Breaking News|Últimas Notícias>Geral
|
21 de setembro de 2014
|
19:10

Anteprojeto de lei busca colocar migrações como questão de direitos humanos no Brasil

Por
Sul 21
[email protected]
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Imigrantes ganeses em Caxias do Sul vivem com poucas condições abrigados em igreja | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Débora Fogliatto

Nos últimos meses, o Brasil tem recebido imigrantes africanos e latino-americanos de forma mais abundante do que o regular. No Rio Grande do Sul, a presença de senegaleses, haitianos e ganeses em Caxias do Sul preocupou moradores e autoridades, que se esforçaram para auxiliá-los e garantir ajuda. Eles se depararam, no entanto, com a falta de apoio da lei para acolher essas pessoas. Dezenas de ganeses, chegados em sua maioria no início deste ano, protocolaram pedidos de refúgio, mas não são realmente fugitivos de perseguições ou conflitos armados.

Para solucionar essa vácuo legislativo, uma comissão de especialistas criada pelo Ministério da Justiça (pela Portaria n° 2.162/2013) elaborou o Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção de Direitos dos Migrantes no Brasil. O documento trata os migrantes a partir de uma visão de direitos humanos, em oposição à uma questão de segurança, como era visto até então. Já finalizado, o anteprojeto ainda precisa passar pelo Congresso brasileiro, onde poderá ser modificado, para virar lei.

Uma das especialistas que elaborou o documento foi Deisy Ventura, professora de Direito Internacional e Livre-Docente do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Especialista na área de direitos dos imigrantes, Deisy esteve em Porto Alegre para participar do V Seminário Nacional da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM), onde falou sobre o anteprojeto e criticou a atual legislação relacionada a migrantes no Brasil.

Ela observou que uma das consequências do mundo capitalista globalizado é que se permite que as pessoas circulem bastante para comprar e consumir, mas ao mesmo tempo não se permite que elas se instalem nos lugares, há uma rastreabilidade para controlar onde elas estão indo. O que agrava a situação é que países que tiveram crescimento econômico nas últimas décadas, como os BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) não têm controle de fronteiras e, ao mesmo tempo “não têm política re integração, de regularização migratória, não oferece o mínimo provimento da dignidade humana”, conforme afirmou Deisy.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Deisy considera a legislação atual incompatível com a constituição brasileira | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

O anteprojeto 

A lei atualmente em vigor, a 6815/1980 é um dos instrumentos donativos das leis de segurança nacional. “A preocupação está em dar ao Estado poder de expulsar pessoas indesejadas, na época em que foi criada, da ditadura, a linha de frente era militantes de esquerda. Mas claro que começam a ser os desafetos de qualquer forma. Essa lei proíbe a regularização migratória de quem entra aqui sem autorização para trabalho ou sem visto”, explicou Deisy.

Ela considera a legislação “incompatível com a constituição e com os tratados de direitos humanos no Brasil”. Após outras tentativas de se atualizar a lei que acabaram prejudicadas por desinteresse político, especialistas foram convidados para formular o anteprojeto, para o qual realizaram audiências públicas em novembro de 2013 e maio de 2014. Em 31 de julho, após receber contribuições da Conferência Nacional e Migrações, o texto foi concluído e entregue ao Ministério da Justiça.

No documento, consta que estrangeiros — embora essa palavra não exista no anteprojeto, que utiliza apenas “migrantes — podem permanecer no país por até dois anos procurando emprego. Não se trata de um instrumento trabalhista nem de segurança, mas sim de direitos humanos, segundo Deisy. “A nossa grande pergunta desde que começamos foi: quem ganha com a dificuldade de regularização migratória? Estado não sabe quem são esses imigrantes, quantos, onde, como vivem. E como saberá, se dificulta sua regularização? Ninguém ganha com as irregularidades a não ser redes criminosas de tráfico de pessoas e coiotes”, apontou.

Outra inovação no projeto de lei é a criação de uma autoridade nacional migratória, que retiraria algumas competências de setores do Ministério do Trabalho e da Justiça e da Polícia Federal. “Hoje quem faz esse trabalho são terceirizados da polícia, que não falam idiomas e têm interpretação restrita. Retiramos da Polícia Federal essa competência. Isso combate outra visão que é a segurança, de que estrangeiro é um bandido em potencial. Não existe nenhum estudo sério no mundo que ligue aumento da migração com aumento da criminalidade”, garantiu.

Ebola: o outro como uma bomba biológica em potencial 

Outro ponto destacado por Deisy foi a reação do governo do Acre em relação à possível propagação do vírus do ebola, que ela considera “absurda e desproporcional”. O estado pediu ajuda ao governo federal para controlar a entrada de imigrantes senegaleses, alegando temer a entrada da doença no país. A professora citou dados relativos a outras doenças: em 2013, um milhão de pessoas morreram por tuberculose; 855 mil por malária; um milhão e 300 mil por complicações ligadas a HIV/AIDS. Por ebola, foram  4 mil casos e mais de 2 mil mortes. “Por que tanto escândalo se os números são ridículos comparados ao que acabei de dizer?”, questionou, apontando que o ebola tem sido usado como uma desculpa para não se permitir a entrada de imigrantes africanos.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Deisy questiona por que tanto “escândalo” das autoridades em relação ao ebola | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Além disso, o ebola tem se propagado em lugares com poucas condições de tratamento de saúde. “Elas estão passando fome, não recebem comida e água suficiente, não chegou dinheiro lá. Empresas não investiram no tratamento, locais de isolamento são os mais pobres. Mas um sujeito fugiu do isolamento para ir ao mercado e as pessoas começaram a tentar linchar, pessoal sanitário o levou a força de volta para o isolamento. Vemos o outro como bomba biológica em potencial”, contou.

Ela relatou o acontecido no final de agosto, quando dois jovens africanos chegaram no porto de Santos e não puderam permanecer por causa do ebola, baseando-se na ideia de que o vírus tem tempo de encubação de até 21 dias. “Mas o ebola só é contagioso quando é sintomático, não tem como esconder. A pessoa se contorce de dor, sangra pelos olhos, pelo nariz, é um vírus extremamente agressivo e terrível. Só se transmite pelo contato com os fluidos corporais, isso se descobre com 2 minutos de Google. Esse juiz mandou dois meninos para albergue onde vão os drogados, doentes mentais… Eles se afastaram e fugiram”, disse. “É a epidemia do medo do vizinho, do terror”.

Para ela, o que precisa ser feito é treinamento de pessoal da saúde e pesquisas na área, com encaminhamento para serviços especializados. “É um absurdo e desproporcional esse tipo de comportamento das autoridades. O que precisa ser feito é identificar pessoas contaminadas e oferecer tratamento, não negá-los entrada. O que é isso? Eu vou dizer que não entre por vir de certo país, isso é um absurdo”, disse ela ao Sul21, destacando que exite um plano de contingência do ebola no Brasil, elaborado pelo Ministério da Saúde, assim como hospitais de referência nas cidades brasileiras com equipamentos necessários.

Entrevista

Após a palestra, Deisy concedeu uma breve entrevista ao Sul21, em que fala sobre a relação da mídia e da população com os casos de imigração no Brasil, além de esclarecer alguns pontos relacionados ao anteprojeto. Confira a íntegra:

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Centenas de senegaleses chegaram a Caxias do Sul no ano passado | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – A senhora conseguiu perceber alguma característica relacionada à cobertura da mídia sobre os imigrantes recentes aqui no Brasil?

Deisy Ventura – Ainda não vi estudo sistemático sobre a repercussão da imprensa, mas o que tem ocorrido é que, embora o fluxo de imigrantes seja continuo desde que se iniciou esse novo ciclo de imigrações internacionais, há diferenças nesses fluxos mais recentes em relação à origem dos imigrantes. Porque a gente vem com a resposta natural da globalização desde o final dos anos 1990 até meados dos anos 2000 com essa vinda tranquila, contínua de imigrantes principalmente latino-americanos. Mas quando chega os africanos é o mesmo fenômeno só que com origens diferentes. E também em função dos conflitos armados mais recentes que causaram um fluxo muito importante de pessoas deslocadas, da Líbia, Síria, etc, nós tivemos uma diversificação de nacionalidades de quem vêm. Essa novidade aparece nos meios de comunicação de uma forma diferente do fluxo mais tranquilo. Não que ele não possa ser tranquilo também, mas esse novo é mais “estressante” vamos dizer assim do que o anterior.

Mas nós vimos, por exemplo, na imigração latino-americana, principalmente em São Paulo, as manchetes sobre o trabalho escravo e nesse sentido a imprensa tem um papel muito importante de ajudar a combater as redes de exploração do trabalho. Mas agora estamos falando de africanos essencialmente ou de haitianos e eu acredito que houve um deslize dos meios de comunicação em muitos momentos em relação ao modo como se falou das chegadas dos haitianos. Como se fosse algo representativo para um país com as proporções do Brasil, não é representativo o número de haitianos que chegaram. Não é o destino preferencial dos haitianos, embora seguramente eles têm a esperança de que haja uma acolhida no Brasil.

Se tu fores olhar o quanto de haitianos há na República Dominicana, no Canadá tu vais ver que esse não é o fluxo principal. Em relação aos africanos também se aplica a questão do racismo, porque são imigrantes negros e a forma como se expressa o racismo não será direta. Nenhum meio de comunicação vai falar “nós não queremos que venham negros”. Mas se vale de outros subterfúgios para essa questão, como “eles vão roubar empregos dos brasileiros”.

Sul21 – Essa história que tu falaste agora de que “vão roubar empregos”, que se usa como desculpa. Deu pra observar já a manifestação da população se existe isso? Se existe racismo em relação aos imigrantes? Principalmente nas cidades que receberam. 

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Deisy: “Nunca foi comprovado que o estrangeiro tirou emprego do nacional”| Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Deisy – Eu acho que aí eu só poderia falar caso a caso. É muito difícil mensurar. Certamente há episódios de racismo, mas o que me parece mais importante é identificar quando um discurso de migrações se transforma num subterfúgio para veicular o racismo. Em relação ao brasileiro é mais difícil ocultar o racismo, mas em relação ao estrangeiro é muito fácil. Basta fazer um discurso nacionalista, soberanista, dizer que ele é uma ameaça à segurança e ao mercado de trabalho. Acho que essa á sutileza do racismo quando a gente fala dele no plano das migrações, passa fácil dentro de outro discurso que nunca foi comprovado. Nunca foi comprovado que o estrangeiro tirou emprego do nacional, nunca foi comprovado que aumenta a criminalidade e muito menos que ela traz doença.

Sul21 – Tu falaste que no anteprojeto vocês optaram por usar “migrante” ao invés de usar a palavra “estrangeiro”. Qual o significado dessa escolha?

Deisy – É a tentativa de mudar o marco jurídico. Porque a lei vigente se chama o “estatuto do estrangeiro” e ela reflete o momento em que nós deixávamos de ver aquele que vinha de outro país como alguém que ia povoar nosso território, como alguém que ia construir nosso território, que no Brasil durante muito tempo eram chamados de colonos, e começamos a ver a pessoa como uma estranha. Porque a origem da palavra estrangeiro é justamente “estranho”. Então a gente toma uma atitude ao falar de migrantes. Porque inclusive o anteprojeto que nós propusemos tenta proteger também o brasileiro que também vai para o exterior, vê as migrações como essa ida e volta, sobretudo vê as migrações como “estado”, no sentido de “estar”.

Eu hoje vivo num país da qual sou nacional, amanhã eu posso trabalhar em outro país, querer ficar lá ou não voltar. Essa ideia de que a gente se move combina muito mais com migrações do que com essa condição de estrangeiro.  As pessoas que têm mais de uma nacionalidade, por exemplo, se escandalizam com essa questão do estrangeiro mas têm na gaveta um passaporte italiano ou espanhol e acham o máximo ter nacionalidade europeia.

A palavra “estrangeiro” muito mais facilmente se presta a essa alcunha de inimigo, adversário, ou do outro que eu não sou capaz de aceitar. Se nós mantivermos o conceito do estrangeiro sem pensar nessa ida e vinda, sem pensar no ser ou em estar, nós criamos uma figura humana mais vulnerável, duplamente vulnerável. Ela é vulnerável por todas as formas de relacionamento com o Estado e individuais que ela tem por estar aqui,  mas ela tem uma dimensão adicional de vulnerabilidade que é a regularização migratória, de aceitar a sua presença nessa jurisdição. Por isso então a gente quis abandonar essa expressão, que é da época da ditadura e falar na linguagem das Nações Unidas. As Nações Unidas falam essencialmente a linguagem das migrações e não do nacional e do estrangeiro.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Deisy: “Existe um problema muito sério da cultura dos Estados Unidos de política migratória restritiva ficar sem a estrutura” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Essa questão do nacionalismo me lembra muito os Estados Unidos. Tu achas que o Brasil corre o risco de se tornar como os EUA, que filtra quem pode entrar, que barra os imigrantes dos países mais pobres? 

Deisy – Embora eu não tenha base científica sobre isso, eu acho que isso é impossível no Brasil, em função de que nós não temos o domínio, o controle das nossas fronteiras como eles. Os Estados Unidos chegaram a fazer um muro em relação ao México. Eu não vejo no Brasil as condições objetivas para que haja um investimento tão grande de controle de fronteiras e acredito que nós não temos sequer os recursos para isso, seria uma questão de priorização de destinação orçamentária que não me parece pautada hoje.

Mas existe um problema muito sério que é o da cultura dos Estados Unidos de política migratória restritiva ficar sem a estrutura. Temos normas restritivas que só se aplicam para alguns que a gente pesca, não é uma malha que nem nos Estados Unidos que fica funcionando permanentemente, que cada um que deve entrar passa por um processo de controle ou até de humilhação, constrangimento. A gente não faz isso para entrar no Brasil, mas tendo uma legislação restritiva aquele que for pescado irá sofrer todas as consequências. Seria a subsistência de uma cultura de inspiração americana num contexto institucional tropical.

Sul21 – Tudo isso passa pelo fato de que o lugar da onde tu vens define quem tu és no lugar para onde se vai. É uma questão cultural, de fronteiras definidas. Existe alguma coisa que possa ser feita nesse âmbito, internacionalmente, para se mudar essa cultura?

Deisy – Primeiro é importante ter a consciência de que nós mudarmos a legislação não vai mudar a cultura necessariamente. A legislação ajuda muito a possibilitar o exercício dos direitos, a ruptura da invisibilidade, corrigir essa distorção que é o pedido de refúgio para quem não é refugiado e o limbo jurídico em que as pessoas vivem no país em função da impossibilidade de regularização migratória. Mas do ponto de vista cultural as tarefas são múltiplas. Isso depende também do tipo de migração que pretendemos referir. Por exemplo, em relação aos migrantes de países vizinhos, podemos trabalhar a identidade brasileira como uma identidade latino-americana, porque está muito distante. No Rio Grande do Sul ainda é um pouco diferente, mas de modo geral o brasileiro não se vê como latino-americano. Só essa questão da identidade regional já ajudaria muito nessa mudança cultural.

E também a ruptura, que vem muito pela via da sociedade de consumo, da idealização do mundo desenvolvido. O mundo desenvolvido está em colapso, não deu certo o modo de vida lá. Pode haver um grau maior de efetividade de direitos, mas já existem bolsões enormes de pobreza no mundo desenvolvido. Então vamos falar da pobreza nos EUA e na Europa, vamos romper essa idealização. Isso passa pela educação, por movimentos culturais, pelo apoio a movimentos culturais, por uma abertura ao outro.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Ganeses vieram em busca de emprego | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Uma coisa que eu sempre me pergunto é o que leva essas pessoas a abandonarem seus países e virem para o Brasil, por exemplo, sem nenhuma garantia, em busca de emprego?

Deisy – Existe uma parte do fluxo migratório que é movida por conflitos armados, por países em que há uma grande instabilidade política. Podemos perceber isso com o pessoal da Guiné, por exemplo. Mas existem outros que vêm porque simplesmente entendem que aqui vai haver uma chance de vida melhor. Então é muito difícil falar desse fluxo migratório que vem da África como uma coisa só. E mesmo nesses países com conflitos armados pode haver essa vinda por razão profissional. O que eu acho que é muito importante esclarecer é que mesmo os que não são hipossuficientes em seu país de origem, ao ter que pagar para uma rede de tráfico de pessoas para entrar em algum lugar, eles se tornam hipossuficientes. E isso é uma coisa muito importante de entender. Se facilitarmos a regularização migratória, não precisamos de regularização migratória tão ampla. Nós temos que ter mecanismo de acolhida humanitária para quem realmente precisa, mas há outros que acabam sendo com ajuda humanitária e que se chegassem sem precisar se valer de redes de tráfico de pessoas chegariam pelo aeroporto de Guarulhos com uma poupança. Mas fluxos migratórios são sempre complexos e é muito difícil falar num conjunto.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora