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24 de janeiro de 2016
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16:20

Pacientes debatem necessidade de se falar sobre reforma psiquiátrica e transtornos mentais

Por
Sul 21
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Encontro aconteceu durante Fórum Social Temático, em Porto Alegre | Foto: Fernanda Canofre/Sul21
Encontro aconteceu durante Fórum Social Temático, em Porto Alegre | Foto: Fernanda Canofre/Sul21

Fernanda Canofre

“O diagnóstico não invalida”, diz Elis para uma sala de pessoas reunidas no Fórum Social Mundial (FSM) Temático. Com o cabelo curto igual ao de sua xará cantora, a professora de Santa Maria lembra de tempos em que não sorria como agora. Em seus piores dias, ela conta que se afastava da vida da filha, pensando em prepará-la para sua eventual ausência se a doença vencesse. E quase foi assim. Depois do tratamento, no entanto, Elis diz ter passado de “uma mãe nota 2, para uma mãe nota 8, às vezes 9”. “Eu quero que as pessoas vejam depressão como algo que pode fazer parte da tua vida, mas não te limita”.

O estigma é muito forte no consciente social. O preconceito, segundo os pacientes, não permite que enxerguem que eles podem ter vidas normais. Elis conta, por exemplo, sobre uma vez em que foi procurar emprego e marcou “sim” na caixa que perguntava se o candidato tinha quaisquer transtornos. “A menina que pegou a ficha disse na hora: ‘melhor tirar isso, assim tu não vai conseguir nada’. Eu fiquei pensando, como ia mentir sobre isso”.

Martha Helena Oliveira Noal, a psiquiatra que coordena o grupo do qual Elis faz parte e é sua médica há anos, explica que esconder a doença longe de ser solução, contribui para o estigma. “Quando a gente mente, a gente está dizendo que a doença não existe. Qualquer pessoa pode ter um sofrimento”, disse ao grupo. A paciente ainda quis completar: “Independente do que tu tem, se isso mexe com a tua cabeça, tu é incapaz”. O que pode ser ainda mais complicado para quem se vê em meio a uma crise, tendo de equilibrar ainda responsabilidades e família, como foi com ela.

Elis foi um dos quatro usuários e usuárias a dividirem seus relatos na atividade organizada pela Associação de Familiares, Amigos e Bipolares de Santa Maria (Afab), Rio Grande do Sul, dentro do Fórum. A roda de conversa – intitulada “A reforma psiquiátrica através da narrativa de experiências dos usuários” – faz parte do projeto Comunidade de Fala. A ideia veio do jornalista norte-americano,  Richard Weingarten, “um dos líderes do movimento de usuários de saúde mental dos Estados Unidos”, segundo o site do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Maria. Weingarten enviou a proposta para comunidades de diversos países, a associação logo aceitou tentar. Depois de um mês de treinamento, a Afab começava seu primeiro Comunidade em abril do ano passado.

Os usuários que participam do projeto, além de realizar palestras, falam diretamente com outros usuários. Na ala do próprio hospital psiquiátrico, por exemplo, eles fazem visitas periódicas para trocar experiências. “Ouvir as experiências de quem passou pelas mesmas coisas, é mais confortante do que ouvir profissionais em muitos momentos”, explica a psiquiatra responsável pelo grupo, Martha Helena Oliveira Noal.

“Falar e saber que isso vai ajudar as pessoas é uma grande motivação. Elas precisam saber que vai passar e precisam que alguém diga isso para elas”, diz Elis. No ano passado, ela chegou a dar uma entrevista a um jornal local falando um pouco sobre sua história. Quando acordou no dia seguinte, se deparou com seu Facebook cheio de mensagens de pessoas querendo dividir suas experiências com ela.

A troca de exemplos com quem deixou os “dias ruins” para trás pode ser algo muito poderoso, segundo Alex, que está há 24 anos sem ter ataques ou crises: “Tem um peso isso. Tem gente lá (no hospital) que não tem nem essa idade”.

A discussão antimanicomial em risco

Caravanas de vários estados se reuniram diante do Ministério da Saúde | Foto: Conselho Federal de Psicologia
Caravanas de vários estados se reuniram diante do Ministério da Saúde | Foto: Conselho Federal de Psicologia

Denizar, outro integrante do grupo diagnosticado com bipolaridade, é acompanhado por Martha há 18 anos. Ele tem na conta 5 internações e 40 palestras públicas. Como uma das supervisoras brinca com ele, passou de paciente a ativista da reforma psiquiátrica. Oito dias antes de contar suas histórias durante o Fórum, Denizar – que também é presidente da AFAB – estava entre as mil pessoas encarando policiais e a chuva fraca, em frente ao Ministério da Saúde, em Brasília. Pacientes, ativistas e médicos pela luta antimanicomial, de vários estados, se reuniram no LoUcupa, para protestar contra o que parece ser o maior retrocesso para a área nos últimos anos: a nomeação de Valencius Wurch Duarte Filho, para coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas.

Valencius apareceu como uma das primeiras mudanças no Ministério da Saúde desde a demissão inesperada do ministro Arthur Chioro, no final de setembro. O psiquiatra foi a opção do novo ministro, Marcelo Castro (PMDB-PI), para o substituir Roberto Tykanori Kinoshita. Ao contrário de Valencius, que se posicionou contra a proposta da reforma psiquiátrica, Tykanori é conhecido como um dos precursores da luta antimanicomial no país. Em 1989, ele foi um dos responsáveis pela intervenção no Hospital Psiquiátrico Anchieta, em Santos, depois de três mortes na instituição. A ação foi uma das primeiras do grupo que inaugurava um novo paradigma em saúde mental no País na proposta da reforma.

O novo coordenador, no entanto, tem outro caminho. Durante cinco anos, entre 1993 e 1998, Valencius foi diretor do maior hospício privado da América Latina: a Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, região metropolitana do Rio de Janeiro. O local foi fechado em 2012, por determinação judicial, depois de anos de denúncias de violações de direitos humanos.

Militantes do movimento antimanicomial pedem saída Valencius, na Alerj, em dezembro| Foto Akemi Nitahara/Agência Brasil
Militantes do movimento antimanicomial pedem saída Valencius, na Alerj, em dezembro| Foto Akemi Nitahara/Agência Brasil

Um manifesto de psiquiatras pela reforma, publicado no mesmo dia em que o nome de Valencius saiu no Diário Oficial, fala sobre o local: “A Casa de Saúde Dr. Eiras faz parte de um histórico sombrio da psiquiatria brasileira (…) No ano 2000, o relatório da I Caravana Nacional de Direitos Humanos, promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, constatou graves violações de direitos humanos na Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, tipicamente encontradas nas grandes instituições manicomiais, tais como prática sistemática de eletroconvulsoterapia, ausência de roupas, alimentação insuficiente e de má qualidade e número significativo de pessoas em internação de longa permanência”.

Em dezembro, defensores da luta antimanicomial lotaram a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, na presença de Valencius, pedindo que sua nomeação não fosse efetivada. O deputado estadual Marcelo Freixo chegou a definir a nomeação como “uma indicação política das mais desastradas” e disse: “O senhor Valencius tem um histórico que não é compatível com a luta antimanicomial”.

Um colega psiquiatra de Martha, que trabalhou com Valencius, conta que o novo coordenador tinha costume de indagar os colegas: “Qual a diferença entre uma consulta de 3 minutos e uma de 30?”. Valencius parece preferir seguir o padrão utilizado por muitos médicos do moderno fluxograma. Basicamente, o fluxograma coloca o diagnóstico do paciente em um tabuleiro, onde dependendo da resposta, o médico avança nas perguntas até chegar a um diagnóstico e um receituário no final. Essas consultas, comuns em todo o país, podem de fato levar 3 minutos.

No entanto, o sistema dentro do Humaniza SUS – e os médicos a favor da humanização do tratamento – tenta apresentar uma nova cartilha há tempos. “A política nacional de humanização é muito boa. Ela preconiza a clínica ampliada, que olha para a pessoa e para a história de vida dela. Ela vai ver a pessoa, não o paciente-objeto”, explica Martha. “Essas consultas não se pode fazer em 3 minutos”. 

Precisamos falar de doenças mentais

Delizar e a psiquiatra Martha, durante encontro | Foto: Fernanda Canofre/Sul21
Delizar e a psiquiatra Martha, durante encontro | Foto: Fernanda Canofre/Sul21

Janine era âncora de um telejornal local de Santa Maria quando suas crises de ansiedade começaram a se tornar mais frequentes. Sua primeira e única internação foi programada por ela mesma, quando “viu que precisava daquilo”. Passou 119 dias dentro do Hospital Psiquiátrico até se sentir preparada para recuperar a autonomia sobre sua vida. Apesar de tantos relatos sobre desumanização de tratamento, ela diz que sua experiência foi boa.

A equipe de enfermeiros até autorizava que ela vestisse suas roupas normais quando tinha de sair resolver algumas questões fora do hospital. Normalmente, todo paciente é obrigado a usar o pijama branco que os identifica durante a internação. A justificativa é que assim evitam que o paciente consiga fugir. Muitos deles tem de ir vestidos assim para Fóruns, bancos, qualquer lugar onde as tarefas da vida lá fora não esperem pela alta médica. “Ser a exceção nesse caso é muito dolorido. É duro saber que a regra não é essa”, se emociona Janine. Ela diz perceber isso toda vez que está na sala de espera para suas consultas e escuta as histórias dos outros.

A experiência de Elis, por exemplo, foi bem diferente. Uma das coisas que mais a incomodava era a hora do banho. Todos os pacientes eram obrigados a tomar banho juntos, na hora determinada pela equipe de enfermeiros. “Porque ali tu está numa instituição total”, diz Martha.

Elis tentou o suicídio. Hoje, falar sobre tudo o que passou até aqui, quando ela planeja o mestrado e acaba de comprar um apartamento, parece ajudá-la. “Tive, significa dizer que hoje eu estou curada. Eu tenho que saber que eu posso ter ainda. Isso não me faz sentir menor que ninguém, ou fraca como muitos dizem. A noção de força para tentar uma coisa dessas…não tem como medir. Tu desistir da vida”, reflete em voz alta durante a conversa.

Como os próprios pacientes lembram, ainda é comum que as pessoas confundam depressão com tristeza. Enquanto uma é momentânea e vai embora, a hora não depende só tem um giro nos eventos para te deixar.

O começo é poder falar a respeito. “Preconceito não permite enxergar que as pessoas com transtornos são pessoas normais, com vidas normais”, conclui a psiquiatra Martha.

Mais informações sobre o trabalho da AFAB, aqui. A AFAB é um projeto de extensão do Ambulatório de Transtornos do Humor do Hospital Universitário de Santa Maria. O grupo conta com mais de 400 associados, foi destaque no Prêmio Saúde 2006, da Editora Abril e realiza reuniões semanais em Santa Maria, RS.


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