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9 de julho de 2019
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19:10

Prefeitura ‘pró-empreendedor’ não tem plano para comerciantes removidos da Vila Nazaré

Por
Luís Gomes
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Moradores da Vila Nazaré temem perder os negócios que têm na região com a remoção da comunidade para a ampliação da pista do Aeroporto Salgado Filho | Foto: Luiza Castro/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Clélio Carlos de Ávila, 45 anos, tem uma oficina de bicicletas na Vila Nazaré há 20 anos. No processo de remoção da comunidade para que possa ser feita a ampliação da pista do Aeroporto Salgado Filho, ele foi sorteado para ganhar um apartamento em um dos dois condomínios do programa Minha Casa Minha Vida para os quais serão encaminhadas as famílias removidas, um processo que vem sendo realizado desde o dia 21 de junho pela concessionará alemã Fraport e pelo Departamento Municipal de Habitação (Demhab). No loteamento Senhor do Bom Fim, localizado nas proximidades da Av. Assis Brasil, Carlinhos, como é conhecido, terá direito a um imóvel de dois quartos no quarto andar.

A situação dele, no entanto, é problemática pelo fato de que não há, no momento, perspectiva de que ele possa continuar com o seu negócio e única fonte de renda atual. Como a oficina não tem banheiro e é anexa à casa dele, a Prefeitura considerou como um imóvel só e decidiu que ele não receberá indenização por ela. A sua remoção está marcada para o dia 19 de julho. “O meu sustento é daqui e eles não vieram fazer nenhuma proposta de nada. Sobre comércio, ninguém veio falar, da Fraport, nem ninguém. Eu estou na mão de Deus, não sei mesmo o que vai acontecer”, diz. No entanto, Carlinhos explica que aceitou se mudar para o condomínio porque não tinha outra proposta, embora, se houvesse, preferisse outra alternativa. “A gente não tem nenhuma posição de eles chegarem e dizer quem não quer ir para tal lugar tem essa proposta, nada. Tu tem que aceitar o que vier”.

Carlinhos obtém sua renda de uma oficina de bicicletas que tem na Nazaré há 20 anos. Ele não sabe como continuará trabalhando depois que mudar para o loteamento Senhor do Bom Fim | Foto: Luiza Castro/Sul21

Inicialmente, as remoções estavam ocorrendo no ritmo de quatro por dia, sendo acompanhadas por policiais militares. O plano da Prefeitura é remover 1,3 mil famílias da Nazaré até o final de 2019. Esse número é referente ao número de moradores da Nazaré apurados em um cadastro realizado pelo Demhab em 2010. Do total, 364 serão realocadas no loteamento Senhor do Bom Fim. Outras 936, no loteamento Irmãos Maristas, na Vila Timbaúva, bairro Rubem Berta, que ainda não foi concluído, mas está em fase final. Um segundo processo de cadastramento está sendo realizado desde 2018, por meio de uma empresa terceirizada, para saber quantas famílias precisam e gostariam de se mudar para os condomínios do Minha Casa Minha Vida. Segundo o Demhab, o processo ainda não foi encerrado.

Criada há mais de 50 anos, a Nazaré é parcamente urbanizada. Há uma rua pavimentada e com nome que dá acesso à comunidade, a Alfredo Neri Soares. As outras são ruas identificadas de A a G e becos, a maioria de chão batido. Parte das casas é de madeira e algumas, de fato, estão em situação de insalubridade. Mas há também casas de alvenaria, com dois pisos, diversos quartos. Não é anormal ver carros novos circulando pela região. Além da oficina de Carlinhos, há vários tipos de comércio, mercadinhos, bares, brechós, além de diversas outras atividades que são realizadas dentro das residências dos moradores. As famílias a serem removidas estão localizadas num trecho de 160 m de largura por 760 m de extensão, grande parte dentro do que é considerado como o sítio aeroportuário. As obras da ampliação da pista são praticamente vizinhas à comunidade.

Remoção das famílias da Nazaré começou no dia 21 de junho e deve se estender até o final do ano | Foto: Luiza Castro/Sul21

As lideranças comunitárias da Nazaré dizem que há famílias interessadas em irem para o condomínio Senhor do Bom Fim. Contudo, dizem que a situação muda de figura quando a opção é a Timbaúva. O problema é que este segundo fica mais longe, distante cerca de 10 km da Vila Nazaré, uma viagem de mais de uma hora de ônibus. “O pessoal quer ir para o Bom Fim. Para os Irmãos Maristas fica mais difícil”, diz Daniel Alex da Silva Dutra, mais conhecido como Alex, presidente da ONG Instituição Criança Feliz Nazaré, que é responsável por realizar atividades de lazer e eventos dentro da Vila.

Para Fernando Costa, do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Teto (MTST), que tem atuação na região, as famílias, por estarem há décadas no local, já deveriam ter o direito à posse da terra e não serem tratadas como vulneráveis como está ocorrendo. Alex também questiona o fato de que a Nazaré foi classificada pela Prefeitura como uma invasão de beira de estrada. “Isso aqui é uma vila. Dá para dizer que tenha em torno de 5 mil habitantes, nós somos uma cidade”, diz.

As lideranças destacam que não se está dando alternativas para as famílias que não estão interessadas em se mudar para algum dos condomínios e que o Demhab está ameaçando promover o despejo por ordem judicial. As ameaças, repetidas também por funcionários da empresa contratada para fazer o novo cadastramento, seriam no tom de “se não sair por bem, vai sair por mal”,o que significa, para os moradores, um despejo realizado mediante uma operação policial. Eles argumentam que mesmo uma troca “chave por chave” não seria justa para as famílias, uma vez que estão abrindo mão de casas, em diversos casos, maiores do que aquelas que vão receber. Outro temor é que moradores tenham que abrir mão da renda de negócios locais sem a perspectiva de terem um espaço nos condomínios para isso e sem receberem nenhuma indenização. O mesmo vale para quem trabalha com a reciclagem.

Depois de serem demitidos, Gilmar e a esposa transformaram a garagem de casa em pastelaria | Foto: Luiza Castro/Sul21

Gilmar Rodrigues de Oliveira, 39 anos, é um dos empreendedores locais que utiliza parte de sua residência como local de comércio. Há alguns anos, ele e a esposa trabalhavam em um condomínio de classe média da cidade. Ele, na portaria, e ela, com serviços gerais. Veio a crise e, para cortar custos, alguns funcionários do local foram mandados embora. Diante da necessidade e da dificuldade de conseguir um novo trabalho, o casal resolveu tentar vender pastel na Nazaré. Eles não tinham experiência no ramo, mas, na adolescência, Gilmar havia trabalhado em uma pastelaria e aprendido o básico. Deu certo. Todos os dias, Gilmar tira a moto e o carro da família, desliga a máquina de lavar roupa, organiza a garagem e abre no espaço uma pastelaria que funciona das 17h à 0h. A opinião dos vizinhos é de que se trata de um dos melhores pastéis da cidade. “É mais ou menos no improviso. Foi a maneira que a gente achou para sobreviver”, diz.

A família não estava entre as primeira sorteadas para a remoção, mas Gilmar tem medo do que pode acontecer quando a vez deles chegar. “Se a gente sair daqui, como vai ser? Como eu vou montar uma lancheria dentro do apartamento? Mesmo que deem um box para a gente trabalhar. Mas a gente não sabe. Ou talvez possam construir no futuro. Que futuro? O futuro é agora. Para me tirar daqui, teria que ter um local pronto para começarmos a trabalhar. Da onde que eu vou tirar o meu sustento? Eles falaram para gente que tem projeto de construção. Mas a gente não sabe dessas informações, eles não nos passam”.

A posição oficial do Demhab é de que os dois condomínios do Minha Casa Minha Vida para o qual estão sendo levadas as famílias da Nazaré contarão com unidades comerciais para atender às necessidades das famílias que obtêm renda do comércio local. Além disso, promete que haverá creches nos locais e atendimento de saúde nas regiões.

Alex questiona o fato de que não foi feito um estudo socioeconômico para compreender as perspectivas de renda para quem tira o seu sustento da comunidade e que a Prefeitura, quando cobrada disso, diz apenas que “tem um projeto”, o que não foi apresentado aos moradores. Há também o problema de que nem todos os comerciantes atuais são considerados como tal, uma vez que a métrica utilizada pelo Demhab para considerar o que é um comércio à parte de uma residência é se há um banheiro separado, o que não é a realidade de todos os negócios da vila.

Um dos líderes comunitários da Nazaré, Alex diz que há o temor de que nem todos os comerciantes da vila terão espaço nos condomínios | Foto: Luiza Castro/Sul21

Preocupação com segurança

Além do problema da falta de estrutura nos novos condomínios, há o temor quanto às condições de segurança dos moradores nesses locais, especialmente no loteamento Irmãos Maristas, localizado na Timbaúva. Com capacidade para 1,3 mil famílias, o condomínio receberá, além das 936 oriundas da Nazaré, moradores de outras vilas da cidade. Para Alex, isso pode ser problemático, porque são comunidades com culturas e experiências distintas. Os moradores da Nazaré dizem que já receberam a informação de que não serão bem vindos pelas comunidades já estabelecidas na região.

Fernando diz que, em reuniões da mesa de negociação formada entre os moradores e entidades envolvidas na remoção, engenheiros da Caixa relataram um “momento de filme” quando apareceu escrito em um banheiro da obra uma mensagem atacando um chefe do tráfico da Timbaúva. Posteriormente, houve uma resposta de membro de outra facção. “Um cara de uma das facções entrou, reuniu todos os trabalhadores, o pessoal armado, parou a obra, e perguntou: ‘quem foi que escreveu isso aqui de nós no banheiro’. Os engenheiros não queriam mais ir para a obra”, diz. Para ele, uma remoção sem planejamento quanto à segurança pode deixar as famílias no meio do fogo cruzado da disputa entre facções. “A gente já viu o que foi o processo da Dique, a quantidade de mortes e conflitos que teve na chegada, sem ter um trabalho, sem ter uma gestão, foi enorme”, afirma.

Itamar, que tem um bazar com a esposa Denise, colocou a família dentro do carro para conhecer o condomínio Timbaúva, mas diz que não conseguiu entrar  | Foto: Luiza Castro/Sul21

A casa de Itamar de Miranda Gonçalves, 41 anos, e Denise Flores, 38 anos, que também abriga o bazar da família, não tem a letra “R” pintada na fachada, o que significa que eles deverão ficar para a etapa de remoção para o condomínio Irmãos Maristas. Fora isso, não sabem de nada. Além da questão do comércio, que não sabem se poderão manter depois da mudança, o casal diz que gostaria de permanecer na Nazaré pela proximidade com a Escola de Educação Especial Cerepal, localizada no bairro Passo D’Areia, onde a filha de 16 anos, que tem deficiência, estuda desde os cinco anos. “A gente tem que levar ela todos os dias para a escola. Mudando daqui, fica mais longe”, diz Itamar.

Itamar conta que, recentemente, pegou o carro, colocou toda a família — o casal tem três filhos — e foi visitar o condomínio Irmãos Maristas. “Só que eu não consegui entrar lá porque é muito difícil o acesso. Imagina para quem está saindo de manhã e indo pegar o ônibus para trabalhar? Aqui é uma vila também, mas lá a gente não conhece ninguém. É uma vila totalmente hostil e a gente sabe que tem guerra de facções lá. Geograficamente, está situado no meio do fogo cruzado lá, tem vila por todos os lados, e ouvimos relatos de que nenhuma quer que a gente vá para lá. E aí, como é que vai para um ambiente hostil dessa forma? Tu sai para trabalhar, sabe que teus filhos têm que estudar e como é que fica a tua cabeça? É complicado”, diz.

Já a Nazaré, apesar de ser uma vila, é considerada pelos moradores como um local seguro. “Tem muita gente que diz que está feliz em sair daqui, mas eles não sabem que lá fora acontecem muitas coisas ruins. Aqui, a gente está seguro. O pessoal vem, senta, toma cerveja, amanhece, sai festa, todo mundo se diverte e não acontece nada”, diz Neusa Antunes da Silva.

O bar de Neusa e José vende de tudo e fica aberto até o último cliente ir para casa, diz a proprietária | Foto: Luiza Castro/Sul21

Nascida no interior de São Luiz Gonzaga, Neusa casou “ainda menina”, aos 17 anos, mas se separou do marido e veio de mudança para Porto Alegre. Passou primeiro pela zona sul da Capital, onde trabalhava em uma pizzaria. Quando o estabelecimento fechou, comprou uma casinha na Nazaré ao lado do atual companheiro, José. Dois anos mais tarde, nasceu Leandro, filho do casal. Por um tempo, Neusa trabalhou como doméstica. Mas, juntando dinheiro, um dia conseguiu comprar uma chapa para fazer xis e uma mesa de sinuca, vendida por um vizinho a R$ 150, uma soma importante na segunda metade dos anos 1990. Depois, compraram uma caixa de cerveja e um fardinho de referi de cada marca. “Foi assim que a gente começou, tudo de pouquinho”.

Isso faz 20 anos. Inicialmente, seguiu trabalhando de doméstica, enquanto José era segurança. Tocavam o bar depois de chegarem do serviço. O negócio cresceu e conseguiram largar os empregos. Atualmente, io estabelecimento abre no meio da tarde e “não tem horário para fechar”. Vende de tudo. Lanche, xis, cachorro-quente, torrada, bebida, cerveja, miojo, trakinas, salgadinho e por aí vai. Localizado perto da principal rua de acesso à Nazaré, é também uma espécie de centro da vida noturna da vila. Quando a comunidade comemorou sua festa junina, no mês passado, Neusa conta que os últimos clientes só foram para casa com o sol raiando.

Questionada sobre o que vai fazer depois da remoção, Neusa diz que não tem informação nenhuma sobre o seu futuro. “Nem posso te dizer, porque eles não falam nada, ficam sempre mentindo, mentindo”, diz. Se dependesse dela, preferia ficar. José também. Ele, inclusive, já teria ameaçado se acorrentar à casa para impedir que fosse demolida. “Eu estou achando horrível, porque eu tô velha, tô com 53 anos, vou parar de trabalhar e fazer o quê? Vou viver do quê?”, diz.

Tio Véio diz que tem cerca de 300 clientes na Nazaré | Foto: Luiza Castro/Sul21

O dinheiro da Nazaré pagou a faculdade das filhas

A remoção vai afetar os negócios não apenas dos moradores da Nazaré. Gabriel Zatti, conhecido como Tio Véio, há cerca de 20 anos vende frutas e verduras na comunidade. “Vim lá do interior, de Frederico Westphalen, e comecei a vender verduras na Nazaré”. Os produtos, ele compra na Ceasa no início da tarde. A partir das 16h, começa a circular pelas ruas e vielas da vila com uma kombi carregada de alimentos. Só vai embora à noite, por volta das 21h30. Antigamente, o serviço era conhecido como “Kombi do Real”, porque todos os produtos eram vendidos em quantidades que custavam R$ 1. Com a inflação, os preços subiram, mas continuam cabendo no bolso dos moradores.

A relação dele com a comunidade é na base da confiança. Carrega um caderninho em que anota as compras de todo mundo que faz fiado. Um dos clientes que compra no caderninho é Alex. Semanalmente, ele pega os legumes e verduras necessárias para servir 120 porções no sopão comunitário das sextas-feiras. São pelo menos 300 os clientes que têm o nome anotado no caderno, mas ele frisa que todo mundo costumar pagar as contas. “Eu me dou com todo mundo. Nunca fui assaltado, e saio tarde da noite daqui”, diz.

Com o dinheiro conquistado na Nazaré, conseguiu pagar a faculdade de Pedagogia para a filha mais velha, a primeira da família a ter ensino superior. Ela depois faria Psicologia e pós-graduação, atualmente fazendo um doutorado. A filha mais nova também cursa Pedagogia, na Unisinos, financiada pela kombi do Tio Véio. A remoção da vila também lhe traz preocupação. “Eu tiro meu sustento daqui. Com a remoção, vai espalhar todo mundo. Não sei o que vai ser”, diz Tio Véio, que afirma nunca ter ouvido falar da Timbaúva.

Desde que se elegeu prefeito, em 2016, Nelson Marchezan Júnior (PSDB) tem dito que quer facilitar a vida do empreendedor de Porto Alegre. Em visita às obras de ampliação do aeroporto em abril ao lado do governador Eduardo Leite (PSDB), ele destacou que aquela parceria com a iniciativa privada era um símbolo de progresso. Contudo, para as lideranças comunitárias, todo sistema econômico da Vila Nazaré está sendo ignorado pela Prefeitura. “Eles falam de economia criativa. Quer economia mais criativa do que essa aqui, que nasceu da necessidade?”, questiona Fernando. “Eles também gostam de falar de criação de empregos diretos. Aqui vai ocorrer a geração de desemprego indireto”.


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