Breaking News|Últimas Notícias>Geral
|
30 de outubro de 2016
|
10:51

A busca para calar o silêncio

Por
Sul 21
[email protected]
cilon-livro
Foto: Divulgação

Maria Wagner

Mais um ano passou e a Feira do Livro de Porto Alegre está de volta ao centro da cidade. Nos 18 dias de sua permanência na Praça da Alfândega, 111 estandes oferecem uma infinidade de obras escritas por autores nacionais e estrangeiros, do romance à ficção científica. Como de hábito. E também como de hábito há leitores para todos os tipos de livros.

A propósito, estou lendo Histórias da Gente Brasileira, em que Mary Del Priore aborda o tempo em que o Brasil foi colônia de Portugal. Mas quem, como eu, prefere este tipo de obra, a editora Arquipélago oferece um título sobre período mais recente – e muito duro – da história política e social brasileira. É Antes do Passado (R$ 25), escrito pela jornalista gaúcha, nascida em São Sepé, Liniane Haag Brum.

Aliás, embora tão distanciados no tempo, o livro de Mary Del Priore ajuda a entender por que o Brasil se repete em movimentos que opõem os interesses de uma elite às necessidades do povo, como aconteceu em 1964, quando empresários, setores da imprensa e militares se uniram para instalar uma ditadura de 25 anos, impondo o silêncio através do medo. Mas houve quem, mesmo assim, se rebelou.

Cilon Cunha Brum foi um desses rebeldes. Queria ser médico, mas largou o curso para lutar contra a ditadura, como militante do PCdoB, e, em 1971, a família o viu pela última vez. Muito rapidamente, na igreja, quando ele deu um jeito de comparecer ao batizado de sua sobrinha e afilhada, Liniane. Na verdade, ela nunca o viu, mas a presença do tio e padrinho em sua vida sempre foi muito intensa, porque seu desaparecimento – sem explicações – não permite à família esquecer o filho, o neto, o irmão.

O nome de Cilon – hoje nome de rua no Rio de Janeiro – apareceu em lista de vítimas da ditadura, a família providenciou lápide para seu túmulo, mas faltava (e ainda falta) o corpo. Então Liniane resolveu procurá-lo e, nessa busca, refez o roteiro dele, encontrando quem o conheceu no Araguaia. O resultado é o livro Antes do Passado, lançado em 2012. Em 2015, portanto três anos depois, Curió, major do Exército Sebastião de Moura (77 anos e agora na reserva), disse em depoimento à Justiça Federal que matou Cilon Cunha Brum (codinome Simão) em janeiro de 1974. O corpo? Ainda não foi encontrado.

Antes do Passado é comovente por vários motivos: porque conta a dor embutida na ausência; porque mostra a coragem de alguém disposto a lutar pela liberdade; porque mostra o empenho de uma jovem não conformada com o silêncio em torno do assunto. Liniane quis a verdade e saiu a buscá-la.

Eu, por minha vez, acredito que o livro deve ser lido especialmente por aqueles jovens – e não tão jovens – que hoje, em meio a mais uma crise, acreditam que os problemas do Brasil podem ser resolvidos através de uma ditadura. Também por isso resolvi conversar com Liniane sobre Cilon Brum e sobre a imagem que tem desse tio, do qual nunca desistiu. E ela me deu um depoimento precioso.

Liniane Haag Brum. Foto: Divulgação
Liniane Haag Brum. Foto: Divulgação

Maria WagnerComo ponto de partida, me fala da relação com tio Cilon e sobre essa força que a levou a refazer o roteiro dele.

Liniane Brum – É interessante responder isso agora, após quatro anos da publicação de Antes do Passado. Não que as motivações tenham mudado desde a época do lançamento do livro. Foi o jeito como eu as vejo que se transformou.

No início, início da minha vida, o Cilon era uma pessoa tão viva… Embora jamais o tenha visto, nenhuma vez sequer, para mim era como se ele existisse realmente – e não só na memória de meus pais, de quem eu recebi a narrativa sobre ele.

A história você conhece. Foi Cilon quem me batizou, em 1971, em Porto Alegre.  Daí em diante nunca mais foi visto pela família. Eu tinha 11 dias de vida: era um bebê recém-nascido. Os meus avós e o meu pai passaram a encarar, e a lembrar, aquele batismo como o último dia em que falaram e conviveram com o filho e o irmão, respectivamente. Mas as coisas não foram assim tão simples de se constatar, tão dadas e explicadas… O processo de desaparecimento de Cilon foi extenso e envolveu o engendramento do tabu e do trauma na família Brum. E aqui, quando escrevo “família”, me refiro aos pais de Cilon, seus irmãos, irmãs, sobrinhos, sobrinhas, tios, tias, primos. Eu mesma “bebi na mamadeira”, junto com as primeiras gotas de leite, certa ânsia, fruto da espera e da expectativa por esse afeto que jamais voltaria. E que, arrisco dizer agora, talvez se soubesse ou intuísse desde aquele junho de 1971, que nunca retornaria.

A consciência de que essa expectativa – vivida como segredo e submersa no medo – estava ligada ao Brasil, me veio muito tempo depois de 1971. Em Antes do Passado eu narro isso. Esse percurso de viver-esperar, foi percorrendo-o que descobri o Brasil que se relaciona à vida e ao desaparecimento de Cilon. Era a ditadura de 64/85; o medo e o segredo transformando Cilon em tabu. E o tabu é assim: ele é um silêncio espesso, denso; você vive o tabu semiconsciente, sabendo e não sabendo que é ele quem atua na sua vida.

Foto: Divulgação
Cilon. Foto: Reprodução

Maria WagnerQue imagem você tem do tio Cilon?

Liniane – Meu tio, por um lado, foi um jovem comunista num contexto atingido pela polaridade da Guerra Fria (entre Estados Unidos e a então União Soviética), num Brasil onde as pessoas eram mortas (desaparecidas, torturadas, exiladas) em razão da resistência política; e, por outro, no plano pessoal, foi alguém que escolheu o enfrentamento a um regime de exceção, a luta pela democracia, quando o “líquido e certo”, de acordo com sua formação familiar, teria sido o caminho convencional: “vencer na vida” e tornar-se “bem-sucedido”. Ainda, complementando, é preciso dizer que se tratava de uma escolha que trazia à família o estigma da vergonha e a ameaça da violência de Estado. (Escrevo isso como constatação, sem juízo de valor).

A “força que me levou a fazer o roteiro dele”, usando as tuas palavras – de que gosto muito, o vocábulo “força” traduz o que senti – acontece ao longo desse percurso de, digamos, mais de 30 anos. A negação, pelos sucessivos governos, da trajetória e da vida do resistente Cilon, foi a força. O desaparecimento político (a morte) foi a força – como se eu dissesse para os assassinos impunes, para a oficialidade do silêncio: “então vocês estão achando que vai ficar por isso mesmo? Não vai.” Da necessidade de contar essa história de autoritarismo, de violência, de ausência, de medo, de segredo e de amor é que nasce a força.

Eu ainda ressaltaria dois pontos fundamentais, para dar mais concretude ao meu relato. Primeiro, o livro Guerrilha do Araguaia, que apareceu na casa dos meus pais quando eu tinha por volta de 10 ou 11 anos. Ou seja, em plena ditadura militar. Era um livro de capa verde, contava a história de uma guerra, uma guerra desconhecida. E citava o Cilon. Alguns anos depois – e isso eu falo em palestras e entrevistas – a experiência derradeira foi a leitura de Brasil Nunca Mais. Eu tinha 15 anos. Imagina uma menina dessa idade, cheia de sonhos, imersa numa vida pequeno-burguesa, frequentando bailes de debutantes, vivendo o primeiro amor, descobrir a seco aquela realidade. Que, além do mais, era a realidade de pouquíssimas pessoas! (sentia-me sozinha no deserto, digamos assim…) Foi um choque. Eu me perguntava como aquilo pudera acontecer. Como aquela barbárie “existia” e ninguém sabia? E, sobretudo, como o Cilon, padrinho querido – que um dia deveria ter voltado, mas jamais o fizera – figurava nos anexos daquele livro como “desaparecido”. (Com a letra A, de Araguaia, ao lado). Sem nenhuma explicação!!!! Apesar de Brasil Nunca Mais escancarar os crimes daquela ditadura, uma vez que é baseado inteiramente em processos militares, eu sentia que ainda tinha muita coisa a ser revelada/desvelada. Como lidar com tudo isso?

Um livro, um divisor de águas

Hoje eu acho que Brasil Nunca Mais foi um marco, um divisor de águas na minha vida. Ali, naquela leitura, introjetei coisas que só viria a compreender muitos anos depois. A principal delas acho que também resume a questão da força: afinal, um desaparecimento político/assassinato não poderia ser desconhecido de quem escrevera aquele livro. Quem escrevera aquelas páginas mesmo? Outra questão propulsora: ninguém na família iria ao Araguaia checar por onde Cilon andou e o que fez? Mesmo as caravanas familiares, soube anos depois, não conseguiam dar conta de buscar as histórias de todos os desaparecidos no Araguaia…. Então a força reside nessa consciência de que as coisas não poderiam “ficar por isso mesmo”.

Hoje se sabe dos crimes cometidos pelos agentes do Estado, a mando do Estado, durante a ditadura civil-militar brasileira. Se sabe – embora não se possa, em todos os casos, “comprová-los”. Não houve vontade política, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi necessária, mas não evoluiu nessa trilha.

cilon-1
Cilon Cunha Brum, Valter Pontes Brum, Lino Castelar Brum, Sergio Brum Sagasterme e Lino Brum Filho, visitando exposição aberta na Galeria Chaves, em 1966. Foto: Reprodução

Símbolo de luta contra a ditadura

A gente sabe hoje que Cilon não é um herói, mas um mártir – ele é reverenciado, virou símbolo de luta contra a ditadura e do processo de transição para a democracia… Cilon não é “somente” um tio desaparecido. A meu ver, a memória de sua curta existência é patrimônio da humanidade. Ela é exemplar no sentido de nos contar da ditadura brasileira, da restrição do direito à vida em nome de interesses espúrios, da negação da justiça – a civilização dando lugar à barbárie.

A força veio também desse lugar, dessa consciência adquirida.  E veio, finalmente, de um lugar de amor que eu não sei explicar. (Talvez porque uma vida ceifada no nascedouro chamado juventude seja mesmo irrecuperável. Impronunciável).

Maria Wagner A tua relação com o tio Cilon mudou de alguma forma depois de refazer o roteiro dele?

Liniane – É difícil, quase impossível, traduzir em palavras. Tentando mais uma vez dar concretude a minha resposta, eu diria, primeiro, que a relação com Cilon é, antes de mais nada, a relação com a sua ausência, uma relação rememorada e projetada por adultos e transmitida a mim  quando eu era criança.

Aprendi, com meus pais, a amá-lo. Então ela é metafísica nesse sentido. Porque é um amor por alguém incorpóreo. Por alguém que não conheci de fato, muitas vezes superando o amor que tenho por familiares que conheci e com quem convivi.

É claro que a partir da escrita de Antes do Passado elaborei, mesmo que involuntariamente, muitos sentimentos. Mas tem uma coisa difícil de explicar e que sempre me emociona. Mesmo depois de tantas palestras, entrevistas e artigos…

Maria Wagner – O que estás preparando para ser publicado?

Liniane – Estou dedicada à escrita, à pesquisa acadêmica (Unicamp) e à docência.  Tenho três projetos.

O primeiro é o livro de contos E n t r e / C o r t e s, que, a exemplo do que aconteceu com Antes do Passado, foi contemplado com um prêmio de criação literária, o PROAC, específico do Estado de São Paulo/Secretaria da Cultura (ainda sem data de lançamento). É uma obra que toca na sexualidade feminina de maneira curiosa, escancarada, e às vezes dolorida. Mexe em tabus familiares, como a violência entre pais e filhos. São contos 100 % ficcionais. Alguns vão dizer que é feminista… pode ser…

Um projeto em andamento é a pesquisa de doutorado em teoria literária, que focaliza a ditadura civil-militar. Trabalhando as fronteiras do relato testemunhal, entrelaçando História e literatura, pesquiso a poética do arquivo no Brasil Nunca Mais e em três documentários (auto)biográficos sobre vítimas da ditadura brasileira.

Em terceiro, estou escrevendo um romance que se desdobra de Antes do Passado. Assim: a gênese e concepção literária de “a guerra aconteceu em segredo da mata” é indissociável da pesquisa e da recepção de Antes do Passado. A ideia é contar aquilo que acontece no entorno de uma busca como a que fiz, também encenando fragmentos de vidas e trajetórias de perseguidos políticos em passagem por grandes centros urbanos, na década de 1970. Pessoas que, durante a ditadura, se deslocavam à guerra de guerrilhas no norte do Brasil, ao exílio, ou que se escondiam nos cafundós do próprio país.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora