Entrevistas|z_Areazero
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15 de julho de 2019
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10:18

‘Não é só o direito à moradia que está sendo violado em Porto Alegre, mas o direito à existência’

Por
Sul 21
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Ezequiel Morais: “O compromisso desse governo não é com a galera excluída ou com a classe social mais desprovida de economia e de condição de vida”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Marco Weissheimer

O problema da falta de moradia que atinge milhares de pessoas em Porto Alegre, como ocorre na maioria das grandes cidades brasileiras, vem se agravando pelo desmonte de políticas públicas de habitação e de assistência social e também pela desestruturação de territórios inteiros, pressionados pela violência e por grandes projetos que retiram comunidades inteiras de suas casas, impactando modos de vida, relações econômicas e sociais. “Os problemas de moradia não se resumem aos enfrentados pelas pessoas em situação de rua. Temos famílias que estão perdendo suas casas por essa falta de políticas públicas, de trabalho ou pela impossibilidade de conviver com determinadas situações”, diz Ezequiel Morais, da coordenação estadual do Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLN).

Em entrevista ao Sul21, Ezequiel fala sobre o que tem presenciado nas ruas da capital gaúcha e denuncia que não é só direito à moradia que está sendo violado, mas o próprio direito à existência de milhares de pessoas. “As pessoas estão morrendo e não há nenhum esboço de reação, sequer humanitária, por parte do município. Ao contrário disso, são algumas parcerias privadas que estão se colocando à disposição para fazer algo”, afirma.

Sul21: O tema do déficit de moradia e das graves condições de vida que enfrenta a população em situação de rua em Porto Alegre ganhou um maior destaque midiático nos últimos dias por conta do frio intenso e de novos despejos, como o que ocorreu com as famílias que procuraram abrigo em um prédio abandonado na Cidade Baixa (Ocupação Baronesa). Durante esse despejo, você chegou a dizer que não era apenas mais uma questão de direito à moradia que estava em jogo, mas sim o direito de existência dessas pessoas. Como avalia o quadro geral desse problema hoje em Porto Alegre?

Ezequiel Morais: Acho que o que está ocorrendo aqui não é muito diferente do que acontece em outros lugares. Mas Porto Alegre tem um histórico marcado pela construção de um nível de diálogo entre sociedade civil e gestão pública, com uma aproximação bastante diferenciada em relação ao que ocorria em outras cidades. A gente percebe que, agora, há um total distanciamento entre a gestão e a operação das políticas do município e a crise social que está estabelecida a partir de um nível altíssimo de violência e de uma relação de convivência extremamente estressada.

“O próprio Estado retirou uma estrutura de apoio mínima que as pessoas tinham”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

A questão da moradia foi impactada diretamente por esse quadro. O que a gente vê são os territórios completamente em crise. O Estado não promove ação nenhuma, sequer demonstra interesse em fazer alguma coisa. Ele vira as costas para esse setor e vai lá cuidar dos seus. O compromisso desse governo não é com a galera excluída ou com a classe social mais desprovida de economia e de condição de vida.

Os problemas de moradia não se resumem aos enfrentados pelas pessoas em situação de rua. Temos famílias que estão perdendo suas casas por essa falta de políticas públicas, de trabalho ou pela impossibilidade de conviver com determinadas situações. Temos territórios que estão completamente em disputa por organizações do crime e da comercialização das drogas. Chega um momento em que fica insustentável conviver neste contexto. Uma criança de quatro ou seis anos acaba sendo impactada por esse meio também, mesmo com a família não se envolvendo com essas situações.

Neste processo, a gente se depara com uma galera que está correndo pra algum lugar mas não sabe pra onde e se depara com pessoas que estavam assistidas pelo Estado e deixaram de ser, pois o próprio Estado retirou uma estrutura de apoio mínima que elas tinham. Passamos por políticas de abrigo, por políticas de casa de passagem, havia um sistema de apoio que era pensado a partir de um método de política habitacional. Esse método considerava tanto a família que morava em situação de rua quanto o indivíduo que morava em situação de rua. A família que era mais vulnerável já estava em um abrigo ou em uma casa de passagem que já direcionava para um projeto de moradia consolidada. Hoje a gente já não tem mais nada disso praticamente.

Sul21: Nada?

Ezequiel Morais: Praticamente nada. A última política de produção habitacional que a gente teve aqui em Porto Alegre são aos produções do Minha Casa, Minha Vida, que ocorreram dentro de um projeto de colocar as pessoas na periferia da cidade. Além disso, houve as políticas desenvolvidas pelas entidades, por cooperativas que acabaram se organizando em locais mais estratégicos, garantindo um pouco mais de qualidade de vida para as famílias. Algumas delas, inclusive, ainda estão em execução, com todas as dificuldades que há hoje para acessar recurso público, que praticamente não existe. No discurso, há um recurso na Caixa, mas esse recurso é um fundo sem fundo.

“As pessoas estão morrendo  e não há nenhum esboço de reação, sequer humanitária”. Foto: Luiza Castro/Sul21

As pessoas estão morrendo e não há nenhum esboço de reação, sequer humanitária, por parte do município. Ao contrário disso, são algumas parcerias privadas que estão se colocando à disposição para fazer algo. Na verdade, deveria ser o contrário. O Estado deveria estar preocupado em promover essas iniciativas.

Sul21: Está se referindo ao episódio do Gigantinho, quando o Internacional abriu as portas de seu ginásio para receber moradores em situação de rua em um dos dias mais frios do ano?

Ezequiel Morais: Sim. A iniciativa partiu do clube e as torcidas do Inter e do Grêmio tiveram que se organizar parar criar a possibilidade do apoio. Só a partir daí é que o município entrou com colchões e alguns quilos de comida. Eu ia dizer que há um descompromisso por parte do município, mas não é isso. Há um compromisso com o setor social que bancou esse governo. Hoje, esse governo só olha para quem o bancou.

Se esse governo tem uma política de não realizar nenhum esforço nem econômico nem estrutural para fazer alguma coisa em favor das famílias que estão desassistidas, ele deveria ao menos abrir a estrutura governamental para que a sociedade civil consiga apresentar alternativas para solucionar alguns dos problemas. O que não dá é o governo não apresentar nenhuma alternativa e ser, ao mesmo tempo, o exterminador do processo. Porto Alegre, por mais que tenha uma burguesia radicalizada, do ponto de vista econômico, ela tem uma parcela considerável da população que é progressista e quer mudar para outra coisa, embora ela nem saiba para onde está indo.

O exemplo do Gigantinho deixou isso bem claro. Após um primeiro momento, a galera dos torcidas reavaliou a situação e considerou que era preciso ter um senso crítico sobre o que estava acontecendo, que não podia simplesmente ser considerada uma atitude de assistencialismo. Isso demonstra também que não existe uma aceitação do governo por parte desse setor social.

Sul21: Houve essa reflexão por parte das torcidas organizadas do Inter e do Grêmio?

Ezequiel Morais: Sim. Inicialmente houve uma ação e a partir dela rolaram alguns debates. A partir desses debates, surgiu a conclusão de que as torcidas também tinham que se posicionar no sentido que elas não estavam ali para ficar cumprindo o papel que é do governo. Essa demarcação demonstrou uma maturidade política, compreensão e consciência sobre o momento que a gente está vivendo.

“O Rio Grande do Sul é um dos estados mais desiguais nesta relação entre vazios urbanos e déficit de moradia”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Sul21: Há um numero aproximado hoje da população vivendo em situação de rua ou em condições habitacionais precárias em Porto Alegre? Qual é o tamanho desse déficit habitacional?

Ezequiel Morais: Nós estamos fazendo um levantamento que deve ser concluído em uma semana aproximadamente sobre qual é a demanda da região Centro, onde há muitos embates e focos de tensão. Em 2010, nós fizemos um cadastramento de 54 mil famílias. Tivemos um momento onde havia 52 processos de reintegração de posse em curso. De 2010, quando foi feito esse cadastramento, até hoje, o município em si não produziu nem cinco mil unidades habitacionais em Porto Alegre. Havia projetos estimando a construção de 12 mil unidades. Quando eles falam em resolver o problema do déficit habitacional eles colocam os números obtidos pelas entidades e cooperativas para dentro do guarda-chuva do governo, apresentando como uma ação do governo o que, na verdade, é uma ação da sociedade organizada que busca recursos federais.

Temos procurado mapear também a proporção entre espaços vazios e demanda por moradia. Avaliamos que temos hoje o dobro de vagas em espaços vazios para a necessidade atual. Em nível estadual a situação é parecida. O Rio Grande do Sul é um dos estados mais desiguais nesta relação entre vazios urbanos e déficit de moradia. A maior parte desse descompasso violento entre vazios e necessidade está localizada em Porto Alegre. Então, acho que é possível estimar que temos hoje algo entre 45 e 50 mil famílias precisando de moradia em Porto Alegre.

Porto Alegre tem um alto índice de ocupações. Há uma enorme demanda judicial envolvendo moradia na cidade. Além disso, temos a questão dos agregados, das famílias que moram em sub-habitação. Pega o caso das famílias que moram lá na pedreira, por exemplo, no Morro Santana. Não dá pra dizer que aquelas famílias estão bem, vivendo numa situação completamente precária em uma área de risco.

Sobre a quantidade de pessoas vivendo em situação de rua em Porto Alegre, havia um dado, da Fasc se não me engano, que falava de algo em torno de 1.200 e 1.300, principalmente na região central. Mas, cara, eu tenho andado bastante por aí e o se vê são pessoas em situação de rua na Bela Vista, no Moinhos de Vento, por toda parte. Não é mais uma coisa que aparece no viaduto da Borges…

Sul21: De onde essas pessoas foram retiradas, aliás…

Ezequiel Morais: Exato. A galera migrou para outros lugares, mas seguem aí. Nós estamos construindo uma relação importante com o pessoal do Movimento Nacional de População de Rua é importante. Nós acumulamos nos últimos dez anos muita experiência e conhecimento em relação às políticas de produção social da moradia. Em diversas ocasiões em que tentamos dialogar com pessoas em situação de rua, a gente não conseguiu se conectar porque tínhamos tempos diferentes. Hoje, o que a gente percebe é que estamos quase no mesmo tempo. A capacidade de organização do pessoal da população em situação de rua é extremamente forte. A experiência que eles tiveram no Zumbi dos Palmares fez com que eles criassem esse sentido de território coletivo. Eles não estão mais lidando com uma lógica individual e passaram a seguir uma lógica de movimento coletivo articulado.

“Não dá pra entender querer dividir as famílias, colocando o homem em um canto e a mulher com os filhos noutro”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Um exemplo prático do que estamos procurando fazer aparece no caso da Ocupação Baronesa. Ela tem esse recorte do resgate da questão racial e indígena. Na compreensão das famílias e do povo negro, todo aquela extensão de território era quilombo. Então, nesta visão, não cabe ao poder público determinar arbitrariamente que até a quadra ‘x’ acabou o território. Com o despejo das famílias que estavam no abrigo perto do Hospital de Clínicas, por falta de pagamento do aluguel por parte da Prefeitura, elas ficaram sem ter para onde ir. Nós dissemos que eles deveriam então acessar o auxílio moradia, mas a Fasc diz que esse auxílio é só para quem está em ocupação. Há um descompasso aí. Outra coisa que não dá pra entender é querer dividir as famílias, colocando o homem em um canto e a mulher com os filhos noutro. É algo incompreensível para um governo que se diz preocupado com a cidadania e com valores da família.

Sul21: Que alternativas é possível buscar num cenário como esse?

Ezequiel Morais: Nós, do Movimento Nacional de Luta por Moradia, a partir das experiências que já tivemos aqui em Porto Alegre, temos procurado dialogar com a Prefeitura no sentido de auxiliar a encontrar alternativas. Não queremos entrar no debate sobre a opção de classe desse governo. Não que isso não importe para nós. É óbvio que importa. Mas, neste momento, estamos vendo as pessoas morrer, estamos vendo as pessoas sofrendo violência e sendo oprimidas em algumas comunidades pela realidade econômica que vivem e também pela própria estrutura de segurança. Temos procurado encontrar soluções colocando à disposição o mínimo que a gente já aprendeu.

Nós tivemos uma reunião hoje (dia 12) na Secretaria de Planejamento e deixamos claro ao governo que a nossa vontade é ajudar a construir soluções da mesma forma que construímos o assentamento 20 de novembro, da mesma forma que estamos procurando ajudar no projeto da ocupação 2 de junho aqui na Borges, uma ocupação que já está aí há quase vinte anos. Havia todo aquele impasse entre o IPE e os moradores e agora estamos conseguindo construir uma alternativa de diálogo e de mediação para os moradores poderem acessar a compra e consolidar a posse do local. Eles consolidaram a cooperativa 2 de junho e o Ministério Público também entrou ajudando no processo de mediação. Temos usado essas experiências positivas na argumentação com o Judiciário. É uma prova de tem como fazer.

Hoje uma família que mora no centro de Porto Alegre paga, no mínimo, mil e duzentos reais de aluguel. Agrega a isso, mais 600 ou 800 reais por mês se a família tiver alguém em idade escolar, com gastos de transporte e da própria escola. Com alimentação, vai gastar no mínimo mil e quinhentos reais. Com luz e água, pelo menos mais trezentos reais. Só aí já temos mais de 3 mil reais. Temos feito esse debate no movimento. Uma família que mora na região central urbana de uma região metropolitana precisa, no mínimo de quatro ou cinco mil reais para poder subsistir, pagando as contas e tendo algum momento de lazer no fim de semana. Nós estamos completamente longe disso. A alternativa de fortalecer cada vez mais a possibilidade de moradia no centro é fundamental para dar mais qualidade de vida às pessoas e reduzir os seus custos diários.

Sul21: Quais são as chances disso acontecer, na tua avaliação?

Ezequiel Morais: A recuperação e reutilização de prédios no centro é algo que não é novo. Já foi feito antes e deu certo. É um dos poucos lugares em que as pessoas têm a sua posse tranqüila. Precisamos nos fortalecer mais enquanto rede de solidariedade. O processo da ocupação da Baronesa está mostrando isso também. A comunidade abraçou as famílias. O fato de as famílias da ocupação Baronesa se posicionarem com mais força e se manterem ali até agora expressa também uma relação de energia e de guarida com os vizinhos. Eles vão todo dia lá, levam comida, água, perguntam se é preciso algum remédio. Aquela solidariedade de comunidade que a gente sempre diz que gostaria de ter e não acontece, ela tem acontecido ali. Isso ameaça esse projeto de governo que está colocado em Porto Alegre. Eles começam a perceber que essa realidade pode começar a corroer a sua própria base. Se o governo está distante e bota pra rua quem ele quer, do jeito que quer, o nosso papel é começar a estabelecer pequenos processos locais de gestão popular. Há outros temas que interessam diretamente à população.

Há um risco pesado em lidar com esses conflitos. É um processo muito violento. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Na lista de imóveis enviada pelo município à Câmara pedindo autorização para venda aparece, por exemplo, o prédio do Teatro Renascença. Conversamos com alguns vizinhos daquela área e ninguém está de acordo com a venda do Renascença. Então, estamos conversando com os moradores sobre a tentativa de retirada de um espaço público que é deles e já está sendo programada uma atividade cultural em defesa do Renascença. Na zona sul, temos a situação do Arado, onde estão forçando a barra para tirar a comunidade indígena que vive lá para fazer um investimento privado pesado.

Nós tivemos uma experiência muito ruim naquela região. Eu sou daquela região do extremo sul e vivi a experiência do projeto do condomínio Terraville. Naquela época, eu estava na comissão de habitação, bem no início do Orçamento Participativo. Diziam que o projeto traria investimentos, trabalho e segurança para a região. O que aconteceu foi que eles se isolaram e se trancaram dentro daquele condomínio. As contrapartidas que ficaram de dar não aconteceram. A argumentação hoje, do projeto do Arado, é a mesma. O que é comum a esses projetos é não considerar as comunidades que vivem nestas áreas. Eles atropelam direto. O mesmo está acontecendo com os moradores das ilhas, atingidos pelas obras da nova ponte do Guaíba. Já estão começando a desmontar a igreja.

Sul21: A comunidade da vila Nazaré parece se enquadrar neste quadro também…

Ezequiel Morais: Eu ia chegar lá. Disseram que como uma empresa alemã iria assumir o aeroporto, viria também o estilo europeu. Os caras vêm atropelando, não estão nem aí. O pessoal dos Amigos da Terra tiveram que fazer uma denúncia lá na Alemanha do que está acontecendo aqui. Agora, com apoio da imprensa, estão entrando na lógica da criminalização. Estamos sofrendo isso em Porto Alegre. Se o proprietário não consegue resolver judicialmente, ele usa outros métodos e aí parte para a criminalização. As lideranças dos movimentos e das comunidades estão cada vez mais na mira desse processo. Há um risco pesado em lidar com esses conflitos. É um processo muito violento. As famílias ficam completamente desestruturadas.


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