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2 de maio de 2014
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13:34

Pela ordem e pela Copa do Mundo em doze Estados

Por
Sul 21
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Pela ordem e pela Copa do Mundo em doze Estados
Pela ordem e pela Copa do Mundo em doze Estados

Ciro Barros
Agência Pública

“É a primeira vez que você anda com batedor sem estar sendo preso, hein?”, brinca atrás de mim um fotógrafo, se dirigindo a um colega de profissão que estava ao seu lado no ônibus.

O comentário desata uma gargalhada geral só interrompida por uma freada brusca do motorista – um policial militar de farda camuflada, que dirige cercado de batedores da Força Nacional para evitar o trânsito. Os cerca de quarenta passageiros são todos jornalistas, de diversos Estados, convidados a participar do seminário “Cobertura Jornalística em Ações de Segurança Pública”, ministrado pelo Ministério da Justiça e pela Força Nacional de Segurança Pública. Durante dois dias – 28 e 29 de março – ficaríamos hospedados na base da FSN, no Gama (DF) para “promover a troca de informações entre profissionais de comunicação e de segurança pública sobre aspectos relativos às atividades operacionais de ambos”, como dizia o convite para o curso, no site do Ministério da Justiça.

Efetivo da Força em formação para conter a falsa manifestação. Um policial ficou ferido no exercício / Foto: Ciro Barros/Agência Pública
Efetivo da Força em formação para conter a falsa manifestação. Um policial ficou ferido no exercício / Foto: Ciro Barros/Agência Pública

Na base, que reúne contigente de policiais militares de diversos Estados, recebemos a primeira instrução: “Desçam lá e façam o trabalho dos senhores, como os senhores estão acostumados a fazer”. Fomos então cobrir a “manifestação” simulada pela tropa, com combatentes e oponentes – representados por militares mascarados atrás de uma barricada, encoberta por fumaça preta.

A encenação, levada a sério, acaba com um ferido real: um dos falsos manifestantes arremessou um tijolo que acertou em cheio a boca do companheiro de farda. O policial teve que passar por uma cirurgia e levou pontos no lábio superior. Um acontecimento de rotina, segundo nos disseram diversas vezes durante o curso.

Regularmente, a Força treina durante três semanas policiais militares, bombeiros, policiais civis e peritos criminais vinculados às secretarias de segurança pública dos estados conveniados, que depois retornam aos seus estados de origem. Aqueles que tiverem obtido um conceito “muito bom” nos testes da Força, passam a integrá-la. Segundo o Boletim de 2013 da Força Nacional de Segurança Pública, mais de 10 mil homens compõem o efetivo do programa; e 142 operações em 23 unidades da federação foram executadas desde 2004.

Nesse ano, a Força se prepara para a possibilidade de entrar em campo na Copa do Mundo em doze Estados. O governo federal pode enviar seus homens no momento que quiser, desde que considere estar diante de uma situação de emergência. O emprego deve ser principalmente das polícias militares. Em Natal, por exemplo, já está definido que 300 homens da Força Nacional vão reforçar o efetivo da PM potiguar. Segundo a Portaria 394, de 4 de março de 2008 , o reforço de policiamento ostensivo pela Força Nacional está previsto em seis situações, dentre elas a contenção em áreas de “grande perturbação da ordem pública”, bloqueios de rodovias e em grandes eventos públicos de repercussão internacional. Quase todas as manifestações durante a Copa podem ser enquadradas nesses critérios.

Criada pelo Decreto 5.289 de 2004, a Força Nacional de Segurança Pública é um programa de cooperação federativa entre estados para situações de emergência no campo da segurança pública. Um exemplo recente desse tipo de emergência foi a greve de policiais militares da Bahia, na semana passada. Sem os policiais militares para fazer o chamado policiamento ostensivo, atribuído à PM pelo artigo 144 da Constituição, o governador baiano Jaques Wagner (PT) pediu o apoio da Força Nacional ao governo federal que enviou os homens da Força para a Bahia.

“O que nós fazemos é otimizar recursos. Se há uma crise em algum estado, nós checamos quais estados podem enviar homens para conter a crise”, afirma o coronel gaúcho Alexandre Augusto Aragon, diretor da Força Nacional. Além dos salários regulares que recebem das secretarias estaduais de segurança, os profissionais recebem diárias pagas pelo governo federal quando acionados pelo programa.

Inicialmente, a atuação da Força se restringia ao reforço ao policiamento ostensivo feito pelas polícias militares dos estados conveniados. Dez anos depois de sua criação, a Força Nacional é um departamento da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, também tem entre o seu corpo bombeiros militares, policiais civis e peritos criminais e desempenha até funções de alçada da Polícia Federal, como proteção a testemunhas e defensores de direitos humanos, patrulhamento das fronteiras e combate a crimes ambientais.

Até o ano passado, esse contingente agia somente com um pedido expresso dos governadores estaduais. O decreto 7957, de 12 de março de 2013, em meio a uma série de outras determinações, incluiu quatro palavras no decreto original de criação da Força Nacional que modificou essa dinâmica.

Guarda Pretoriana?

“Foi uma alteração muito marota que foi feita. O decreto fala muito sobre a questão da atuação das Forças Armadas na Amazônia, sobre a Companhia Ambiental da Força Nacional e depois vem uma alteração no decreto original de criação da Força. Essa alteração passou despercebida em meio a outras medidas”, diz João Rafael Diniz, advogado que milita no grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo.

A alteração a que ele se refere foi feita no artigo 4º do decreto de 2004, que determinava que a Força Nacional poderia atuar em qualquer parte do território nacional mediante solicitação dos governadores dos estados ou do Distrito Federal. A alteração de março de 2013 incluiu os ministros de Estado entre os que poderiam acionar a Força, sem a necessidade do pedido dos governadores.

“A gravidade disso é que de fato cria uma força militar controlada pela presidência da República diferente das Forças Armadas. No artigo 144 da Constituição consta que cabe aos Estados regular a força policial de manutenção da ordem pública. Isso é o pacto federativo, a federação brasileira está sustentada sobre essa divisão. Se você imaginar que caberia uma força militar de preservação da ordem pública nas mãos do governo federal, você imagine um conflito em algum lugar qualquer em que você mande dois tipos de tropa, que respondem a dois níveis diferentes do Executivo, com uma sobreposição de competência. Quem decide ali?”, questiona.

Em artigo escrito para o site da Repórter Brasil, João Rafael Diniz comparou a Força Nacional à Guarda Pretoriana do Império Romano, “um corpo militar especial, destacado das legiões romanas ordinárias, que serviu aos interesses pessoais dos imperadores e à segurança de suas famílias. Era formada por homens experientes, recrutados entre os legionários do exército romano que demonstrassem maior habilidade e inteligência no campo de batalha. No seu longo período de existência (mais de três séculos) a Guarda notabilizou-se por garantir a estabilidade interna de diversos imperadores, reprimindo levantes populares e realizando incursões assassinas em nome da governabilidade do império”.

Uso de Força Nacional é cada vez mais amplo

“O decreto tem um tom de que o uso da Força Nacional é reservado a situações de caráter excepcional, mas isso não está previsto ali. E se você for ver, ao longo dos anos, os momentos em que a Força Nacional foi solicitada foram cada vez menos excepcionais. Você tinha uma greve da polícia ou o caso de Luziânia, ali do lado de Brasília, que em algum momento foi a cidade mais violenta do Brasil. A Força Nacional foi lá porque a polícia local não estava dando conta. Hoje você tem uma base da Força Nacional dentro de Belo Monte, que é um consórcio privado”, argumenta João Rafael Diniz.

No curso para os jornalistas, os agentes da Força afirmaram que a sua atuação era sempre subordinada à coordenação das secretarias de segurança estaduais, mas como afirmou Diniz, no dia 21 de março de 2013, o ministro Edison Lobão, da pasta de Minas e Energia, solicitou o emprego da Força Nacional em um canteiro do consórcio Norte Energia, em Belo Monte, ocupado por um protesto de cerca de 60 agricultores, ribeirinhos e indígenas das etnias Juruna, Xipaia, Curaia e Canela. Um dia após o pedido do ministro, 25 policiais militares e três policiais civis foram deslocados pela Força para desocupar o canteiro de obras.

Em abril de 2013, o deputado federal Ivan Valente e o senador Randolfe Rodrigues, ambos do PSOL, entraram com Projetos de Decretos Legislativos na Câmara e no Senado para sustar os efeitos do decreto 7.957, que conferiu ao Executivo federal a prerrogativa de solicitar emprego da Força Nacional. A proposta no Senado aguarda posição da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa desde junho de 2013. O relator da matéria é o senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES). Na Câmara, a matéria está parada desde fevereiro deste ano na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional e o relator é o deputado Antonio Carlos Mendes Thame (PSDB-SP).

Na Copa das Confederações, cinco das seis cidades-sede (a exceção foi o Recife) pediram o reforço da Força Nacional para conter as manifestações de junho. Em dezembro do ano passado, as tropas do acordo de cooperação também atuaram na segurança do sorteio dos jogos da Copa na Costa do Sauípe. Para a Copa do Mundo, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) já pediu auxílio e as rodovias federais na região de Curitiba, Cuiabá, Porto Alegre, Salvador, Rio de Janeiro e Belo Horizonte contarão com reforço do efetivo da Força Nacional.

PEC quer transformar a Força Nacional em novo órgão de segurança pública

Apresentada em julho de 2012 pelo deputado federal Vanderlei Siraque (PT-SP), a PEC 195 quer mudar o status da Força Nacional e o artigo 144 da Constituição.

Se aprovada essa emenda, a Força passará a ser um órgão mantido pela União estruturado em carreira e não dependerá mais de um acordo cooperativo entre estados. Será uma tropa independente, mas treinada e mantida pela União para atuar em situações de crise.

“Visando a preservação da harmonia entre União e Estados, a fim de evitar conflitos de competência, seu emprego: a) dar-se-á apenas quando reconhecido, por declaração formal do Chefe do Executivo estadual ou distrital, o esgotamento dos órgãos estaduais ou distrital de segurança pública; e b) dependerá de autorização expressa do presidente da República. Ou seja, em respeito ao princípio federativo, a atuação da Força Nacional de Segurança Pública não será imposta pela União aos Estados ou Distrito Federal. Pelo contrário, a sua utilização terá a função de auxiliar os governadores em situações de grave crise, como greve, rebeliões, motins das polícias”, diz o texto do deputado petista.

A proposta aguarda um parecer do relator da matéria na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, o deputado Lourival Mendes (PTdoB-MA), desde agosto de 2012.

A alvorada e os protocolos de ação da Força

“Alvorada!” O grito dos agentes da Força era o mesmo. Eram quatro da manhã e a correria era geral nas barracas climatizadas disponibilizadas pelo Ministério da Justiça como dormitórios aos jornalistas. Em minutos, estávamos todos de frente para um kit policial: escudo, capacete, cassetete e caneleira. Equipados, fomos tocados para um gramado abaixo da quadra. Em linha, estávamos novamente diante de outra manifestação simulada. A determinação era permanecer estático, em linha, e aguentar os empurrões, pontapés, trombadas e as tentativas de arrancar os escudos que empunhávamos.

Também vimos uma série de aulas teóricas explicando a adoção, pela Força Nacional de protocolos da ONU, como o de “Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei”, adotados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinqüentes, realizado em Havana, Cuba, de 27 de Agosto a 7 de setembro de 1999 e a portaria interministerial 4226, de 2010, que define as diretrizes do uso da força pelos agentes de segurança pública. Resta saber se, no calor das crises e das manifestações, os protocolos serão seguidos à risca.

 

 

 

 

 


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