onde usualmente as pessoas ou as empresas descartam resíduos de maneira irregular”, explica o engenheiro do DMLU José Linck Barbosa.

Além dos resíduos mencionados por Barbosa, o Transbordo também recebe os rejeitos das Unidades de Destino Certo, como restos de móveis e colchões, por exemplo, e os resíduos largados pela população nas lixeiras laranjas que estão espalhadas por toda a Capital, que são recolhidos pela equipe da varrição da empresa Cootravipa, terceirizada pela Prefeitura para a limpeza pública, e levados à Estação de Transbordo pelas empresas contratadas para o serviço de recolhimento dos resíduos públicos. Há ainda, um percentual de resíduos levados ao Transbordo por empresas privadas cadastradas na Equipe de Resíduos Especiais do Dmlu, habilitadas a descarregar diretamente no local.

Na Estação de Transbordo, caminhões de diversos portes depositam os resíduos em uma espécie de pátio ao ar livre. Foto: Giulia Cassol/Sul21

Atualmente, a Estação de Transbordo funciona praticamente 24 horas por dia, das 7h da manhã de segunda-feira até às 5 horas da manhã de domingo, tendo cerca de nove funcionários por turno. O DMLU é o órgão responsável por algumas partes da Estação, como a gestão da balança que mede cada caminhão que entra no local e outras tarefas de administração. Ao todo, 10 apontadores atuam no local, anotando os dados do material que entra e sai, enquanto cinco servidores do DMLU fazem o serviço administrativo e outros sete fazem a manutenção da área.

O engenheiro do DMLU José Linck Barbosa é um dos funcionários do órgão que trabalham no Transbordo. Foto: Giulia Cassol/Sul21

Já os serviços de gestão de descarga, de operação, de transporte até o aterro sanitário em Minas do Leão e de transbordo na Estação são prestados pela terceirizada JSL, pelo custo de mais de R$ 20 milhões ao ano. Os funcionários da empresa fazem toda a gerência da descarga, da limpeza do terreno e dos arredores e operam as máquinas que abastecem as carretas que levarão os resíduos ao aterro.

Ao entrar na Estação, os caminhões precisam passar uma balança que mede o peso bruto, ou seja, o peso da carga junto com o peso de cada caminhão. Após descarregarem os resíduos, os caminhões retornam à balança e são pesados novamente, o que permite que os funcionários do DMLU calculem o peso líquido dos resíduos que foram descartados no local por cada caminhão. De acordo com Barbosa, o acúmulo máximo de resíduos que pode ocorrer na Estação são 500 toneladas e o terreno onde os descartes acontecem foi asfaltado, a fim de evitar o escoamento desses resíduos em dias de chuva.

No máximo 500 toneladas de resíduos podem estar acumulados na Estação de Transbordo. Foto: Joel Vargas/PMPA

Normalmente, no máximo dez caminhões por vez podem estar dentro do pátio descarregando resíduos. Este controle é feito pelos funcionários que atuam na balança e que, quando necessário, seguram alguns caminhões até que o pátio esteja mais vazio. Segundo Barbosa, é por volta das 11h da manhã dos dias de semana que o movimento atinge seu ápice na Estação.

Após o descarregamento, retroescavadeiras, administradas por funcionários da JSL, empilham todos os resíduos deixados no pátio em montes para, em seguida, serem colocados em outras carretas, com capacidade de até 53m³. Cheios, os veículos são levados por trabalhadores da terceirizada ao seu destino final: o aterro sanitário em Minas do Leão. Conforme Barbosa, são feitas mais de 60 viagens diárias da Estação até o aterro, o que significa que cerca de 1.700 toneladas de resíduos são levadas diariamente até Minas do Leão.

As carretas que irão levar os resíduos para o aterro sanitário são abastecidas por meio de retroescavadoras. Foto: Giulia Cassol/Sul21

Aterro

Os resíduos que passam pela Estação de Transbordo fazem uma viagem de mais de 100 km até a Central de Resíduos Recreio, em Minas do Leão, onde antigamente existia uma mina de carvão a céu aberto. Desde dezembro de 2002, o aterro sanitário da Companhia Riograndense de Valorização de Resíduos (CRVR) recebe os resíduos orgânicos e rejeitos da população de Porto Alegre. “Ele não é o mais próximo da cidade, mas é o que pode receber a capacidade de produção de Porto Alegre, que é, em média, 1.600 toneladas ao dia”, explica o Diretor-geral do DMLU.

Porto Alegre envia mais de 40 mil toneladas de resíduos para a Central de Resíduos Recreio, aterro sanitário da CRVR em Minas do Leão. Foto: Divulgação/CRVR

Depois de chegarem ao aterro em Minas do Leão, todos os resíduos descartados por Porto Alegre são aterrados em uma área de 84 hectares. Antes disso, porém, os caminhões são pesados individualmente e passam pela retirada de lona para o processo de verificação da carga, que busca caracterizar em que tipo de classe cada resíduo se encaixa.

A próxima etapa é o descarregamento dos resíduos, seguido da compactação e da cobertura por terra. “Eles [resíduos] têm uma densidade baixa, então temos que aumentar a densidade deles para irem para o aterro. Temos estatisticamente uma quantidade de toneladas de pressão que precisamos colocar sobre os resíduos, por isso é feita a compactação, um trabalho que é feito por tratores”, explica Girondi.

Já o processo de recobrimento implica uma preparação gradual do solo, com cobertura por terra, e a presença de sistemas de drenagem e de tratamento de afluentes. “Com o processo todo controlado de implantação, existe apenas uma saída, que é voltada para o chorume que diariamente é gerado pela decomposição do orgânico. Esse líquido vai para a estação de tratamento e é transformado em efluente”, relata Girondi.

O processo de decomposição do lixo também produz gases, como o metano, que é um dos mais agressivos ao meio ambiente, afetando principalmente a camada de ozônio, e, segundo Girondi, representa 50% do gás produzido em aterros e em locais de decomposição de materiais. Em Minas do Leão, é realizado um processo de captação desse gás. Segundo o diretor da CRVR, um sistema de tubulação controla a saída de gás e, por meio de equipamentos sopradores, ele é puxado para a usina instalada no próprio aterro, onde é convertido em energia elétrica, pronta para ser vendida, tornando-se uma das principais fontes de renda da CRVR.

Em Minas do Leão, o gás metano é recolhido e transformado em energia elétrica. Foto: Divulgação/CRVR


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