Saneamento Básico|z_Areazero
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10 de outubro de 2019
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17:00

Empresa privada ficará com ‘filé’ e deixará o restante para o Estado, diz sindicato sobre PPP

Por
Sul 21
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Corsan
“Em mais de 90% das cidades onde a CORSAN opera o índice de esgotamento é zero”. Foto: Divulgação/Corsan

Felipe Prestes

O Governo do Estado lançou em agosto edital para Parceria Público-Privada de esgotamento sanitário em nove cidades da Região Metropolitana. O edital prevê que todos os municípios chegarão a 87,3% de esgoto tratado até 2030. A iniciativa privada vai operar os serviços por 35 anos. Os investimentos privados chegarão a R$ 1,8 bilhão, enquanto a CORSAN vai investir de 500 a 600 milhões. Ao longo dos 35 anos de contrato, a empresa privada deverá receber cerca de R$ 9,5 bilhões pelos serviços de esgotamento – o abastecimento de água seguirá a cargo da empresa pública. Para o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Estado do Rio Grande do Sul (SINDIÁGUA), o Governo está cedendo a operação em uma região rentável e que já recebe investimentos públicos, enquanto o interior do Estado carece muito mais de recursos. 

“O filé de arrecadação vai para a empresa privada, e onde ela não tiver interesse vai ficar para o Estado. As cidades grandes, que poderiam financiar as obras do interior, vão estar na mão da iniciativa privada. Como o Estado não vai ter dinheiro para investir, as cidades do interior vão ficar eternamente sem esgotamento sanitário”, afirma Rogério Ferraz, diretor de divulgação do Sindicato. 

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Ferraz diz que o sindicato é contrário às PPPs por entender que os serviços de saneamento devem ser públicos, mas que ficaria mais difícil se opor a PPPs em pequenas cidades do interior do Estado. “Em mais de 90% das cidades onde a CORSAN opera o índice de esgotamento é zero. Agora, tu privilegiar justamente onde houve o maior investimento público em esgotamento sanitário e entregar de mão beijada para a iniciativa privada, e não fazer no interior…Se era realmente fato que o RS precisa da iniciativa privada, vamos lá para o interior. Aí a gente vai ver quem é parceiro e quem é aproveitador. Ser parceiro só nas boas não é relação de amizade. E é isso que as empresas privadas fazem”. 

Rogério Ferraz, diretor do Sindiágua (Foto: Maia Rubim/Sul21)

O dirigente ressalta que a CORSAN já está investindo nas nove cidades em que a PPP será feita (Alvorada, Viamão, Cachoeirinha, Gravataí, Canoas, Esteio, Sapucaia do Sul, Guaíba e Eldorado do Sul). “A estação de tratamento é uma das partes mais caras (do esgotamento sanitário). Sabe quantas estações de tratamento a PPP vai construir nessas nove cidades? Nenhuma”.

De fato, o edital, em seu caderno de encargos, não prevê a construção de nenhuma estação de tratamento. A região em que ocorrerá a PPP conta com uma grande lacuna em esgotamento sanitário e alguns dos rios mais poluídos do país, como o Sinos e o Gravataí. Esta lacuna vem de décadas de descaso dos governantes em nível nacional e local quanto ao esgotamento. Mas a partir de 2007 investimentos públicos voltaram a ser feitos em todo o país, e não foi diferente na Região Metropolitana. Até 2024 a CORSAN seguirá investindo na região, segundo consta no próprio edital da parceria.  

Existem cidades em que a meta de universalização da PPP (de 87,3%) será ultrapassada apenas com recursos da CORSAN, sem investimentos privados. É o caso de Esteio. A cidade conta hoje com 10,5% de cobertura, mas todas as redes para atingir mais de 90% da população já estão prontas. Porém a FEPAM não autorizou a CORSAN a despejar o esgoto tratado no córrego ao lado da estação de tratamento, ordenando que fosse feito um emissário até o Rio dos Sinos. “Quando eu tiver esse emissário pronto, Esteio vai dar um salto. O que vai acontecer? Um ‘milagre’ em Esteio. Vão dizer ‘olha aí a ineficiência do serviço público, deixou Esteio com 10% e a iniciativa privada tão logo assumiu já chegou a 90%’. Mas é a CORSAN que está fazendo a obra”, ressalta o dirigente sindical. O município de Cachoeirinha também já tem investimentos públicos vultosos. Deve chegar a 84% de esgoto tratado após as obras do PAC. “Então o que Esteio está fazendo na PPP? O que Cachoeirinha está fazendo?”, questiona Rogério Ferraz. 

A CORSAN respondeu via assessoria de imprensa, por email. Segundo a Companhia, municípios que terão menos investimentos da parceira privada ajudam a dar viabilidade financeira ao modelo de PPP. A resposta cita inspeção especial feita pelo Tribunal de Contas do Estado, em que os auditores anotaram:  “A escolha pela atual área de abrangência, da forma como apresentada e com as necessárias providências para eliminação de custos pela Companhia na transferência dos serviços para a SPE, mostrou-se viável para a CORSAN”. 

Ainda segundo a Companhia – que estuda outras PPPs, mas não revela em que cidades – só com seus próprios recursos ou financiamentos levaria mais de 50 anos para universalizar o esgoto em todos os 317 municípios em que atua. “Com a PPP na região metropolitana, que exige maior planejamento e infraestrutura urbana, a empresa parceira entra com recursos próprios, constrói as redes coletoras e estações de tratamento e é remunerada pela Corsan. A parceria garante mais investimentos, benefícios para a sociedade e fortalece o trabalho da Corsan em outros municípios do Rio Grande do Sul. Além disso, o trabalho nessa região vai melhorar a qualidade das águas de dois dos rios mais poluídos do Brasil: Sinos e Gravataí”. 

“Existem cidades em que a meta de universalização da PPP (de 87,3%) será ultrapassada apenas com recursos da CORSAN, sem investimentos privados”. Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Mas, para o Sindicato, a iniciativa privada não vai entrar exatamente com recursos próprios e sim com a verba dos usuários, a mesma que a CORSAN teria acesso. “Após o términos das obras do PAC, teremos 328 mil economias de esgoto nesta região. Pelo consumo médio, serão cerca de R$ 12,7 milhões de arrecadação que irão para a empresa privada. Com esses recursos a CORSAN teria condições de fazer as obras restantes”, garante Ferraz. 

O Sindicato ressalta também que a Companhia ofereceu vultosos recursos às Prefeituras que aceitaram integrar a PPP (o saneamento é de responsabilidade municipal, embora seja realizado, em 317 gaúchas, pela CORSAN), quando da renovação do contrato da empresa com os municípios. As Prefeituras receberão cerca de R$ 266 milhões. Só o município de Canoas deve receber R$ 103 milhões por aderir à PPP. “A CORSAN lucra 250, 300 milhões por ano. O superávit de um ano inteiro, repassou para os prefeitos”, ressalta Ferraz.

Embora a CORSAN tenha dito que vai investir R$ 370 milhões, a companhia já admite que, na verdade, serão entre 500 e 600 milhões, tanto em atas de reuniões quanto publicamente, caso da fala do diretor de Operações da empresa, Eduardo Carvalho, durante o IX Fórum Internacional de Gestão Ambiental, realizado na semana passada.

O Sindiágua pontua que, se a empresa privada vai investir R$ 1,85 bilhão, também é verdade que há um montante semelhante de recursos públicos indo para as nove cidades da PPP. Em obras do PAC as nove cidades da PPP devem ter investimentos, já concluídos ou em andamento, de R$ 877 milhões, além do auxílio aos prefeitos e outros programas. O somatório de tudo o que a CORSAN investiu é 1,718 bilhão. Nós estamos taco a taco com os investimentos privados previstos pela PPP”, diz Rogério Ferraz. 

O diretor de Divulgação do Sindiágua critica também o que chama de maquiagem de dados na propaganda que antecedeu a aprovação da PPP pelos vereadores dos nove municípios. Ferraz aponta que tanto a CORSAN quanto a Prefeitura de Canoas divulgaram que havia apenas 28% de tratamento de esgoto na cidade. “Depois que aprovaram, dali dois dias, a CORSAN já tinha matéria falando que a cobertura era de 43%”, diz Ferraz. De fato, uma breve pesquisa encontra diversas notícias falando que a cobertura de Canoas era de 28%. Mas no próprio edital consta que o município tem 42,96% de cobertura. Ocorre que muitas pessoas não se ligam à rede de esgoto mesmo tendo acesso. Prefeitura e CORSAN não mentiram, mas utilizaram os dados como melhor convinha a seu projeto. 

Perda de recursos públicos 

A partir de 2007, após décadas de baixos investimentos, foi aprovado um marco regulatório para o país e um plano de saneamento. Recursos do FGTS e também do orçamento da União começaram a ser utilizados em todo o país. Em uma seleção do PAC 2, a CORSAN captou com recursos do Orçamento-Geral da União, a fundo perdido, R$ 521 milhões para o Vale dos Sinos, incluindo os municípios de Nova Hartz, Nova Santa Rita, Parobé, Portão, Santo Antônio da Patrulha, Sapiranga, Taquara, Estância Velha e Canoas. Destes recursos, a CORSAN perdeu R$ 230 milhões por projetos que demoraram demais para serem elaborados. 

Em Canoas, os recursos chegavam a 216 milhões e previam redes de esgoto, além de ampliação da estação de tratamento. Apenas esta última obra foi mantida, no valor de R$ 62 milhões – os recursos para as redes foram perdidos. “Canoas não poderia ficar de fora da PPP, porque é a maior arrecadação, é o filé. Mas se fizessem os R$ 216 milhões de obras em Canoas, ficaria difícil convencer a opinião pública de que precisamos de PPP. Então, o Governo simplesmente não aproveitou os 216 milhões”, dispara Rogério Ferraz, diretor de divulgação do Sindiágua.  

Flávio Presser, diretor-presidente da CORSAN durante o Governo Sartori, qualifica como “invencionice” do Sindiágua que os recursos foram perdidos para viabilizar a PPP. Segundo ele, a perda se deu por dificuldades em fazer projetos e na falta de recursos do Governo Federal devido à crise econômica. “Ao longo de 2010 até 2013 foram abertas linhas de financiamento, tinham como fonte o orçamento-geral da União e o FGTS, para obras. Fazia dez anos que não tinham linhas de financiamento públicas para a área de saneamento. Isso fez com que as companhias se assanhassem para pegar essas recursos e a CORSAN pegou cerca de R$ 2,5 bilhões. Só que não tinha projeto”, relata Presser. 

Segundo o ex-diretor da CORSAN, a administração de Tarso Genro fez várias tentativas de processos licitatórios por Regime Diferenciado de Contratações, onde os projetos seriam feitos pelo próprio empreendedor que tocasse a obra. “Essas RDCs deram vazias (não houve interessados). Isso levou a necessidade de contratar serviços terceirizados para fazer os projetos. Os projetos não progrediram. Os contratos que a CORSAN fez, com recursos do orçamento-geral da União, foram entre 2011 e 2013 e eles tinham dois anos para execução. Eu entrei em 2015, os prazos já estavam vencidos e foram feitos vários aditivos contratuais para atender esses problemas”. Só que, segundo Flávio Presser, o Tribunal de Contas da União detectou que projetos de infraestrutura em todo o Brasil não estavam saindo do papel. “O TCU estabeleceu uma data para a CEF, os projetos aprovados até aquela data teriam continuidade, os demais seriam suspensos”. 

Ainda segundo o ex-diretor da CORSAN, o Governo Federal começou a ter dificuldades para repassar os recursos. “Chegou ao ponto de a Caixa Econômica Federal não ter nos repassado cerca de R$ 140 milhões, que nós realizamos e que não tinha dinheiro para nos pagar. Teve obras prontas, entregues, sem que fossem repassados recursos, por falta de orçamento. E uma das razões que houve demora é porque vinha ordem do Ministério das Cidades ‘retém isso porque não tem dinheiro’”, afirma. 

Flávio Presser defende realização de Parceria Público Privada (Foto: Karine Viana/Palácio Piratini)

 Flávio Presser defende a realização da PPP. “É uma forma de aquisição, é um processo de concessão especial, onde todas as obras são patrocinadas pelo parceiro privado para dar velocidade e para ele poder captar os recursos. Quem se endivida é o parceiro privado e não a Companhia. E vem alimentar a possibilidade de entregarmos o sistema universalizado até 2033, como está no planejamento. Ou a gente adia isto também. Não sei por que o sindicato não diz que 2033 não é um prazo legal e que a sociedade espere até 2050 ou seja lá quando Deus quiser”. 

A resposta da atual gestão da CORSAN sobre a perda de recursos do orçamento-geral da União vai na mesma linha. “Quando teve início a crise fiscal nacional, a partir de 2014 e mais intensamente a partir de 2015 e o recurso ficou escasso e as restrições para liberação aumentaram. Tanto é que a Corsan, para não parar obras importantes, adiantou mais de R$ 100 milhões, fazendo as obras com dinheiro próprio. Este é um cenário que é nacional. Há inclusive um relatório do TCU que indica que foi um fenômeno nacional ocasionado pelo contingenciamento de recurso por parte do governo federal”, afirmou a empresa, por meio da assessoria de imprensa. 

Segundo o Sindiágua, a CORSAN tem ainda R$ 1 bilhão em recursos do PAC que podem ser perdidos por falta de projetos. A reportagem do Sul21 questionou a companhia sobre esta denúncia, mas não houve resposta. 

Terceirizações crescem na CORSAN 

Segundo o diretor de Divulgação do Sindiágua, o esgotamento sanitário não é o único setor cujas atividades têm sido repassadas à iniciativa privada, uma vez que diversos setores foram terceirizados. “Tratamento de água, atendimento ao público, operação das nossas redes, conserto de vazamentos, tudo isso era atividade-fim. A partir do momento em que tu começa a fazer contratos com empresas privadas para fazerem esse serviço, em detrimento da mão-de-obra qualificada do concursado, isso é privatização”, afirma Rogério Ferraz.  

O dirigente sindical questiona ainda a eficiência dos serviços terceirizados. “O usuário reclama muito de quê? Da buraqueira que a CORSAN deixa. Quem é que faz esse serviço de repavimentação? A empresa privada, terceirizada, que é contratada pela CORSAN. Aí o presidente diz que vai aumentar a eficiência privatizando o restante dos serviços”. 

Outro serviço que foi precarizado, segundo Ferraz, foi o atendimento ao público. “No interior, as pessoas conheciam o funcionário da CORSAN pelo nome. Essa pessoa não fala mais. O usuário liga para um número 0800. E o nível de reclamação desse 0800 é altíssimo. Ninguém atende mais o telefone lá em São Pedro do Sul, por exemplo. Tem um vazamento na tua casa, tu ligas para a central, em Porto Alegre. Então, a pessoa não conhece nada de São Pedro. Esse serviço, que causa uma insatisfação muito grande no nosso cliente, é feito por empresa privada”. 

Sobre os serviços terceirizados, a CORSAN responde que “fiscaliza todos os contratos com fornecedores, visando ao melhor atendimento e adota as medidas cabíveis e aplicadas penalidades previstas em contrato quando ocorre qualquer problema na prestação do serviço”.  


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