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31 de outubro de 2015
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21:16

Pessoas com sofrimento psíquico superam barreiras a partir de oficina literária

Por
Sul 21
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Foto: Débora Fogliatto
Autores lançaram livro na Feira, neste sábado | Foto: Débora Fogliatto

Débora Fogliatto

No início de 2013, Rosângela Maria Pereira tomava 13 remédios para lidar com sua depressão; hoje, convive com apenas um. A história dela e de outras nove pessoas é a prova viva da importância da arte como forma de terapia para pacientes com sofrimento psíquico. A partir de uma oficina literária promovida no Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC), dez pacientes tornaram-se escritores, criando o livro “Contos sem Tarja Preta”, lançado neste sábado (31) na Feira do Livro de Porto Alegre, no Memorial do Rio Grande do Sul.

Os contos são resultado de cerca de dez meses de encontros semanais promovidos pelo psiquiatra Luiz Ziegelmann e o escritor Luís Roberto Amabile, que resultaram em histórias tanto de ficção quanto da vida real, escritas sem tristeza, com humor e alegria. Os autores são pacientes do médico em grupos de terapia, que foram convidados por ele para participar do projeto de tratamento alternativo.

Ziegelmann conta que acredita na arte e afeto como formas de se trabalhar com pacientes de saúde mental. “Com certeza eles apresentaram melhoras. São pessoas com sofrimentos graves de perda, violência, rejeições, abusos. Isso está na vida delas, então em alguns casos tiveram recaídas, mas para muitos a vida mudou”, reflete.

Ele lamenta apenas que o ensino de Psiquiatria ainda não atente para esse tipo de iniciativa, o que foi constatado pelo fato de o projeto não ter sido procurado por universidades. “O ensino não estimula isso, é muito tradicional, voltado à medicalização e diagnósticos. Não trabalha com arte, literatura, sensibilidade, poesia”, critica.

“Um novo caminho”

Livro foi produto de 10 meses de oficina | Foto: Divulgação
Livro foi produto de 10 meses de oficina | Foto: Divulgação

Essa melhora percebida por Ziegelmann também é expressada po cada um dos autores, e ocorreu tanto em termos de talento para a escrita quanto de quadro de saúde mental. “Eu não tinha o hábito de escrever, nem de ler muito. E a cada sexta-feira a gente fazia a oficina e fomos melhorando”, conta Alember Bica Duarte. Ele conseguiu, durante o período em que a oficina acontecia, se superar e começar uma faculdade, além de praticar um esporte e voltar a trabalhar. Atualmente, não toma mais medicamentos, mas ainda frequenta o grupo de terapia onde conheceu os colegas escritores. “Em meio à dor e à tristeza, podemos tirar coragem e força”, resume.

Para Carlos Alberto Costa, a iniciativa foi um desafio, mas, ao mesmo tempo, o trouxe de volta à vida. “Eu achei que eu tinha morrido para a vida e descobri que existe vida e inteligência em mim”, afirmou ele, que sofre de depressão e ansiedade, as quais está conseguindo administrar. Ele relata que, inclusive, há cerca de dois anos não conseguiria estar no ambiente do Memorial cercado por diversas pessoas e conversando com desconhecidos.

Todos os autores relataram que, além de terem melhorado, também criaram laços afetivos com os colegas e isso foi um dos maiores ganhos da oficina. “Todo mundo se ajudava, quando um ‘empacava’ os outros sugeriam alguma coisa”, afirma Rosângela. Ela, aos 50 anos, conta estar voltando a ser como era há 16 anos, antes de passar pela morte de seu pai, evento que a deixou “dormindo para a vida”. “Fazer o livro foi tão bom, porque mexeu com sentimento. Eu levei uma foto dele para a oficina e juntei toda a tristeza, transformei ela em escrita e comecei a voltar a viver”, relata.

Um dos integrantes mais novos da turma é Raoni Aguilar, de 26 anos, que conta que o projeto também despertou seu interesse pela leitura. “Eu tinha preguiça de ler, não me motivava, não me concentrava, mas me ajudou a refletir”, constata. Já Claudiomar de Sá Andrade escrevia poesias mesmo antes da oficina, mas nunca teve coragem de publicar conteúdos antes. “Quando a proposta surgiu, todos ficamos muito emocionados”, relembra ele, que escreveu um texto pequeno sobre literatura em si e um conto de ficção sobre a chegada de marcianos à terra.

De forma semelhante a alguns colegas, Ilce Cristina Santos também estava enfrentando uma depressão quando começou a participar do projeto. “Eu não tinha mais vida, e depois comecei a ver que eu tinha uma mulher viva dentro de mim, comecei a enfrentar meus monstros”, garante. Durante o processo, ela perdeu a filha, que tinha necessidades especiais, e escreveu sobre a sua “pequena guerreira” no livro.

Apesar dos quadros graves dos escritores, os contos não são de tristeza, não falam de depressão, ansiedade ou bipolaridade. “É muito bom escrever, é uma forma de desabafar, também ajuda pessoas com sofrimento”, constatou Jane Alenavicius. A amiga Jeanini Figueiró relatou que nunca imaginou que iria conseguir escrever dessa forma, o que a ajudou a perder medos e raivas, além de trazer união, afeto e amizade com os colegas.

“Foi uma nova caminhada na minha vida”, garantiu ela, completando que, embora não esteja completamente curada, agora consegue controlar melhor sua mente. “Pessoas bipolares têm muita raiva, e com isso aprendemos a desabafar, até hoje escrevo quando estou assim”, relata Jeanini, que destacou sua gratidão ao doutor Luiz Ziegelmann pela oportunidade. Jane também não menospreza a importância da oficina: “se mais iniciativas como essa existissem, haveria menos pessoas nos hospitais”, defende.

Susi Ane Oliveira descreve a experiência  como “transformar tristezas e angústia em arte”. Completando o time de escritores, Sílvia Nara Gonçalves constata que, algumas vezes, os sentimentos não podem ser expressados pela fala e, nesse quesito, a escrita ajuda. “Tem muitos casos em que as raivas e sentimentos só são colocados para fora escrevendo”, afirmou. Ela também conta que o afeto e amor entre o grupo foi muito importante para que todos tivessem avanços. Carlos Alberto resumiu o sentimento: “concluímos que somos todos loucos uns pelos outros”, brincou.

Serviço

Contos sem tarja preta, editora Bestiário
Organização de Luís Roberto Amabile e Luiz Ziegelmann
Autores: Alember Duarte, Carlos Alberto, Claudiomar de Sá Andrade, Ilce Cristina Santos, Jane Alenavicius, Jeanini Figueiró, Raoni A, Rosângela Maria Pereira, Silvia Nara Gonçalves, Susi Ane Oliveira
Valor: R$ 20, disponível para encomenda na Palavraria.


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