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1 de fevereiro de 2020
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10:05

De perdas amenizadas a ataque mortal ao serviço público, categorias avaliam saldo do ‘pacotaço’

Por
Luís Gomes
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Segundo dia de sessão extraordinária na Assembleia Legislativa. Foto: Luiza Castro/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Foram três dias intensos de votações na Assembleia Legislativa até o governo Eduardo Leite (PSDB) conseguir aprovar quase a totalidade do seu “pacotaço” de reforma administrativa, que mexe com a estrutura das carreiras e as regras previdenciárias de todo o funcionalismo público estadual. Alguns projetos foram aprovados graças à articulação de alguns partidos da base aliada, em especial o MDB, na construção de emendas que “suavizaram perdas”, enquanto outros passaram com o texto praticamente original do projeto.

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Apenas uma das medidas não passou, aquela que mudava as alíquotas previdenciárias dos servidores militares e é considerada por muitos deputados como inconstitucional, uma vez que a reforma da Previdência do governo Bolsonaro estabeleceu a paridade entre as regras para aposentadoria de militares federais e estaduais. Este projeto acabou sequer indo à votação.

Nesta sexta-feira (31), o Sul21 conversou com representantes de cinco categorias de servidores para saber como avaliam o resultado das votações.

‘Amenizou as perdas’

A presidente do Cpers, Helenir Aguiar Schürer, deixa claro: “O melhor seria que tivesse sido rejeitado o projeto”. No entanto, ressalta que as emendas apresentadas às propostas que afetam o magistério acabaram diminuindo o impacto dos projetos originais. “Não sendo rejeitado, com as três emendas que foram aprovadas, amenizou as perdas”, avalia.

A Assembleia aprovou dois projetos que afetavam os professores, a PEC 285 — que mudava regras para a aposentadoria e vantagens temporais, entre outras questões — e o PL 3, que alterava diretamente o plano de carreira do magistério. Ambas as propostas foram bastante modificadas por emendas construídas em meio às votações.

Helenir destaca que as mudanças vão permitir que a transformação dos triênios em parcela autônoma seja usada apenas este ano para compor o salário dos professores, o que garante que reajustes futuros não sejam descontados do saldo que servidores acumularam com vantagens temporais, possibilidade que estava prevista no projeto original do governo Leite e que abriria portas para mais anos de congelamento salarial.

Outra mudança nos projetos foi a colocação, em lei, da diferença percentual entre os níveis e classes do magistério. Anteriormente, estava prevista a possibilidade do governo dar reajustes, por exemplo, apenas para as primeiros níveis da carreira, mantendo congelados os salários dos demais. “Isso garantiu a nossa carreira, ainda que achatada, porque significa que o governo não poderá transformar o nosso piso em teto”, diz Helenir.

A terceira mudança que ela saúda é o fato de que as gratificações já concedidas a um professor poderão ser incorporadas à aposentadoria proporcionalmente ao tempo trabalhado. A reforma administrativa acabou com a incorporação de gratificações em todo o serviço público a partir de agora, mas o governo também queria acabar com a eliminação da incorporação às gratificações já concedidas aos professores — ideia que acabou mantida para outras categorias. “São pequenos avanços, mas é importante porque, pelo menos não perdemos tudo”, afirma.

A presidente do Cpers diz ainda que, com as emendas, os funcionários de escolas estaduais também vão poder levar vantagens temporais para a aposentadoria, o que não estava previsto. No entanto, a reforma administrativa não garantiu qualquer previsão de reajustes profissionais para estes profissionais, ao passo que os professores, pelo menos, terão seus salários reajustados a partir do piso nacional do magistério. “Nós vamos continuar dialogando com a Assembleia para garantir que os reajustes sejam concedidos também para os funcionários de escolas”, diz Helenir.

Fábio Castro e Helenir conversam durante um dos dias de votação | Foto: Luiza Castro/Sul21

“Taxação brutal sobre os aposentados”

Vice-presidente da Ugeirm, sindicato que representa os agentes de Polícia Civil, Fábio Castro avalia o resultado as votações na Assembleia como um “processo bastante difícil”. “O governo Leite usou e abusou da base de sustentação que montou, aliado ao grande apoio obtido junto à imprensa hegemônica, que trabalhava muito essa questão do servidor como o problema, empecilho, entrave ao crescimento do estado, e isso dificultou bastante. Acho que a gente fez uma luta muito forte, muito grande e conseguiu amenizar algumas questões”, diz.

Os policiais civis foram afetados pela PEC 285, pelo PLC 2, que alterou o Estatuto dos Servidores, e pelo PLC 509. Esse último é considerado positivo para a categoria, uma vez que garantiu a paridade e a integralidade salarial na aposentadoria dos servidores que ingressaram na Polícia Civil entre 2003 e 2015, quando o então governador José Ivo Sartori mudou as regras previdenciárias para o funcionalismo estadual.

No entanto, Castro aponta que os demais projetos trazem diversos prejuízos aos policiais. “Uma das coisas que a gente acha muito grave é que o governo sobretaxou de maneira brutal os aposentados, prejudicando servidores aposentados há muitos anos, que tem salários baixos e que dependem desse salário para remédios e outras coisas”, disse, referindo-se às novas alíquotas previstas no PLC 503, aprovado ainda em dezembro de 2019. Com este projeto, os servidores que antes contribuíam com, no máximo 14%, agora poderão pagar até 22% — dependendo da faixa salarial. O PLC 503 também reduziu a faixa de isenção de contribuição previdenciária para aposentados para um salário mínimo, quando antes era o teto do INSS.

Ele avalia ainda que o governo conduziu as votações do pacote de forma “extremamente arbitrária”. “Esse pacote tinha um fundo fiscal, arrecadatório e punitivista. Ataca o direito dos servidores de se reunir em assembleias, porque passa a não contar mais como dia trabalhado. E a avaliação é que ele é muito ruim. Mantivemos uma greve com várias paralisações, algumas marchas, resistimos o que deu, o pacote não foi aprovado em sua totalidade, como o governo pretendia, ele diz que a economia pretendida não foi tão grande assim, em que pese o estrago feito nas categorias”, afirma.

No entanto, Castro diz que a Ugeirm ainda deve entrar com ações nas justiças para barrar algumas das mudanças aprovadas pela Assembleia. Uma medida que a categoria considera ilegal é que, a partir da reforma, os servidores serão obrigados a permanecer ao menos cinco anos em uma classe de suas carreiras para poderem levar o salário para a aposentadoria. Para ele, isso é ilegal, pois aplica a lógica de mudanças de cargos no serviço público a progressões na carreira de um mesmo cargo.

“A gente entende que isso está errado, porque isso ocorre quando existe uma mudança de cargo, ou seja, um servidor que passa em um concurso e muda de cargo. A classe é uma sequência da mesma carreira. Por exemplo, eu sou Comissário de Polícia há um ano. Se eu tivesse tempo para me aposentar, teria que ficar mais quatro, mas eu não mudei de cargo, estou no meio da carreira. O governo fez várias armadilhas como essa para que o servidor opte por não se aposentar porque vai perder remuneração”.

Clemente (de jaleco amarelo) e representantes de outras entidades de servidores militares conversam com deputado | Foto: Luiza Castro/Sul21

“A população vai sentir nas ruas”

Quem também está estudando a possibilidade de entrar com ações para barrar alguns pontos da reforma aprovada são as entidades que representam policiais militares. Presidente da Abamf, sindicato que representa os cabos e soldados da Brigada Militar (BM), José Clemente diz que o jurídico da entidade está estudando a possibilidade de questionar na Justiça o principal ponto de reclamação dos policiais militares, o PLC 6, que fixou novas regras para a remuneração da categoria.

“O governo conseguiu dividir as corporações militares no Estado, tanto a Brigaa Militar, quanto o Corpo de Bombeiros, porque quebrou com aquilo que tinha sido equacionado na lei da verticalidade na remuneração das carreiras militares [aprovada em 2014]. O que ele fez? Ele acrescentou em torno de 60% ao salário dos oficiais. O salário do coronel passou de R$ 17 mil para R$ 27,9 mil. Todos os postos dos oficiais superiores foram incrementados nessa ordem e nós, servidores de nível médio, com exceção do primeiro-tenente, não. Na verdade, o impacto no salário do soldado em início de carreira é de 16%”, explica Clemente, acrescentando ainda que essa mudança não significa um reajuste nominal, uma vez que o governo está utilizando vantagens temporais que serão extintas para elevar o subsídio básico da categoria.

Para ele, essa divisão criada pelo projeto desvaloriza os profissionais que estão na linha de frente do policiamento e do Corpo de Bombeiros. Além disso, os profissionais em início de carreira passarão a ter ainda mais dificuldades para progredirem para postos de salários mais altos, uma vez que a classe do soldado, que antes era subdivida em dois níveis, passa a ter três, com a ascensão de nível sendo garantida apenas após dez anos de serviço, quando antes era cinco.

“Que carreira é essa em que o soldado é promovido a soldado e depois a soldado de novo? A gente pode começar e terminar a carreira como soldado”, diz, acrescentando que a categoria havia apresentado uma proposta para o governo de reformulação da carreira que garantia maior paridade sem grande impacto financeiro no projeto. “O governo fez pouco caso, ignorou os servidores de nível médio. Isso vai dar um reflexo na rua, vai dar um reflexo na população, com os servidores desmotivados. Já temos problemas psicológicos de toda a ordem, um indíce de suicídios bastante alto na Brigada, e isso vai piorar”, afirma.

Clemente diz que a categoria vai estudar agora se há condições de brigar na Justiça para manter a verticalidade entre as carreiras conforme previsto na lei de 2014.

Quebra da verticalidade revoltou servidores militares | Foto: Luiza Castro/Sul21

Projetos passaram atropelados

Se os projetos que mudaram as carreiras dos professores e da Brigada Militar atraíram grande atenção da imprensa e foram discutidos por várias horas pelos deputados, servidores de outras carreiras do funcionalismo estadual reclamam que as mudanças em suas categorias acabaram passando com um tempo de discussão muito menor.

Fabiano Zalazar, coordenador-geral do Sindicato dos Servidores da Justiça no Rio Grande do Sul (Sindjus), destaca que os servidores do judiciário vão ser bastante afetados pelas mudanças nas regras para aposentadoria e com a eliminação das vantagens temporais previstas na PEC 285 e no PLC 2. Ele cita o exemplo de uma servidora de Santo Ângelo que está com 29 anos de serviço e, após quase cinco anos em uma função gratificada — a regra anterior previa a incorporação de gratificações após 10 anos alternados ou cinco consecutivos em um mesmo cargo, o que ela completaria em setembro de 2020 –, não poderá levar a remuneração referente à FG para a aposentadoria porque o PLC 2 extinguiu a incorporação desses benefícios – o que foi preservado no caso do projeto dos professores e com a aposentadoria especial da Polícia Civil. “Ela contribuiu para a Previdência durante quase cinco anos por valores que ela nunca mais ver. Quem vai devolver esse dinheiro para ela?”, questiona.

Presidente do Sintergs, sindicato que representa cerca de 6 mil técnicos-científicos de diversas áreas da administração direta, Antônio Augusto também critica a falta de debate sobre sobre o PLC 2. Somando a proposta e a PEC 285, eles perderam o direito a todas vantagens temporais e tiveram modificadas as regras para promoções. Augusto avalia que, no momento em que os servidores da área estão há cinco anos com salários congelados, eram os adicionais que garantiam uma atratividade ao serviço público no Estado. Sem isso, ele avalia que a tendência é de aumento da saída de servidores do Estado. Segundo ele, na Secretaria de Agricultura, da qual ele faz parte, 30% dos aprovados no último concurso para a pasta pediram exoneração nos últimos anos.

“O pacote é um ataque mortal a todas as carreiras e com certeza vai afetar o serviço público. As vantagens vinham como um estimulo, visto que as carreiras estão cada vez mais achatadas e perdendo atratividade para o servidor. Ele acaba com toda a progressão, que era o atrativo, e agora ficamos numa carreira em que todos os nossos direitos adquiridos foram retirados em uma semana sem o debate que espera para ser feito em uma democracia”, afirma. “É triste ver o governador falar em meritocracia e esforço quando a gente não vê nenhum esforço do governador em promover o desenvolvimento do Estado. A única proposta que ele apresentou até agora foi acabar com as carreiras do serviço público”, afirma.

Augusto também diz que o Sintergs deve recorrer à via jurídica para barrar alguns trechos do pacote. “Nós não vamos entregar fácil os direitos arduamente conquistados pelos servidores do Estado do Rio Grande do Sul”.

Servidores de diversas entidades acompanham a votação da PEC 285 na terça-feira | Foto: Luiza Castro/Sul21

Assim como Castro, da Ugeirm, Zalazar também avalia que o governo deixar de considerar a participação em assembleias sindicais como dia trabalhado como uma perseguição ao servidores. “Não tem efeito prático nenhum. Foi por retaliação aos servidores, não há outra explicação”, diz.

Ele diz que, nas emendas negociadas pela base aliada para modificar os projetos, os servidores do judiciário esperavam que haveria um artigo no PLC 2 que garantiria que eles poderiam levar adicionais e vantagens temporais para aposentadoria na proporção de 1% por ano trabalhado. No entanto, ele diz que isso acabou não entrando no PLC.

“Esse emendão só foi aparecer em plenário na terça-feira de noite, e o nosso projeto foi votado quarta-feira, às 13h. Lá na Assembleia, diziam que os servidores poderiam levar isso para a aposentadoria, mas, quando fomos ver, passou um artigo que está tirando os nossos adicionais. Isso passou desapercebido, porque não teve debate. Só percebemos em plenário, aos 48 do segundo tempo. Nós fomos assaltados da noite pro dia, tivemos os nossos direitos retirados sem a mínima chance de poder debater com o governo e os partidos”, diz.

Zalazar afirma que, em contato com o governo depois da aprovação, a Casa Civil disse que estuda a possibilidade de corrigir o artigo que retirou da lei a garantia de que os servidores poderão levar os adicionais para a aposentadoria proporcionalmente ao tempo já trabalhado. “Mas ficamos muito receosos, porque para eles é vantajoso”, pondera. “Foi uma semana terrível para nós, para o serviço público e para sociedade, que será a maior prejudicada”, conclui.


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