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6 de outubro de 2019
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17:14

“O Estado, exceto no caso dos venezuelanos, não tem nenhuma ação para acolher migrantes”

Por
Sul 21
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Elton Bozzetto: “Se não fossem as organizações da sociedade civil, os migrantes não teriam nenhum tipo de acolhimento no Rio Grande do Sul”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Marco Weissheimer

O Rio Grande do Sul está recebendo cerca de 35 novos migrantes por dia, de diferentes nações, o que aponta a continuidade de um intenso fluxo migratório. Esse quadro, porém, não tem sensibilizado o Estado a construir políticas públicas de acolhimento e atendimento a essas pessoas. O levantamento é do Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instruções às Migrações (Cibai), que vem atuando como porta de entrada e de atendimento aos migrantes. “Se não fossem as organizações da sociedade civil, em sua extensa e diversa forma de atuação, os migrantes não teriam nenhum tipo de acolhimento no Rio Grande do Sul e no Brasil como um todo. O Estado brasileiro, exceto no caso dos venezuelanos, não tem nenhum tipo de ação para acolher os migrantes”, diz Elton Bozzetto, coordenador do Fórum Permanente de Mobilidade Humana/RS.

Esse cenário foi debatido no dia 30 de setembro, no salão de eventos da Missão Pompéia (que funciona junto à Igreja Pompéia), em Porto Alegre, no VII Seminário de Mobilidade Humana/RS. Promovido pelo Fórum Permanente de Mobilidade Humana, o encontrou reuniu representantes de entidades que atuam nesta área e de diferentes comunidades de migrantes. O seminário reafirmou o protagonismo das organizações da sociedade civil no acolhimento ao migrante, atuação que vem procurando suprir a ausência do Estado neste atendimento.

Em entrevista ao Sul21, Elton Bozzetto, coordenador do Fórum, fala sobre a situação de migrantes e refugiados e também sobre os desafios colocados neste cenário de continuidade de fluxo migratório e vazio de políticas públicas para acolher as pessoas que chegam ao Estado todos os dias. “Um dos principais muros que precisamos desconstruir no Rio Grande do Sul e no Brasil é o papel negativo que a imprensa desempenha em relação aos migrantes. Temos que ver o fenômeno da migração como uma oportunidade de enriquecimento e não como uma ameaça”, defende Bozzetto.

 Sul21: O VII Seminário de Mobilidade Humana escolheu como tema “Desconstruindo muros: para melhor acolher migrantes e refugiados”. Quais são esses muros que precisam ser desconstruídos?

 Elton Bozzetto: Esse é o sétimo seminário que estamos realizando. É a continuidade de um processo que iniciamos em 2012, sempre com a perspectiva de reafirmar e potencializar as ações em defesa da garantia do direito de migrar. De modo geral, no Brasil, a migração é vista como uma concessão. Precisamos mudar esse paradigma. A migração, na verdade, é um direito. Na medida em que a gente apenas diz que a migração é um fenômeno natural, não explicitamos toda a complexidade expressa no fenômeno migratório. Mais do que um deslocamento natural, a migração é um direito humano e, como tal, ela carrega uma complexidade que vai muito além da aceitação da pessoa neste contexto que ela optou por viver, envolvendo a situação legal, a questão cultural, a inserção em uma nova sociedade e a oportunidade laboral que ela precisa ter.

“Contabilizamos de 37 a 40 nações de origem presentes neste fenômeno migratório mais recente”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Neste encontro, estamos reafirmando nosso compromisso com essa concepção de migração e potencializar as ações da sociedade. Em uma das mesas, apresentamos oito ações que estão sendo feitas em distintos lugares do Rio Grande do Sul, mostrando como as comunidades locais estão fazendo a recepção dessas pessoas e assegurando o direito do migrante, tanto do ponto de vista de sua inserção no mercado de trabalho quanto, sobretudo, da integração cultural com essas comunidades. Isso é complexo de fazer porque integração cultural significa nós aqui estarmos abertos ao diferente, não apenas respeitando, mas também conhecendo, vivenciando e compartilhando esse jeito de ser diferente.

Sul21: De que universo de pessoas estamos tratando quando falamos desse fenômeno migratório no Rio Grande do Sul?

Elton Bozzetto: No Rio Grande do Sul, nós temos cerca de 108 mil migrantes vivendo hoje no Estado. Estamos contabilizando aqui todo o universo de migrantes oriundos do período pós-guerra, que vai desde 1945 até por volta dos anos setenta. Nos anos setenta iniciou um outro movimento migratório no Estado que compreende tanto o êxodo rural interno, mas especialmente os hispano-americanos que vieram de países limítrofes ao nosso em função de processos de perseguição nas ditaduras militares que se implantaram no cone sul da América. Mais recentemente, a partir de 2010, tivemos outro fenômeno migratório envolvendo os chamados migrantes globais, que vêm de diferentes locais do mundo para o Rio Grande do Sul.

Destes 108 mil, aproximadamente 32.500 são desse recente fluxo migratório que iniciou com os haitianos, em razão de toda situação causada pelo terremoto no Haiti que dizimou o país e também pela situação de desenvolvimento que vivia o Brasil e que chamou a atenção do mundo. Contabilizamos de 37 a 40 nações de origem presentes neste fenômeno migratório mais recente. Há uma predominância de haitianos e senegaleses, mas também há muitos peruanos, colombianos e, mais recentemente, o movimento dos venezuelanos que tem se ampliado a cada dia.

Há pouco se dizia na imprensa que o movimento migratório tinha refreado. No entanto, nós estamos contabilizando, através do Cibai (Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instruções às Migrações), que é a nossa porta de entrada e atendimento aos migrantes, a chegada de 35 novos migrantes por dia no Rio Grande do Sul. Essa informação desmente aquelas notícias que diziam, por exemplo, que os haitianos não estavam mais vindo pra cá. Continuamos a receber muitos haitianos que têm vindo por diversos caminhos. Uns vêm diretamente do Haiti, outros de deslocamentos a partir de outros países da América do Sul. Esse é o universo com o qual estamos lidando no Rio Grande do Sul.

Encontro reuniu representantes de entidades e de comunidades de migrantes que vivem no RS. (Divulgação)

Sul21: E quanto aos refugiados, qual o quadro atual?

Elton Bozzetto: Os migrantes, muitas vezes, já vêm de sua nação de origem com um visto de ingresso no país, como é o caso dos haitianos. Os haitianos, até em função da nova lei de migrações, ingressam no Brasil com o visto humanitário, desde que expedido pela nossa embaixada no Haiti. Os refugiados vem para cá em função de algum tipo de perseguição política que estão sofrendo em seu país. Há uma outra situação que são aqueles enviados pelo ACNUR, órgão da ONU que trabalha com as migrações. O que está acontecendo aí, na verdade, é um reassentamento humano. Estas pessoas estavam ou num campo de refugiados ou já tinham sido enviados como refugiados para outro país e agora está ocorrendo o deslocamento para o Brasil.

Sul21: Quantos refugiados há no Rio Grande do Sul atualmente?

Elton Bozzetto: Eu não tenho esse dado preciso. Acredito que tenhamos no Estado hoje algo em torno de 110 e 115 famílias.

Sul21: A maioria é de venezuelanos?

Elton Bozzetto: Não, temos de várias nacionalidades, colombianos, muitos árabes, sírios, afegãos. São pessoas que já foram deslocadas do seu país de origem e hoje estão sendo redirecionadas.

Sul21: Como está a nossa capacidade institucional de acolher essas pessoas?

Elton Bozzetto: Se não fossem as organizações da sociedade civil, em sua extensa e diversa forma de atuação, os migrantes não teriam nenhum tipo de acolhimento no Rio Grande do Sul e no Brasil como um todo. O Estado brasileiro, exceto no caso dos venezuelanos, não tem nenhum tipo de ação para acolher os migrantes. Quem tem feito algo é a sociedade civil organizada. Aqui no Rio Grande do Sul temos um leque de mais de duzentas entidades que, em diferentes regiões do Estado, fazem esse trabalho de acolhimento, recepção, cuidado e de inserção dessas pessoas no mercado local de trabalho. Mesmo as agências do SINE, que deveriam ser um espaço muito mais público e democrático, cedem à pressão de algumas empresas e não encaminham trabalhadores migrantes para o mercado de trabalho.

O Estado brasileiro tem uma dificuldade enorme para lidar com a questão da migração. No Rio Grande do Sul, sofremos o reflexo disso também. Quem faz o trabalho de acolhimento são entidades da sociedade civil. A minha instituição, por exemplo, a Cáritas Diocesana de Porto Alegre, este ano, por meio do programa Mensageiro da Caridade, equipou 79 residências de migrantes, a maioria deles vinda através do programa de interiorização do governo federal. Essas pessoas foram alocadas em abrigos, especialmente em Porto Alegre, Canoas e Esteio, na Região Metropolitana. Quando terminou o prazo previsto pelo programa de interiorização para ficarem nestes abrigos, algumas delas tinham para onde ir mas sem nenhum tipo de assistência da parte do Estado, sem nenhuma política pública de auxílio na organização de sua vida. Nestes dois abrigos, de Canoas e Esteio, nós ofertamos móveis e utensílios domésticos para organizar 79 residências. É apenas um de tantos outros exemplos do que a sociedade civil vem fazendo para suprir uma atribuição que seria do Estado para acolher, proteger e inserir essas pessoas.

“O respeito ao direito de hospitalidade tem aumentado muito”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: Chegou a ocorrer a liberação de uma verba, pelo governo federal, para a construção de um centro de referência e acolhimento de migrantes aqui no RS, o que acabou não se concretizando. O que ocorreu?

Elton Bozzetto: Graças a uma mobilização da sociedade civil, particularmente do Fórum Permanente de Mobilidade Humana, obtivemos a alocação de R$ 735 mil pelo governo federal para a construção de um centro de referência de atendimento ao migrante aqui no Estado. A Prefeitura Municipal de Porto Alegre e o Estado do Rio Grande do Sul não conseguiram se entender para viabilizar a contrapartida local que era mínima, um espaço e alguma coisa mais para garantir o atendimento propriamente. O Rio Grande do Sul perdeu essa verba e nós ate hoje não temos um centro de referência para acolhimento dos migrantes. Lamentavelmente, uma disputa inglória entre esses dois entes públicos fizeram com que perdêssemos esse recursos conquistado a duras penas pela sociedade civil.

Sul21: O Rio Grande do Sul vem se mostrando, nos últimos anos, um dos estados mais conservadores do país. Da parte da sociedade, como vem sendo a recepção aos migrantes e refugiados, pelos relatos que vocês recebem?

 Elton Bozzetto: Penso que a postura que vemos aqui no Rio Grande do Sul não difere muito da do resto do Brasil. Acho que a concepção de acolhimento dos migrantes tem avançado muito. Em muitas regiões, há um trabalho efetivo de organizações da sociedade civil, particularmente junto às unidades de ensino. Muitas escolas têm trabalhado a temática migratória. Costumo dizer que a mudança de qualquer concepção ou percepção é resultado de um processo que você empreende. E o processo que estamos empreendendo para mudar essa concepção começa com a educação e vai até ações de conscientização que as entidades fazem de acordo com os seus públicos e as suas áreas de atuação.

O respeito ao direito de hospitalidade tem aumentado muito. Creio que essa é uma questão que devemos aprofundar. O direito de hospitalidade é o direito de ser acolhido e de prover a sua subsistência em qualquer lugar da face da Terra. Acho que devemos trabalhar mais com as pessoas em torno desse tema. O medo que se estabeleceu em uma larga parcela da população é um medo que não se sustenta.  Quando a gente trata a migração como uma ameaça, estamos provocando medo e esse medo precisa ser desconstruído.


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