Caminhos do Lixo|z_Areazero
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8 de fevereiro de 2020
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12:18

Da terceirização ao desconhecimento da população: caminhos que fazem do lixo um problema

Por
Sul 21
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Estação de Transbordo Lomba do Pinheiro. Foto: Joel Vargas/PMPA

Annie Castro

A coleta clandestina que passa antes dos caminhões da Seletiva, levando resíduos recicláveis que deveriam chegar às Unidades de Triagem para garantir o sustento de famílias que vivem da venda desses materiais; os resíduos deixados pelo caminho por caminhões que cumprem as rotas, mas não recolhem o lixo; a falta de educação ambiental para os cidadãos, que impacta do descarte incorreto ao absoluto desconhecimento sobre os processos e pessoas envolvidas na coleta do lixo que produzem; a terceirização do serviço, que envolve inúmeras empresas, desmembrando cada etapa e afastando a sociedade do debate sobre o lixo em Porto Alegre. São muitos e diversos os problemas que envolvem a geração, descarte e coleta de resíduos na Capital. Detalhamos a seguir alguns deles:

Coleta clandestina

Em 2017, a existência de uma coleta irregular organizada, que recolhe os recicláveis de maior valor comercial deixados pela população para a Coleta Seletiva nas vias públicas da Capital, já era de amplo conhecimento público, sendo inclusive tema de debates na Câmara Municipal de Porto Alegre. Três anos depois, a coleta clandestina, como é conhecida, continua acontecendo diariamente na Capital, impedindo que os recicláveis descartados cheguem às Unidades de Triagem, onde os trabalhadores dependem de seu comércio para sobreviver.

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Conforme relatos de trabalhadores das UTs e de moradores da Capital, a coleta clandestina passa nas vias públicas antes do horário que os caminhões da Coleta Seletiva realizam o recolhimento dos resíduos, deixados próximos aos contêineres cinzas, destinados ao lixo orgânico, em lixeiras em frente às residências e empresas e, até mesmo, nas calçadas. “Vamos supor que a coleta passa 10h em determinada rua. Os clandestinos vão passar às 8h30 e pegar o melhor material, que tem maior valor comercial. Até o caminhão das 10h chegar, já não tem mais nada de qualidade”, explica Solange Menezes, uma das integrantes da direção da Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis da Cavalhada – ASCAT, que gere a UT Cavalhada.

Resíduos recicláveis deixados pela população nas vias públicas são recolhidos pela coleta clandestina antes do horário da Coleta Seletiva. Foto: Luiza Castro/Sul21

A atuação dos clandestinos é de conhecimento, inclusive, do próprio Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), órgão que controla os processos que envolvem as coletas oficiais de resíduos ofertadas pelo Poder Municipal na Capital. “Sabemos que existe a coleta clandestina, mas por ser clandestina nem sempre a gente consegue inibir”, afirma o diretor-geral do DMLU, René José Machado de Souza. Conforme Souza, o órgão, em parceria com a Empresa Pública de Transporte e Circulação de Porto Alegre (EPTC), realiza um conjunto de ações fiscais a fim de combater a prática. “Nós temos feito ações, mas a irregularidade também se organiza para manter o seu negócio”, diz.

Ainda, o diretor-geral do DMLU, assim como trabalhadores das UTs, aponta a possibilidade de que alguns condomínios ou grandes geradores, como empresas privadas, possam estar repassando resíduos diretamente para a coleta clandestina. Em função disso, o DMLU diz ter dificuldade em fiscalizar essa coleta irregular, uma vez que seria preciso flagrá-la no momento exato em que os resíduos estão sendo entregues aos clandestinos.

“Os geradores, sejam pessoas, prédios ou empresas, podem vender [os resíduos], porque até a hora que está dentro do portão da pessoa não é resíduo, é um bem de cada um. No momento em que eu faço o descarte, aí sim passa a ser um resíduo descartado e a ser do DMLU. Então, não tem como chegar ali e, ao ver um caminhão, ter certeza que ele recebeu aquele resíduo clandestinamente ou não; é preciso pegar no ato para conseguir autuar”, explica Souza.

Renê José Machado de Souza, diretor do DMLU. Foto: Luiza Castro/Sul21

O lixo que fica pelo caminho

Além dos clandestinos, as Unidades de Triagem da Capital afirmam também enfrentar problemas em relação à coleta realizada desde 2015 pela Cooperativa de Trabalhadores Autônomos das Vilas de Porto Alegre – Cootravipa, empresa que presta serviço terceirizado à Prefeitura. Segundo relatos recebidos pelo Sul21, os caminhões da Coleta Seletiva deixariam para trás uma parte dos resíduos recicláveis descartados pela população.

“Esses dias, eu estava parado no posto em uma avenida de Porto Alegre e tinha um caminhão [da Coleta Seletiva] passando. Eu vi que ele estava andando sem pegar nada e que tinha um gari que não pegou nada por quadras”, conta o presidente da Associação de Catadores da Padre Cacique, Daniel Holmos de Mesquita. “Nisso, saiu uma senhorinha da casa ao lado do posto e disse ‘ele não pegou meu lixo! Mas aqui é assim mesmo, quem pega é o compactador, que deveria pegar orgânico’”, completa Mesquita.

O mesmo é relatado por moradores da Capital. A líder comunitária Cláudia Maria da Cruz, que é moradora da 5ª Unidade, onde fica a comunidade Fazendinha, na Restinga, conta que os caminhões da Cootravipa não recolhem os resíduos que são deixados pela população para a Coleta Seletiva na rua de sua casa e em outras vias da região: “Aqui na minha rua, eu fazia a seleção [dos resíduos recicláveis], principalmente de pet e outras coisas que dá pra reciclar, e deixava ali na frente de casa, mas a Seletiva nunca pegava, quem levava era um catador andarilho”.

Segundo relatos, materiais destinados à Coleta Seletiva não são recolhidos em alguns locais da Capital. Foto: Luiza Castro/Sul21

Conforme Mesquita, o não recolhimento estaria acontecendo porque o salário dos trabalhadores associados à Cootravipa seria pago por rotas executadas e não pela quantidade de resíduos recolhidos. “Se eles [trabalhadores dos caminhões] não coletarem nada, eles vão receber igual. A Prefeitura diz que a coleta é em 100% das ruas, mas isso é uma propaganda política. Eles podem até passar em 100%, mas ninguém sabe se eles pegaram os resíduos”, afirma.

Em nota enviada ao Sul21, a Cootravipa afirma que, uma vez que os caminhões da Coleta Seletiva são monitorados via GPS, todos os pontos de coleta são monitorados por uma equipe. “Portanto, não há possibilidade dos coletores deixarem de recolher o lixo sem que o fato fique registrado. Caso um contribuinte faça uma reclamação pelo telefone 156 ,de que o seu lixo não foi coletado, é gerada uma OS – Ordem de Serviço. Nesse caso, um representante da Cooperativa vai até a casa do contribuinte fazer a coleta pessoalmente”, afirma a terceirizada.

A Cootravipa também pontua que em 90% das ordens de serviço geradas por reclamações da população foi constatado que os resíduos não coletados eram de origem orgânica ou resíduo misturado, contendo recicláveis e orgânicos. “E ainda acontece do contribuinte colocar o lixo na rua após a passagem do caminhão de coleta. Todas as OS são planilhadas e repassadas para o DMLU que, se tiver dúvidas, faz acareação dessas reclamações”, complementa.

Entretanto, a líder comunitária Cláudia relata que na 5ª Unidade não é possível garantir o recolhimento dos resíduos recicláveis nem mesmo aguardando o horário da coleta para levá-los diretamente até o caminhão da Seletiva. “Ele passa batido, um dia só que eu consegui ver o caminhão da Seletiva, às vezes, tu nem vê, parece só que eles entram numa rua e saem na outra. Se tu vai esperar eles passarem para levar até lá, não dá tempo nem de acenar pro caminhão”, garante Cláudia, que também é integrante da Comissão Regional de Assistência Social da Restinga.

A líder comunitária Cláudia Maria da Cruz vive na 5ª Unidade, na Restinga. Foto: Luiza Castro/Sul21

Sem educação ambiental

Além das irregularidades, quem trabalha no setor reclama da ausência de uma educação ambiental voltada à população por parte do Poder Municipal. Conforme Mesquita, a falta de uma ampla divulgação a respeito das coletas e tipos de resíduos nos bairros e mesmo em campanhas mais amplas, em meios massivos como a televisão, faz com que grande parte dos moradores da Capital não tenha conhecimento nem mesmo sobre os dias de cada coleta nas ruas em que vivem, menos ainda sobre o descarte correto ou os impactos de seu descaso.

“Anda na rua e pergunta para as pessoas ‘qual o dia que passa a coleta aqui?’, ninguém sabe. Nos bairros nobres, por exemplo, as empregadas descem o lixo no fim de tarde e vão embora para casa. Nisso, ali passou um clandestino, passou um catador, e só depois que vai passar o caminhão da Coleta Seletiva. É totalmente desorganizado, não tem informações sobre nada”, defende.

População descarta constantemente resíduos de forma inadequada na Capital. Foto: Luiza Castro/Sul21

A líder comunitária Cláudia relata que, devido à falta de informações sobre os serviços oferecidos pela Prefeitura, muitos de seus vizinhos nem mesmo sabem qual a função dos caminhões de coleta que passam na sua rua. Ela conta ainda que a ausência de uma educação ambiental também faz com que alguns moradores da região em que vive acabem jogando resíduos de todos os tipos nas esquinas, nos terrenos baldios e, inclusive, em frente aos portões das escolas de ensino fundamental e infantil que existem na 5ª Unidade.

“As pessoas largam reciclável, comida, fezes, fogão, colchão e até bicho morto”, exemplifica Cláudia, que afirma ter medo de que esses focos de lixo acabem atraindo insetos, ratos e outros bichos que podem trazer doenças para a população. Segundo a líder comunitária, constantemente o DMLU é acionado para recolher os focos de lixo e, após os resíduos serem levados, alguns moradores até chegam a plantar mudas e colocar placas onde o lixo havia sido deixado. “Mas o pessoal pega e troca de local, porque o que falta é conscientização e o governo não toma nenhum tipo de atitude”, opina.

A Coleta Domiciliar é feita por caminhões compactadores. Foto: Giulia Cassol/Sul21

Atualmente, o DMLU afirma ter estruturado uma Equipe de Educação Ambiental, que trabalha com capacitações, implantação de composteiras, plantios, hortas e estações integradas voltadas à população. Entretanto, trabalhadores das UTs defendem que a educação ambiental deveria funcionar de maneira expandida, incorporando todos os setores da sociedade, e deveria estar acontecendo em escolas, creches e outros locais vinculados ao poder Municipal e Estadual.

Terceirização do lixo

Para o integrante do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) Alex Cardoso, o principal problema está na terceirização da coleta de lixo em Porto Alegre. “Ela passa a não ser mais como um serviço público e a ser como um serviço explorado pelas empresas privadas. Ou seja, se acaba com o serviço do DMLU e se contrata uma empresa privada”, afirma.

Na opinião dele, essa mudança acarretada pela entrada de empresas privadas no setor, que acaba desmembrado o processo de recolhimento de lixo, com cada etapa sendo realizada por um ente diferente, também afasta a participação popular do debate acerca dos resíduos na Capital. “Antigamente, os resíduos eram como um bem, geravam renda, tinha todo um processo de inclusão social. O processo da economia solidária era amplamente discutido e fazia parte, inclusive, das discussões do próprio orçamento participativo, existindo um processo de participação popular que era muito ativo”, lembra Cardoso.

Alex Cardoso integra o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR).  Foto: Luiza Castro/Sul21

Ele também acredita que, além da participação dos moradores, é importante que grandes geradores de resíduos, como shoppings, supermercados e, até mesmo, empresas que produzem determinados materiais, passem a integrar os debates a respeito dos problemas envolvendo o lixo em Porto Alegre, para que se pense também no que acontece com esses resíduos a partir do momento em que são produzidos. “Tem-se um pensamento apenas da logística de distribuição dos materiais, dos resíduos [recicláveis]. E para resolver esse problema tu teria que apertar as empresas. Nós temos que chamar os autores para debater, chamar, por exemplo, a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), os grupos de catadores, os vereadores, as pessoas. É preciso discutir isso, porque esse é um problema social da cidade”, defende.

De acordo com o integrante do MNCR, além de todos os problemas, como as dificuldades enfrentadas pelas UTs, o modelo adotado por Porto Alegre para a gestão dos resíduos atualmente também acarreta sérios problemas ambientais, derivados de aspectos como a má separação pela sociedade até o uso de combustível para os serviços de coleta e transporte dos resíduos orgânicos e recicláveis. “A gente pega e coloca todo esse resíduo para circular, coloca eles em cima de caminhões e anda com eles arrastando pela cidade. Ainda pegamos os resíduos e transportamos para Minas do Leão, que fica a 100 km daqui. Também tem o fato de que os resíduos, antes mesmo de se tornarem resíduos, já são problemas, porque eles não são pensados para serem reciclados ou reutilizados, eles são pensados para a questão do comércio, para serem vendidos, por isso que se gera muita embalagem, porque é mais barato fazer um novo material do que reciclar um já existente”, explica.


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