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30 de outubro de 2015
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17:02

Especial FSM – 2001: O ano em que o Sul descobriu que um mundo novo era possível

Por
Sul 21
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Foto: Ayrton Centeno
Porto Alegre foi a cidade escolhida para receber o encontro que se oporia o Fórum Econômico de Davos |Foto: Ayrton Centeno

Fernanda Canofre

Foto: André Carvalho/Sul21
Foto: André Carvalho/Sul21

A partir desta sexta-feira, o Sul21 começa a publicar uma série de artigos relembrando os 15 anos do Fórum Social Mundial. Toda semana relembraremos uma edição e seus momentos mais marcantes. O próximo FSM acontecerá em agosto de 2016, no Canadá, mas para celebrar a data, a cidade de Porto Alegre receberá uma edição comemorativa entre os dias 19 e 23 de janeiro de 2016.

Uma certa manhã de janeiro de 2000, Oded Grajew estava num quarto de hotel em Paris passando pelos canais da televisão. A visita à França em pleno inverno fora motivada por um encontro sobre responsabilidade social de empresas e um debate sobre a globalização. Como empresário e presidente do Instituto Ethos, seu trabalho estava ligado a este tipo de evento. Oded acabou parando em um canal que falava sobre o Fórum Econômico Mundial de Davos, acontecendo a 800 km dali, na Suíça. No auge do neoliberalismo, na virada do século, os homens do Fórum discutiam o que viria a seguir. “Em Davos, se falava que tínhamos chegado ao fim da História, ao modelo ideal, que os que se opunham só sabiam criticar, não tinham propostas e que o mercado desregulamentado iria levar todos ao bem estar e à prosperidade”, lembra Oded. Ali surgiu a ideia do Fórum Social Mundial.

A segunda metade dos anos 1990 serviu para avisar que o modelo econômico regendo o mundo havia expirado seu prazo de validade. Em 1999, perto de 100 mil manifestantes saíram às ruas de Seattle, nos Estados Unidos, para barrar as negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), chamando a atenção para o avanço da agenda neoliberal e tudo o que ela representava. Antes disso, Berlim, Paris, Madrid, já haviam tido demonstrações do mesmo tipo, enquanto as capitais recebiam reuniões do Banco Mundial. Ao mesmo tempo em que o neoliberalismo ascendia no período pós- Guerra Fria, um movimento contra os efeitos colaterais gerados por ele também se consolidava. A diferença era que grandes multinacionais, representantes de instituições internacionais e autoridades de Estado que queriam estar incluídas nas “sociedades abertas de mercado” tinham um território próprio: Davos e as reuniões que aconteciam anualmente há 30 anos.

foto Ayrton Centeno
Foto: Ayrton Centeno

“Aquele evento, como os anteriores, me incomodava enormemente”, conta Oded. Para ele, a esquerda internacional muitas vezes se dispersava e fragilizava seu poder de ação para se contrapor à Davos. Naquela manhã de janeiro no quarto de hotel, tudo isso lhe passava pela cabeça enquanto pensava no que poderia ser feito como contestação ao encontro suíço. “Pensei: para se contrapor ao Fórum Econômico Mundial, nada melhor do que termos um Fórum Social Mundial. Teria que ser na mesma época para que houvesse o confronto das propostas e das visões, para obrigar as pessoas a fazerem suas escolhas (priorizar o social ou o econômico), mostrar que um Outro Mundo é Possível. Seria também uma oportunidade das organizações sociais temáticos, locais, nacionais, regionais e mundiais se encontrarem, se articularem, ganhar força política para concretizar seus objetivos”. Na mesma hora, Oded compartilhou a ideia com a mulher, Mara, que o acompanhava. Assim que ela aprovou, começou a reunir gente para colocá-la em prática.

O primeiro a ouvir falar do Fórum Social Mundial foi Chico Whitaker, arquiteto, ativista e amigo pessoal de Oded, que também andava por Paris na mesma época. Os dois decidiram incluir na conversa o jornalista francês Bernard Cassen, então diretor da Le Monde Diplomatique, que também comprou os planos de um Fórum Social logo de cara. A questão agora era: onde aconteceria essa antítese de Davos?

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Olívio Dutra| Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“Nosso Norte é o Sul”

Entre a lista de nomes de possíveis locais para receber o evento, apareceu Porto Alegre. Na virada do século, a capital do Rio Grande do Sul vivia um momento particular. O governo que seguiu agenda de privatizações para enfrentar a dívida pública do Estado havia sido derrotado nas urnas por Olívio Dutra dois anos antes. As políticas de democracia participativa já colocadas em ação na Prefeitura de Porto Alegre, com o Orçamento Participativo, quando o Partido dos Trabalhadores (PT) assumiu a Prefeitura de Porto Alegre com Olívio, agora eram levadas a todo o Estado. Ali o Fórum encontraria terreno acolhedor de governo local para a sua proposta. Além disso, ao contrário das reuniões internacionais centradas na economia, a capital gaúcha estava no hemisfério sul.

Rapidamente, outras organizações brasileiras e internacionais foram aderindo à ideia. Entre elas: Ação Educativa, Abong, Ibase, CUT, MST, Fundação Ford e a francesa Attac (Associação pela Tributação das Transações Financeiras para ajuda aos Cidadãos). Raul Pont, então prefeito de Porto Alegre, e Olívio se mostraram receptivos à ideia logo de cara. Oded ainda lembra: “Até brinquei com eles dizendo que se tudo desse certo eles não precisariam mais explicar nas suas viagens internacionais aonde fica Porto Alegre”.

O próximo passo foi organizar o evento. De forma participativa, o FSM se transformou em uma Carta de Princípios que orientava seu campo de ação. A valorização da democracia e da diversidade e a rejeição da violência como ação política eram os eixos centrais. A ideia era que o encontro fosse, pela primeira vez, auto organizado: com espaço para todos os grupos desenvolver suas atividades, articulações, manifestos, sem um documento final, mas com vários que mostrassem sua diversidade.

Seis meses depois da manhã em Paris quando Oded assistia a cobertura internacional sobre Davos, o Fórum Social Mundial em Porto Alegre já estava sendo apresentado num encontro da Organização das Nações Unidas, em Genebra, em eventos de grande atenção internacional, como a manifestação em apoio ao ativista José Bové, em Millau, na França.

José Bové | Foto: Wikipédia
José Bové | Foto: Wikipédia

Bové X Monsanto

Em janeiro de 2001, enquanto centenas de autoridades e representantes de multinacionais baixavam outra vez na fria Davos, na esquina do sul, o Fórum Social Mundial acampava em Porto Alegre. Os números pegaram os organizadores de surpresa, indo muito além das expectativas: 40 mil pessoas, vindas de mais de 100 países, queriam discutir outro mundo. Era a primeira vez que tantas pontas do mundo se reuniam pedindo alternativa para a globalização. A imprensa internacional tentou ignorar a reunião ocorrida em uma cidade ao sul do Brasil, mas Porto Alegre influenciou o debate de Davos e teve de ser incluída na cobertura.

E houve ainda a participação de José Bové. O agricultor e ativista francês já era conhecido dos jornais por levantes contra a Monsanto e se tornou um herói nacional depois de tentar impedir a construção de uma unidade da rede de lanchonetes McDonald’s, em Millau, no sul da França. Em 2001, o Brasil estava em pleno debate sobre a legalização de transgênicos e biossegurança, a Monsanto também havia encontrado um espaço de testes no país. Mas no dia 21 de janeiro de 2001, Bové, acompanhado por um grupo de militantes do MST, entrou na área da multinacional na cidade de Não-Me-Toque, no noroeste do estado, e destruiu dois hectares de plantações experimentais de milho e soja transgênicos.

A ação virou caso de polícia. O então deputado federal Frederico Antunes, do PPB, atualmente no PP, apresentou notícia-crime contra Bové motivando sua prisão. Por ordens do Ministério da Justiça, a Polícia Federal deveria agir de forma discreta, mandando o agricultor para fora do país dentro de 24h, sem chamar a atenção da imprensa ou dos movimentos sociais reunidos no Fórum. O roteiro não saiu de acordo com o planejado.

Foto: Ayrton Centeno
Foto: Ayrton Centeno

José Bové, atualmente deputado do Parlamento europeu, ficou detido por 1h40 nas mãos da polícia brasileira. Em entrevista à Folha de São Paulo na época, ele comparou os policiais a “gângsters”, disse que para levá-lo eles “não se identificaram e usaram apenas a força”. Bové contou ainda que teve os braços imobilizados e foi arrastado para um carro sem identificação oficial. O agricultor revelou ainda que os agentes da PF tentavam fazê-lo falar que fora pago para ir a Porto Alegre, em uma tentativa de desacreditar o Fórum e sua organização.

Apesar das negativas da Presidência de República, o jornal Folha de São Paulo apurou que o presidente Fernando Henrique Cardoso e o ministro da Justiça, José Gregori, estavam a par da operação. O ministro francês da Economia Solidária, Guy Hacoet, que também participava do FSM, classificou a ação brasileira como algo “desproporcional” em “defesa da segurança de uma multinacional”.

A organização, por sua vez, temia que o caso Bové “sequestrasse” toda a atenção da mídia sobre o Fórum Social. O que acabou acontecendo em diversos veículos. O jornal Estado de São Paulo, por exemplo, alçou Bové ao status de “estrela” da edição. O ativista ganhou na Justiça o direito a permanecer no país para terminar sua agenda de atividades, além do tempo que a PF havia determinado.

Contrapondo Davos via satélite

As diferenças que separavam Davos e Porto Alegre, o Norte e o Sul, o resort de luxo suíço e as barracas armadas no Parque Harmonia, ficaram ainda mais claras através de um link via satélite. A agência de notícias francesas Article Z organizou uma teleconferência entre os dois Fóruns, com transmissão para Europa, África, Estados Unidos. De um lado, reuniu dois representantes da ONU, o diretor de uma multinacional sueca e o investidor húngaro-americano George Soros. De outro, alinhou representantes de diversos movimentos do sul: desde as Mães da Praça de Maio, da Argentina, passando pela Via Campesina latina, até representantes do sudeste da Ásia e África.

A conversa foi tensa desde o início. A jornalista francesa responsável por mediar o debate desde Davos explicou que a ideia era unir os dois Fóruns no mesmo espaço meses antes, mas que a equipe do Fórum Econômico havia mudado de ideia. Assim, o link entre os dois eventos pareceu a saída mais viável para colocar uma ponte entre eles. O que aconteceu, no entanto, só mostrou o quanto eram grandes as distâncias entre os dois hemisférios.

Segundo o Jornal do Brasil, os homens de Davos apareciam “ora condescendentes, ora irônicos, o tempo todo na defensiva”. E Porto Alegre não recuava. “Nos falam de livre mercado, mas não entendemos esse livre mercado porque nós, os pequenos e médios agricultores, não entramos no mercado. É um mercado controlado e gerenciado pelas grandes multinacionais. Então, é uma situação trágica que estamos vivendo. Milhões e milhões de pessoas no mundo, a cada dia, enfrentam fome e miséria”, afirmou Rafael Alegría, hondurenho representante da Via Campesina, diante do Fórum que celebrava estar mais perto do objetivo de ter em seu grupo os dirigentes das 1.000 empresas mais fortes do mundo.

George Soros, em Davos | Foto: Wikipédia
George Soros, em Davos | Foto: Wikipédia

Do lado de Davos, havia um conformismo de que as coisas eram como eram porque não havia outra maneira. Defendiam a necessidade de crescimento dos países mais pobres para distribuir riqueza, a globalização como um caminho inevitável, até o momento em que George Soros abriu espaço para o primeiro embate direto. Segundo o investidor, pouco podia ser feito enquanto a África tivesse tantos governos corruptos: “A pobreza se origina em casa”, afirmou ele. Trevor Wanek, ativista do icônico bairro de Soweto, em Johanesburgo, África do Sul, afirmou: “Desde que o Banco Mundial, desde que nossos governos se aproximaram de pessoas do tipo de George Soros, nós perdemos um milhão de empregos, enquanto eu estou aqui falando, estamos vivendo uma epidemia de cólera porque o governo foi forçado, por pessoas como Soros, a introduzir a privatização nos serviços básicos de água e eletricidade. Até onde eu sei, os cavalheiros em Davos são a minoria no mundo hoje”.

Oded Grajew participou da conversa. Segundo ele, quando fez perguntas a Soros sobre economia, o investidor lhe forneceu todas as respostas. Porém, quando o repertório de Oded mudou para questões sociais – mortalidade infantil, desigualdade sócio-econômica – Soros já não falava. “Não soube responder a nenhuma. Mostrei a ele a diferença entre nós e Davos”, diz.

Hebe de Bonafini | Foto: Margarita Solé / Ministerio de Cultura de la Nación
Hebe de Bonafini | Foto: Margarita Solé / Ministerio de Cultura de la Nación

Mas a discussão que marcaria o encontro entre os dois Fóruns foi protagonizada pela líder das mães da Praça de Maio, Hebe de Bonafini. Bonafini estourou a tensão para além da superfície. Ela se dirigiu aos homens de Davos como “inimigos, monstros hipócritas em suas respostas” e pediu que revelassem “quantas crianças matavam por dia com suas políticas assassinas”. A ativista confrontou Soros diretamente: “Me responda, senhor Soros! Olhe na minha cara, se te animas!”. O bilionário não conseguiu pensar em uma resposta, seguiu apenas sorrindo, e explicou: “Estou tentando ter um diálogo com você, mas você parece que não quer ter qualquer diálogo comigo”.

A própria ONU ficou sem resposta em alguns momentos. Quando a mediadora do encontro perguntou porque a organização não teve representação oficial em Porto Alegre, ao mesmo tempo em que Kofi Annan caminhava em Davos, seus representantes foram evasivos. Segundo eles, havia representantes da da instituição no Brasil, mas não identificaram escalão, departamento, nada mais. O político e ativista filipino Walden Bello criticou ali o que chamou de “prostituição da ONU”.

Nada será como antes

Em sua primeira edição, o Fórum Social Mundial conseguiu cumprir com sua missão. Depois de 30 anos de encontros anuais em Fóruns Econômicos Mundias, em Davos, sem nenhum contraponto ou inserção de vozes além daqueles que já tinham poder, Porto Alegre foi berço de um novo canal.

“A simples existência do Fórum Social Mundial retira toda a legitimidade de Davos, que parecerá daqui por diante – se continuar existindo – uma simples reunião de interesses corporativos”, analisou o diretor da revista Le Monde Diplomatique, Bernard Cassen, ao final do evento em 2001. “O que aconteceu na capital gaúcha constitui uma verdadeira reviravolta da diversidade, os movimentos que se opõem à mundialização liberal – a saber, uma mundialização pelo e para o poder do dinheiro – vão agora não só continuar a marcação cerrada aos mandantes do mundo, mas também avançar nas propostas resultantes de consensos internacionais”.

De fato, a primeira edição do Fórum deu combustível para um novo debate na política brasileira e para a esquerda em geral. Os anos que ainda estavam por vir iriam mostrar isso. “Todos nós nos enchemos de esperanças que Um Outro Mundo é Possível. Resolvemos marcar o próximo encontro para o ano seguinte na mesma data”, relembra Oded Grajew. No avião que partiu do aeroporto Salgado Filho de volta para São Paulo, o idealizador do Fórum se sentia agradecido. Ele só pensava que nunca havia participado de nada igual aqueles dias de verão no sul.

Foto Ayrton Centeno
Foto: Ayrton Centeno
Foto: Ayrton Centeno
Foto: Ayrton Centeno

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