Entrevistas|z_Areazero
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7 de outubro de 2019
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10:29

‘Vamos usar autobots, fazendas de likes ou hackers russos? Nossa relação com a tecnologia precisa mudar’

Por
Sul 21
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Jesús Sabariego: “Estão anulando a capacidade humana para resolver conflitos, para estabelecer escolhas, construir imaginários alternativos”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Marco Weissheimer

Inteligência artificial, internet das coisas, tecnologia 5G, um admirável mundo novo está batendo à nossa porta. Será mesmo? Há quem desconfie de toda essa euforia tecnológica e chame a atenção para dois “detalhes”. Primeiro: qual é mesmo a indústria que está por trás dessa revolução tecnológica e quais seus interesses? Segundo: qual a nossa relação com essa tecnologia? Temos alguma soberania ou ela é totalmente submissa? Jesús Sabariego, professor da Universidade de Sevilha e pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra é um dos céticos a advertir uma dose de desconfiança e alerta em relação ao mundo novo prometido.

“O problema é que estão anulando a capacidade humana para resolver conflitos, para estabelecer escolhas, construir imaginários alternativos. Nossas máquinas com inteligência artificial vão resolver todos os problemas. Mas, por enquanto, o que vemos, porém, é uma profusão de conflitos bélicos e de outros conflitos que não considerados bélicos, com guerras civis encobertas, relações profundamente predadoras e coloniais de novo, guerras comerciais…É um cenário meio apocalíptico. Toda essa tecnologia está servindo para isso. Não é um espaço de libertação nem de emancipação”, afirma o pesquisador, que veio a Porto Alegre para fazer uma conferência na PUCRS e para participar 10º Congresso Internacional de Ciências Criminais – Memória e Ciências Criminais, que ocorrerá de 21 a 23 de outubro, também na PUC.

Historiador, Jesús Sabariego vem pesquisando a relação entre direitos humanos, tecnopolítica, violência e movimentos sociais na era das redes sociais. Em entrevista ao Sul21, ele defende a necessidade de uma mudança radical no modo pelo qual nos relacionamos com a tecnologia. Diante do uso que a extrema-direita vem fazendo dessas novas tecnologias para implementar sua estratégia política, Sabariego diz que o caminho para a esquerda e as forças progressistas não é simplesmente dominar essas ferramentas para fazer um contra-ataque:

“Se eles estão lançando fake news o tempo todo, vamos lançar mais do que eles, dizendo que os reaças estão comendo crianças ou algo assim, usando autobots, fazendas de likes, contratando hackers russos? Não é por aí. Precisamos de uma mudança radical na nossa relação com a tecnologia. A primeira coisa que precisamos entender é que precisamos nos apropriar da ferramenta. Precisamos nos apropriar dos modos de produção e dos meios de produção que, hoje, são os meios digitais.”

“Nos anos 80 e 90, os direitos humanos eram uma coisa chique, algo que estava no imaginário global internacional”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Sul21: O conceito de Direitos Humanos se tornou um problema no Brasil e também em outros países. Além das recorrentes violações de direitos que marcam nossa história, a própria ideia passou a ser atacada por setores conservadores e de extrema-direita, sendo associada a coisas como “defesa de bandidos”. Aqui no Brasil, ganhou espaço a expressão “direitos humanos para humanos direitos”. De onde vem, na sua opinião, essa resistência e oposição ao conceito de Direitos Humanos?

Jesús Sabariego: A Declaração Universal dos Direitos Humanos está completando 70 anos. Se formos tomar como os Direitos Humanos eram conceituados nas décadas de 80 e 90, lembraremos daqueles mega-shows com Sting, cacique Raoni, a Anistia Internacional, as demandas pela liberdade de Nelson Mandela. Os direitos humanos eram uma coisa chique, algo que estava no imaginário global internacional. As pessoas militavam na área dos direitos humanos, o tema tinha impacto na mídia.

No entanto, a esquerda ortodoxa não se deu sempre bem com os Direitos Humanos. De fato, logo apos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, boa parte da esquerda ortodoxa, sustentada pela União Soviética e pelo stalinismo, tinha uma relação muito paradoxal com os Direitos Humanos. Na Inglaterra, o surgimento da Anistia Internacional está ligada ao trabalho de advogados ligados ao que depois se tornaria a chamada Terceira Via, à social-democracia. Na verdade, o espaço de reivindicação dos direitos humanos nunca foi tanto um espaço político ligado à esquerda ortodoxa, mas sim associado às grandes mídias internacionais social-democratas ou progressistas, a grandes eventos, shows e personalidades como Sting. Então, essa ideia de que Direitos Humanos são uma coisa da esquerda não é bem assim.

Do ponto de vista conceitual e jurídico, a Declaração Universal dos Direitos Humanos impõe um paradigma liberal, individual. Nos anos 60, ao longo do processo de lutas pela descolonização, houve tentativas de criar, por exemplo, a Carta Africana de Direitos dos Povos, com uma dimensão mais coletiva. Isso sempre foi complicado no sistema das Nações Unidas. Criou-se uma inversão ideológica em torno da ideia de Direitos Humanos. Nós podemos violar os Direitos Humanos em nome deles. O que eles estabelecem é um recorte dentro da diversidade humana, definindo aquilo que deve ser considerado humano. Todas as diferenças, que são irreconciliáveis com esse cânone, não seriam humanas. Na verdade, a universalidade dos direitos humanos é um apelo, é uma abstração. Os direitos humanos são um localismo globalizado, para tomar a expressão cunhada por Boaventura de Sousa Santos. É um particularismo individual liberal que é extrapolado para toda a diversidade do humano.

Quando essa direita conservadora fala que os direitos humanos são uma coisa da esquerda, coisa de comunista, na verdade, o que ela está impugnando não é o pensamento de esquerda ortodoxo, mas posições democratas liberais dentro dessa tradição. Aí está o verdadeiro risco, na minha opinião. A saída da democracia, que vivemos globalmente, está gerando novas articulações políticas que consideram esquerda o que, na verdade, é direita. O balanço do arco político, na democracia representativa, está indo para a direita de forma muito rápida. Tanto é assim que – e isso já está ocorrendo há muito tempo – o espaço na democracia representativa que é chamado de esquerda age politicamente como a direita neoliberal.

“Há um forte elemento anti-político dirigido contra a política institucional”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Sul21: Você está falando basicamente das posições da social-democracia europeia?

Jesús Sabariego: Não só. Vale também para uma parte da esquerda na América Latina e em outras regiões que aplicam uma política cosmética de esquerda em algumas questões, mas não promovem reformas profundas. Desde 2011, 2013 têm ocorrido manifestações e protestos muito fortes vindo de baixo da sociedade. Até pela ausência de respostas por parte dessa esquerda, boa parte dessas manifestações acabou assumindo um viés conservador, sendo capturada por visões nacionalistas e de direita. Não tivemos uma esquerda real agindo neste cenário. Isso faz com que os direitos humanos, que são um dispositivo liberal, acabe virando, para a direita mais conservadora, uma política revolucionária.

Sul21: Esses deslocamentos no espectro político que você menciona têm um marco que pode ser situado aproximadamente no início de grandes manifestações de rua como foi o caso da Primavera Árabe. Boa parte desses processos de mobilização popular acabou resultando em governos de direita ou mesmo ditaduras. O que explica, na sua avaliação, esse resultado de revoltas que pareciam ter, no início, um sentido democrático radical?

Jesús Sabariego: Há elementos comuns em todas elas, mas também há elementos diferenciadores. É possível estabelecer conexões e analogias entre essas manifestações, que estavam articuladas globalmente. A tecnologia, especialmente o uso das redes sociais e da internet, é um importante fator aí, o que chamo de tecnopolítica. Mas, para além disso, há um forte apelo anti-político presente também. Por mais que tenham sido manifestações com ocupações de praças, de espaços públicos, com viés político, há um forte elemento anti-político dirigido contra a política institucional.

Se formos pensar nos casos do Egito e da Tunísia, tínhamos ditaduras mascaradas como democracias. Já na Europa temos uma situação bem diferente. Os protestos que ocorreram em países como Grécia, Itália, Portugal e Espanha tiveram outras características. Há um elemento comum entre todas essas manifestações que é a impugnação do sistema, que não satisfaz mais as necessidades mínimas da população em um contexto de crise global. Em Portugal e Espanha foram as maiores manifestações desde a transição da ditadura para a democracia nestes países. Em Portugal, não se via algo semelhante desde a Revolução dos Cravos. Na Espanha e na Grécia idem. Tudo isso deu origem a novas articulações políticas. As ocupações de praças foram muito abertas e plurais e não estavam recortadas por nenhuma estrutura política sindical ou partidária tradicional de esquerda. Eram principalmente, jovens, urbanos, de formação universitária, que estavam impugnando o sistema democrático (entre aspas). Um dos lemas dos manifestantes era “democracia real já”.

Muita gente diz que esses movimentos fracassaram. Para mim não é assim. Como se mede o sucesso ou o fracasso de um movimento social? É que vire uma candidatura políticas e chegue ao poder? Isso explica pouco, na minha opinião. Na verdade, o movimento social é um sintoma da violação dos direitos humanos em nome dos próprios direitos humanos. Na Espanha, nos anos em que ocorreram os protestos, tínhamos uma média de 20 a 30 mil famílias despejadas de suas casas por atraso no pagamento de suas hipotecas junto aos bancos, numa democracia que não é uma democracia, mas uma monarquia parlamentar. Isso colocou todo o sistema em questão e as pessoas foram para as ruas, assim como foram em outros lugares também. Cada contexto tem suas especificidades, mas o que é comum é que neoliberalismo estava agindo globalmente. Assim, sintomas de violação de direitos humanos passaram a impugnar um sistema que, teoricamente, é baseado nos direitos humanos. Essa é uma das principais contradições que atravessa todo esse processo.

“O que temos hoje é a construção de um imaginário global autoritário”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Sul21: No caso da Espanha, as mobilizações e protestos provocaram, como você disse, o surgimento de novos atores políticos, o que se expressou também no quadro partidário, com o surgimento do Podemos, à esquerda, e, mais recentemente, de uma força de extrema-direita (Vox). O que temos hoje é, de fato, um quadro de crescente polarização política?

Jesús Sabariego: O apelo ao anti-político faz com que a política representativa tradicional seja abandonada por muito setores. Depois das revoltas do 15M uma abstenção enorme na eleição permitiu a vitória do PP. Em Portugal não foi bem assim. Houve uma coalizão de direita, mas depois veio a “geringonça”, uma coalizão ente socialistas, comunistas e o Bloco de Esquerda. Na Grécia, tivemos a vitória do Syriza e agora a direita de novo. O que temos hoje é a construção de um imaginário global autoritário. Temos Trump, Putin, o movimento liderado por Steve Bannon. Há um elemento importante aí que é a oposição dessas configurações autoritárias às mídias tradicionais. A política passa a ser feita a golpes de twitter.

A ideia é tirar as mídias mainstream do processo de construção das agendas, estabelecendo uma relação direta com os apoiadores e simpatizantes fazendo com que estes se tornem porta-vozes dessa agenda. Essa tática provoca um curto-circuito no caminho tradicional de construção das agendas políticas, daquilo que Chomsky chamou de construção de consentimento. A ligação entre mídia, política e interesses econômicos sempre foi uma configuração global. Hoje, essa configuração já não tem tanta legitimidade e viu-se isso de modo muito claro no caso do Brexit e na eleição de Trump.

Sul21: E também aqui no Brasil, na eleição de Bolsonaro…

Jesús Sabariego: Sim. Os serviços privados de mensagem, como Whatsapp e Telegram se tornaram um novo espaço de articulação do político e de disputa da narrativa. Esse espaço é governado pela difusão muito rápida de mentiras. Você não tempo de responder nem de pensar. É um uso político do modelo de propaganda de Goebbels. Temos os princípios políticos da propaganda de Goebbels acelerados ao máximo pela dinamicidade desses serviços de mensagens privadas. É uma profusão de vídeos curtos, memes e outros conteúdos que entram nos grupos familiares e em ambientes que não são os da discussão política tradicional e que carregam uma carga de emoção muito poderosa. Essa é uma característica global. O Vox, na Espanha, também trabalha com essas práticas. Steve Bannon está por trás delas. Não que ele seja o único. Há sempre uma articulação para identificar um inimigo interno e polarizar a sociedade. Na Espanha e em outros países da Europa são os migrantes.

Há também todo um discurso em torno da questão da segurança e da volta a um passado idílico que se perdeu no neoliberalismo, um passado de família, segurança, conforto e emprego. Um passado que não vai voltar e que, na verdade, nunca existiu.

Sul21: O que você entende por tecnopolítica? A dimensão mais óbvia é a presença das novas tecnologias de comunicação, mas a relação entre tecnologia e política não chega a ser uma novidade. Essa relação sempre existiu. As ferramentas tecnológicas é que foram se transformando. O que é mesmo que define a tecnopolítica então?

Jesús Sabariego: A própria construção política e o discurso político já envolvem tecnologias. No mito da caverna de Platão há como que uma tela na parede da caverna onde as sombras transfiguram o mundo. No início de “2001: Uma Odisseia Espacial”, temos uma imagem poderosa com um osso lançado ao ar que acaba se transformando em uma espaçonave. Como o osso vira uma nave espacial? A tendência é pensarmos que foi por causa do progresso. Mas estaremos errados. Seguindo o curso linear do que a gente considera progresso, talvez não tivéssemos construído nave nenhuma.

Sul21: Por que não teríamos construído nave nenhuma?

Jesús Sabariego: Por que penso que o planeta estaria detonado muito antes, mas é só uma hipótese. Seguindo a linearidade proposta pela ideologia do progresso, teríamos uma sucessão de conquistas tecnológicas, sempre no Ocidente: a máquina de imprensa, a máquina a vapor, o automóvel, a internet…Mas o “progresso” não é um processo linear. Neste percurso, tivemos a exploração colonial, um regime de acumulação de capital que fez com que o excedente dessa exploração fosse investido na Europa, financiando esses desenvolvimentos tecnológicos. Quais são mesmo os valores que estão por trás do progresso?

“A origem de toda essa tecnologia que estamos vendo em torno da internet é militar”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Penso que o mais interessante nesta análise da tecnologia diz respeito à relação do homem com a tecnologia. A tecnologia não deixa de ser uma extensão do ser humano que permite certas capacidades. A linguagem é ela mesma uma tecnologia também. O próprio uso da ferramenta acaba definindo e modelando o humano. Mas isso não é central nas análises sobre a tecnologia. Hoje, quando se fala de inteligência artificial ou das possibilidades de conectividade é como se tudo fosse uma maravilha. Esse é o discurso geek do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Na verdade, quem está por trás dessa tecnologia é a indústria do complexo militar, que é quem financia esses programas.

A tecnologia virou de novo uma crença, como aconteceu com a Ciência nos séculos dezoito e dezenove, quando a razão se tornou o novo paradigma. Temos um novo culto à tecnologia, à própria máquina, mas é um culto extremamente paradoxal. A origem de toda essa tecnologia que estamos vendo em torno da internet é militar e começou a ser desenvolvida ainda na Segunda Guerra Mundial para aperfeiçoar os sistemas antiaéreos. O problema é que estão anulando a capacidade humana para resolver conflitos, para estabelecer escolhas, construir imaginários alternativos. Agora, são os dados e os algoritmos que vão resolver. Você é monitorado o tempo todo, extraem dados de você e desenvolvem algoritmos com diferentes finalidades. Daqui em diante, não precisaremos mais nos preocupar. Nossas máquinas com inteligência artificial vão resolver todos os problemas e ficaremos liberados de trabalhar.

Por enquanto, o que vemos, porém, é uma profusão de conflitos bélicos e de outros conflitos que não considerados bélicos, com guerras civis encobertas, relações profundamente predadoras e coloniais de novo, guerras comerciais…É um cenário meio apocalíptico. Toda essa tecnologia está servindo para isso. Não é um espaço de libertação nem de emancipação. Pode até ser, pois depende do modo pelo qual essa tecnologia é utilizada, mas hoje não temos soberania para usá-la. A gente não conhece o código. Quem são os programadores e para quem trabalham? Para consórcios de interesses privados que extraem dados recortam nossas possibilidades de interação e nos dizem que não somos inteligentes o suficiente para decidir o nosso próprio caminho.

A verdade não pode ser reduzida a números, mas estamos deixando que os nossos modos de entender o mundo sejam reduzidos a números, deixando de lado o mais importante do ser humano: nossa capacidade de errar e de aprendizagem. A gente não consegue aprender sem errar. Estão impedindo que erremos, retirando com isso a nossa própria humanidade.

Chris Anderson, editor da revista Wired, escreveu um artigo chamado “The end of the theory”, repetindo um pouco o discurso de Fukuyama sobre o fim da história e afirmando que disciplinas como Sociologia e Filosofia não seriam mais necessárias. Todos os problemas poderiam ser desenvolvidos pelos dados e pelos algoritmos construídos a partir deles. No entanto, há um problema aí para qualquer um que estude lógica: os dados falam do que, mas não falam do como e sem saber como acontecem as coisas estamos perdidos. Quando acabam as teorias, começam as tiranias. Pensar, como diz Deleuze, é pensar diferente.

“As fontes de legitimidade não estão vindo mais do voto nem do sistema eleitoral”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Sul21: Paradoxalmente, junto com esse culto à tecnologia, vemos a proliferação de um obscurantismo expresso, por exemplo, pelos defensores do terraplanismo, do fim da utilização de vacinas, do negacionismo climático. Há um discurso que é contrário às próprias ideias de razão e de conhecimento. O atual presidente brasileiro é um dos expoentes dessa “corrente de pensamento”, por assim dizer. Há alguma relação entre esses dois fenômenos, na sua opinião?

Jesús Sabariego: É só ver o nível do discurso de alguns dos grandes líderes mundiais. Pula um pouco para o norte e assiste a retórica cotidiano do líder do mundo livre e campeão da democracia, que é o Trump. E ele chegou à presidência. Quais são os controles? O que aconteceu para ele chegar ali? Eles falam sem respeito nenhum pelo sistema que representam. Ou, talvez, estejam absolutamente cientes do sistema que representam. O grande imbecil, para ser o Rei Ubu do mito, precisa ter as costas quentes, precisa ter um espaço de segurança até para falar besteiras. Caso contrário, os controles internos vão estabelecer limites ao que pode ser dito.

Hoje, o que estamos vendo é que qualquer coisa pode ser dita, o que traduz muito a falência das instituições democráticas e dos mecanismos de controle dessas instituições, incluindo aí os tribunais de justiça, os tribunais constitucionais e as próprias constituições como mecanismos de censura e moções internas. Agora, Trump vai se debruçar com uma delas. O resultado dependerá mais da correlação de forças nas câmaras que de um sistema que pune ações que não podem ser feitas. Daqui a pouco essas figuras toscas talvez não interessem mais ao sistema. Por enquanto é preciso manter uma fachada de legalidade no sistema eleitoral, que é cada vez mais corrupto e condicionado.

As fontes de legitimidade não estão vindo mais daí, não vem mais do voto nem do sistema eleitoral. Elas estão nesta dimensão plebiscitária presente nas redes sociais e nas novas mídias. O que legitima qualquer coisa que seja dita é o fato de ter o apoio ou o compartilhamento de duzentos mil seguidores ou mais. Qual é a legitimidade de Olavo de Carvalho? O fato de ter duzentos mil retuites ou o que seja. Não tem nada a ver com o fato de ele ter um pensamento crítico ou contrastado.

Não há mais debate nas campanhas eleitorais. Trump não foi a debates eleitorais. Não sei como foi no Brasil…

Sul21: Bolsonaro também não foi…

Jesús Sabariego: Não precisa, né? Os candidatos de extrema-direita não tem o que fazer nesses debates. Vão debater o quê? Eles não dependem desses debates para ter legitimidade e sequer tem um programa para debater.

Sul21: Aqui no Brasil, depois da eleição de Bolsonaro e de todo o papel que ferramentas como o Whatsapp tiveram na campanha eleitoral, muita gente do campo de esquerda e progressista acordou para esse novo mundo que já estava aí mas ainda não era percebido. Hoje, há uma espécie de corrida para entender e dominar também o uso dessas ferramentas. O caminho para enfrentar o uso que a extrema-direita faz delas é aprender a utilizá-las também só que com outro conteúdo e no sentido ideológico contrário? Você acha que isso faz sentido?

Jesús Sabariego: Não creio que faça. Penso que a resposta não está aí. O que precisa mudar é a relação social com a própria tecnologia. É claro que a tecnologia é uma boa ferramenta e você pode utilizá-la, mas esse uso tem que mudar. Se eles estão lançando fake news o tempo todo, vamos lançar mais do que eles, dizendo que os reaças estão comendo crianças ou algo assim, usando autobots, fazendas de likes, contratando hackers russos? Não é por aí. Precisamos de uma mudança radical na nossa relação com a tecnologia. A primeira coisa que precisamos entender é que precisamos nos apropriar da ferramenta. Precisamos nos apropriar dos modos de produção e dos meios de produção que, hoje, são os meios digitais.

Sul21: Isso parece ser um retorno a uma ideia clássica de Marx…

Jesús Sabariego: Não tinha pensado isso, mas pode ser. Talvez não seja tanto uma questão da relação da infraestrutura com a superestrutura. Nossa relação com a tecnologia precisa mudar. Tivemos aquelas tentativas de desenvolver uma ética hacker no início dos anos 2000 que rapidamente foram abandonadas. Temos textos belíssimos por aí que diziam que a internet ia ser um espaço livre dos comuns digitais…

“Precisamos nos apropriar desse modo de produção material e cognitivamente e estabelecer outro tipo de relação com a tecnologia. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Sul21: Nesta linha, tivemos o nascimento do Fórum de Software Livre aqui em Porto Alegre…

Jesús Sabariego: Sim, mas rapidamente ocorreram os “enclosures”, os fechamentos. O espaço comunal da internet, se é que alguma vez existiu, começou a ser fechado. Há algumas ideias míticas sobre isso, como a de que o primeiro email foi enviado por um hacker. Sim, tudo bem, mas como as coisas se desenvolveram? Precisamos nos reapropriar ou nos apropriar do modo de produção. Se eu quero acabar com o capitalismo, eu não posso replicar a estrutura da fábrica. Preciso me apropriar da fábrica e mandar embora o patrão. O patrão pode vir descalço, saindo de uma super universidade, com seu super celular, defendendo a liberdade da criação, o seja você mesmo, com um estilo couch, Steve Jobs, uma maravilha. Mas o seu celular pode estar vindo da Ásia, fabricado com trabalho infantil, usando materiais tóxicos em péssimas condições laborais, gerando conflitos na África e em outras regiões pelo controle de certos minerais. Quem produz todos esses chips e a que preço?

O que está por trás de toda essa tecnologia é a matriz da estrutura capitalista. Precisamos nos apropriar desse modo de produção material e cognitivamente e estabelecer outro tipo de relação com a tecnologia, criar os nossos próprios algoritmos. Os algoritmos deles vão decidir como serão nossas cidades, nossas casas. Estamos vendo agora o surgimento da tecnologia 5G. O que isso significa? Não é mais eu e você trocando mensagens pelo Whatsapp, mas todas as máquinas e equipamentos que existem nas cidades, nas nossas casas, todos os sensores e sistemas de vigilância, tudo isso ligado. Já não é mais o panóptico. O panóptico é você. E nem precisa mais do celular. Tudo vai ser monitorado 24 horas por dia, com coleta de dados, sistema de reconhecimento facial e um monte de outras coisas.

Há pouco tempo, circulou um aplicativo que mostrava como você vai ser daqui a 20 anos. Todo mundo embarcou na hora entregando todos os seus dados pessoais a quem estava por trás desse aplicativo. Por que agimos assim? É vaidade? Hedonismo? As pessoas colocavam sua vida privada no mundo para que qualquer um possa ter acesso a esses dados. Somos tão importantes assim para que todo mundo saiba o que a gente está fazendo? Quando eu era mais novo, nas boates lá na Espanha, as meninas entravam de graça. Alguém pode ter ficado feliz por ter entrado de graça, mas por que isso acontecia mesmo? É o acontece conosco nas redes sociais. A entrada é grátis. Afinal, somos nós que geramos o lucro. Estão obtendo lucro a partir da nossa intimidade.


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