Sequestro dos Uruguaios: o caso que revelou a Operação Condor em Porto Alegre ganha versão em quadrinhos

Por
Luís Gomes
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História em quadrinhos escrita por professores brasileiros conta a história  do caso do "sequestro dos uruguaios" | Foto: Operação Condor
História em quadrinhos escrita por professores brasileiros conta a história do caso do “sequestro dos uruguaios” | Foto: Operação Condor

Fernanda Canofre

A tarde da sexta-feira, 17 de novembro de 1978, não foi fria mas teve chuva em Porto Alegre. Dois dias depois das eleições para Câmara e o Senado, o Rio Grande do Sul se mantinha como reduto oposicionista do regime militar e, sem terminar a contagem de votos, já colocava Pedro Simon do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) na cadeira de Senador. Luiz Cláudio Cunha, repórter e diretor da sucursal da revista Veja na capital gaúcha, esperava a reportagem com Simon para fechar a edição da semana quando recebeu um telefonema carregado de sotaque castelhano. A voz do outro lado da linha pedia que ele fosse até um apartamento da rua Botafogo, no bairro Menino Deus, averiguar a situação de um casal de uruguaios que não dava notícias há dias. Uma semana antes, Lilian Celiberti, uruguaia morena e baixinha, de 29 anos, que morava há dois meses na cidade, havia deixado seu apartamento e seguiu calma para a Estação Rodoviária. No entanto, ao invés de encontrar o que buscava, Lilian deu de cara com um grupo de policiais do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). E foi assim que tudo começou.

Depois da abordagem na rodoviária, os agentes do DOPS ainda invadiriam o apartamento de Celiberti, no bairro Menino Deus, atrás de seus dois filhos pequenos – Camilo e Francesca – e de seu companheiro Universindo Díaz. Com a promessa de que poderiam pegar alguém “maior” da organização na qual militava, Lilian conseguiu segurar a polícia por uma semana. Tempo de Cunha, curioso com a ligação misteriosa e acompanhado do fotógrafo JB Scalco, chegar na casa e pegar a operação policial em pleno curso. O caso – que ficou conhecido como “O sequestro dos uruguaios” – levou meses de investigação dos dois lados da fronteira e se tornou o responsável por escancarar o trabalho conjunto das ditaduras do Cone Sul debaixo da Operação Condor. Agora, trinta e sete anos depois, os dias de agonia vividos pelos uruguaios são recontados em Tchau, Yano, uma história em quadrinhos assinada por Ramiro Reis e Rafael Costa.

A ideia surgiu ainda em 2008. Ramiro dava aulas de História em uma escola municipal de Gravataí e já estava há dois anos trabalhando na pesquisa de sua dissertação de mestrado sobre o caso, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Num café com Rafael, professor de Geografia na mesma escola e que gostava de desenhar charges e quadrinhos, veio a proposta do projeto. No mesmo ano, durante o lançamento do livro de Luiz Cláudio Cunha – “O sequestro dos uruguaios: Uma reportagem dos tempos da ditadura” – na Feira do Livro, de Porto Alegre, os dois ganharam o apoio de Lilian e Universindo, o Yano.

Capa da "Tchau, Yano", HQ que será lançada oficialmente neste sábado | Foto: Reprodução
Capa da “Tchau, Yano”, HQ que será lançada oficialmente neste sábado | Foto: Reprodução

A história se tornando história

Enquanto Rafael trabalhava num livro que publicaria em 2009 (“Mais que palavras”, sobre a vida do operário anarquista argentino Miguel Roscigna), Ramiro seguia com a pesquisa que serviu de base para o livro. A HQ ia se desenvolvendo aos poucos. “Foi se tornando uma história sobre nós fazendo a história”, conta Rafael. “O normal é fazer o roteiro primeiro e depois partir para os esboços e a arte final. Mas a gente deixou o roteiro meio aberto, fomos tendo as ideias e escrevendo e aí eu já desenhava, antes de dar a história por encerrada”.

Primeiro veio a decisão do estilo. As fotos do uruguaio Alberto González, que ficaram escondidas em Montevidéu desde que ele foi para o exílio até 2006, serviram como partida. Depois, vieram os quadrinistas. Ainda que os traços presentes na HQ pareçam ecoar referências do outro lado do Río de la Plata, como o Perramus dos argentinos Juan Sasturain e Alberto Breccia, Rafael revela que sua principal inspiração veio de mais longe. “Joe Sacco foi a referência principal. Quando a gente estava pensando em como contar a história, se a gente ia contar como se fosse uma ficção fazendo o Yano e a Lílian vivendo em Porto Alegre, inventando diálogos entre eles, ou se a gente ia contar como se fosse um documentário. Tem caras que fazem isso, Joe Sacco, Spielgman (Art Spielgelman, autor de Maus) também, mas o Sacco é mais como repórter”.

Assim, o roteiro de “Tchau, Yano”, segue as vidas dos principais personagens do caso de 78, mas também de seus autores durante cinco anos. Nos quatro capítulos, em que a história intercala as conversas de Rafael e Ramiro com flashbacks históricos, aparecem ainda episódios como o processo enfrentado por Luiz Cláudio Cunha, porque “Irno”, um dos agentes que participou do sequestro, não gostou de ser associado à imagem de “torturador” no livro do jornalista; a participação de Camilo Casariego, o filho de Lilian que na época do sequestro tinha 8 anos, em um seminário sobre as ditaduras militares em Porto Alegre; a morte misteriosa da escrivã que viu Lilian e os filhos no Palácio da Polícia; e o momento em que os autores ficaram sabendo da morte de Universindo, em 2012. O Yano, como era conhecido, sempre perguntava sobre “a historieta”, mas não teve tempo de ver a publicação final. Por isso, o título virou uma homenagem a ele.

Nas discussões os dois também falaram sobre como abordar graficamente os dias de tortura e violações enfrentados por Lilian e Universindo nas mãos dos agentes uruguaios e brasileiros. Ramiro e Rafael optaram por não entrar nos detalhes já conhecidos do modo de operar do regime. “Como a gente é professor, pensamos em algo que os alunos pudessem ler. Pensei em como seria essa história em uma escola. Pensei nos momentos de tortura: ‘Bah, vamos colocar alguém num pau-de-arara? Alguém levando choque?’. E a gente não fez isso. Tem uma cena da Lilián que fica subentendido,  que simula isso. Tem uma cena que levam o Universindo por uma porta. Mas cenas de tortura a gente não publicou”, diz Rafael.

Os dois ainda tiveram de lidar com o fator da falta de tempo e com a editora. O primeiro problema foi resolvido quando, para a terceira parte, onde recontam os dias do sequestro e a luta de dona Lilia Celiberti, a mãe de Lilian, para recuperar os netos, resolveram mudar o traçado e convidaram o desenhista Ricardo Fonseca para o trabalho. Ele e Rafael já eram velhos conhecidos, anos antes haviam publicado um fanzine juntos e desenhado contos de Daniel Galera. Já a questão da editora quase virou novela. Depois de um ano esperando uma resposta, acabaram encontrando lugar na

HQ narra as ações conjuntas das polícias brasileiras e uruguaias durante a Ditadura | Foto: Reprodução
HQ narra as ações conjuntas das polícias brasileiras e uruguaias durante a Ditadura | Foto: Reprodução

Deriva, uma editora anarquista de Porto Alegre.

A memória que não esquece

Sem notícias do destino de Lilian e Universindo ou do paradeiro das crianças, a comunidade internacional começou a fazer pressão nas ditaduras. Com os agentes flagrados por jornalistas, todo mundo já sabia nas mãos de quem estavam os uruguaios. As Forças Conjuntas do Uruguai resolveram então falar através de um comunicado: “Um casal de uruguaios, Lilian Celiberti e Universindo Rodriguez Díaz, e duas crianças, Camilo Casariego Celiberti e Francesca Casariego Celiberti, foram detidos ao atravessarem a fronteira do Brasil com material sedicioso e por integrarem uma vasta organização internacional marxista”. A reportagem publicada pela Coojornal, que acompanhou o caso até Montevidéu, trouxe a pergunta: “Como poderiam estar no Uruguai quatro pessoas que 8 dias antes estavam em sua casa, em Porto Alegre, detidas por policiais brasileiros?”.

Os desaparecimentos eram prática comum da qual todo mundo sabia, ninguém falava. Até o sequestro dos uruguaios em Porto Alegre, 117 cidadãos uruguaios que se opunham ao regime militar haviam sido sequestrados e/ou assassinados. Mas dessa vez o crime tinha testemunhas. Uma delas, um uruguaio fanático pelo Internacional, de apenas 8 anos. Camilo foi o responsável por identificar o Palácio da Polícia, na Avenida Ipiranga, desenhando um “riozinho” que ele não sabia chamar de Arroio Dilúvio, e reconhecer Pedro Seelig, delegado do DOPS, como um dos homens que esteve na sua casa. Revelava-se assim a ligação entre as polícias dos dois países na ação.

A história de Lilian e dos filhos virou exceção num tempo de crianças desaparecidas, identidades roubadas e mortes nunca esclarecidas.

Enquanto no Brasil, a memória dos arquivos e depoimentos sobre o período militar só começou a ser aberta em 2012, com a Comissão Nacional da Verdade, nos vizinhos do Sul, a ferida nunca esteve fechada. “Na Argentina e no Uruguai a prática do escracho sempre aconteceu. De procurar a casa de um torturador e fazer a denúncia para os vizinhos, pixar a casa, colocar a cara dele por toda a cidade. No Brasil a gente não teve isso. Teve algumas tentativas em grupos que eu até participei, outros grupos começaram muito recentemente a fazer isso”, lembra Rafael.

Para ele, é o trabalho de começar a raspar essa superfície calada que justifica o livro.

“Qualquer forma de fazer memória sobre a ditadura é importante e essa história em quadrinhos tenta ser mais uma maneira de fazer isso. Essa história trata de desaparecimento político e desaparecimentos ainda acontecem. A gente teve o caso do Amarildo, agora no México o caso dos 43 estudantes desaparecidos, o Estado, na América Latina, não deixou essa prática de desaparecer pessoas. No Brasil especificamente, esses agentes que participaram disso, não foram punidos ou tiveram punições muito brandas (apenas dois agentes foram presos pelo sequestro, mas com penas de seis meses cada). Por isso segue até hoje”.

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“Tchau, Yano” tem lançamento oficial neste sábado, 13 de junho, às 15h, no Bar Ocidente, em Porto Alegre. O livro pode ser adquirido no site da editora Deriva – http://www.deriva.com.br ou na página oficial no Facebook – https://www.facebook.com/tchauyano?fref=ts.

 


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