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25 de abril de 2019
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16:58

Nei Lisboa: Catastrófico, desastroso, lamentável…faltam adjetivos para falar sobre o presente do Brasil

Por
Sul 21
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“Caminhamos para outro patamar, com uma tremenda regressão cultural, que nos leva a buscar paralelos na Idade Média”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Marco Weissheimer

 Nei Lisboa teve o irmão, Luiz Eurico Tejera Lisboa, assassinado pela ditadura militar que se instalou no Brasil após o golpe de 1964 que derrubou o governo constitucional de João Goulart. Além disso, teve outros parentes presos e torturados pela mesma ditadura. “É difícil achar um momento mais doloroso que este”, resume, ao falar sobre possíveis comparações entre o que ocorreu no Brasil pós-64 e o que acontece hoje, pós-Bolsonaro. De fato, há comparações que não podem ser feitas pela dimensão e a natureza das perdas. Mas elas são difíceis de serem feitas também pela dificuldade de definir o que está acontecendo hoje no Brasil. O musico e compositor gaúcho admite uma falta de adjetivos para falar sobre o presente: “Poderia falar de qualquer coisa como catastrófico, desastroso, lamentável, etc. Essas eram palavras que eu usava há três anos, no período do golpe contra a Dilma e do início do governo Temer. Me faltam adjetivos”.

Em entrevista ao Sul21, Nei Lisboa fala sobre a dificuldade de definir o atual momento do Brasil, marcado, entre outras coisas, pela destruição de políticas públicas construídas nas últimas décadas e pela expansão de um clima de ódio, de culto à ignorância e da intolerância no país. “Caminhamos para outro patamar, com uma tremenda regressão cultural, que nos leva a buscar paralelos na Idade Média, e com o aprofundamento do desmonte do Estado e da entrega do patrimônio público do país”.

Nei Lisboa fará o show principal do Festival da Democracia e Liberdade. (Divulgação)

O compositor também comenta o ambiente de censura que se alastra na sociedade e dentro das escolas em particular. Pai de uma adolescente, ele viveu uma experiência desse tipo em uma das escolas mais tradicionais de Porto Alegre. “Um professor foi gravado dentro de sala de aula por um aluno, que levou a gravação os pais que, por sua vez, levaram para a direção da escola. O professor acabou advertido pela escola por ter se manifestado sobre o Bolsonaro. Acho difícil que não haja dezenas de exemplos semelhantes dentro da escola em relação ao Lula e a Dilma, que passaram batido e ninguém foi advertido”, assinala.

No domingo (28), Nei Lisboa será uma das principais atrações do 1° Festival da Democracia e da Liberdade, no Vila Flores, em Porto Alegre, evento promovido pela Associação Mães e Pais Pela Democracia em defesa da liberdade de pensamento e de expressão e da diversidade dentro das escolas. Ele fará o show principal do festival, às 15h. A associação foi criada há 2 meses a partir de um movimento autônomo surgido das redes sociais, motivado pelo aumento do medo, autoritarismo, intolerância e incitação da violência, sobretudo no ambiente escolar.

Sul21: Como definiria o momento pelo qual o Brasil está passando?

Nei Lisboa: Sabe que me faltam adjetivos para responder a essa pergunta. Poderia falar de qualquer coisa como catastrófico, desastroso, lamentável, etc. Essas eram palavras que eu usava há três anos, no período do golpe contra a Dilma e do início do governo Temer, que começou a fazer o desmonte de tudo aquilo de bom que se tinha começado a fazer no país em termos de políticas públicas. Jamais sonharíamos que, cerca de três anos depois, quase que estaríamos dizendo “volta Temer”… Caminhamos para outro patamar, com uma tremenda regressão cultural, que nos leva a buscar paralelos na Idade Média, e com o aprofundamento do desmonte do Estado e da entrega do patrimônio público do país.

Não há nenhuma área que eu possa nominar aqui que não esteja à beira da destruição total, do desastre, de um desastre planejado, por trás desse circo diário que presenciamos, com personagens que quase pertencem ao mundo da fantasia. Por trás desse circo, está acontecendo um assalto à riqueza do país. Vínhamos passando por um processo positivo nos governos do PT, sim. É preciso dizer isso com todas as letras. Ah, mas o PT destruiu o Brasil…, dizem alguns. Destruiu o cacete! Pega qualquer indicador que interesse e compare. Mas a gente pode piorar mais um pouco. Há um planejamento pra isso também. O Bolsonaro pode ser despejado e vir uma ditadura militar explícita, mais do que está sendo. Um caos social total ou, quem sabe, uma guerra civil. Isso pode estar no horizonte de quem vem puxando os cordões. A situação pode piorar, sim.

Sul21: Você tem uma experiência familiar e pessoal muito dura com o tema da repressão, pois teve um irmão morto pela ditadura que se instalou no país apos o golpe de 64. Há algum termo de comparação possível entre o que aconteceu no Brasil pós-64 e o que estamos vivendo hoje?

Nei Lisboa: Eu tive um irmão que foi assassinado pela ditadura e outros familiares que foram presos e torturados. Neste plano é difícil achar um momento mais doloroso do que este. Agora, de certa forma, dependendo do ângulo que olhar, o que estamos vivendo agora é um regime pior do que a ditadura dos chamados anos de chumbo. A realidade parece que já não importa e esse desgoverno que está aí joga muito com isso. As mentiras são ditas aos borbotões e ninguém questiona. O que vale é o que se quer acreditar. Na época dos milicos havia um pouco mais de seriedade nas relações sociais e talvez um pouco mais de pudor. Havia uma certa preocupação em manter as aparências pelo menos. Agora não temos nada disso. É um circo sem pão.

“Há uma valorização da ignorância, da grossura, do politicamente incorreto, do viés conservador, armamentista, machista, racista e homofóbico”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: O Rio Grande do Sul tem uma participação importante neste ânimo conservador que acabou vitorioso na eleição presidencial. Na tua opinião, houve um aumento do conservadorismo no Estado ou sempre foi mais ou menos isso e agora a direita ganhou mais espaço para se manifestar? Viramos mesmo um dos estados mais reacionários do país?

Nei Lisboa: Viramos, né? Rio Grande do Sul, Santa Catarina…Não é um privilégio exclusivo. De modo geral, é uma tendência do “sul maravilha”, onde há uma faixa mais larga da classe média que deseja uma restauração do Brasil casa grande & senzala, que estava sendo ameaçado pela absorção, dentro dessa classe média, de setores da população miserável. Não é por acaso que a região Nordeste, onde havia um grande contingente de pessoas se beneficiando de políticas sociais básicas, se comporta de outra forma. O Rio Grande do Sul sempre foi um estado conservador, mas tem também uma tradição política muito bonita, com muitas vertentes interessantes como ocorreu na Legalidade, na resistência à ditadura e em outros momentos. Há outras coisas a considerar neste tema. Uma delas é a responsabilidade da mídia no país como um todo, aqui no Sul via RBS especialmente, mas não só ela.

Sul21: Que responsabilidade seria essa exatamente?

Nei Lisboa: É muito grande. Passa o dia-a-dia martelando opiniões reacionárias, moralistas, a voz do poder e o interesse do empresariado na cabeça das pessoas. Isso tudo vai fazendo a cabeça das pessoas. Eu tenho o mau hábito de escutar rádio de manhã enquanto faço café. Estou escutando eu e mais uns dois milhões de pessoas. O que eles ficam martelando todo o dia, de uma forma convincente, acaba passando como verdade. Assim, se elege um Bolsonaro, se elegem pessoas sem plataforma nenhuma, que não vão a debates nem precisam dizer o que vão fazer porque não vão fazer. Tudo em nome do antipetismo, esse fantasma que criaram.

É muito triste. Eu estou chegando nos meus sessenta anos. Nos meus cinqüenta, estava vendo o Brasil em um momento brilhante e a gente queria mais. Havia um trajeto possível para um país mais equânime, com menos desigualdade social e com um tratamento esclarecido das coisas. Pode me chamar de reformista, quem quiser, mas era outra qualidade. O Brasil estava sendo visto de outra forma no mundo. Não sou eu que estou falando. A imprensa internacional, ao contrário da nossa, não é cega pra isso. Dá uma tristeza ver tudo isso se perder tão rapidamente. Levou um bom tempo para se começar a construir políticas importantes. Para destruí-las, está sendo tudo muito rápido.

“Há quem diga que, no atual governo, há a ala dos militares e a ala psiquiátrica”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: Como vê a capacidade de resistência na sociedade a esse processo de destruição?

Nei Lisboa: Estou achando isso muito complicado. Esse processo que definiu o impeachment da Dilma, que foi um golpe, e a eleição do Bolsonaro parece carregar um vírus da inconsciência que não está nem aí para uma manifestação artística de protesto que o Nei Lisboa ou qualquer outro vá fazer. Há uma valorização da ignorância, da grossura, do politicamente incorreto, do viés conservador, armamentista, machista, racista e homofóbico. Tudo isso se valorizou e se auto-exalta como vencedor. Sinceramente, não sei que caminho as coisas podem tomar. As esquerdas precisam se unir em um bloco único. Isso é o mínimo que se pede.

Há uma análise mais profunda a ser feita, que eu não saberia fazer, onde, me parece, que Freud deveria ser chamado à baila. Estamos vendo um processo de loucura coletiva e a esquerda precisa adotar uma certa terapêutica também para lidar com isso. Há quem diga que, no atual governo, há a ala dos militares e a ala psiquiátrica. Eu, particularmente, não vejo tanta diferença entre uma e outra. Às vezes até acho que os militares, vistos como uma ala mais responsável, são mais perigosos.

Por outro lado, com todas as falcatruas que ocorreram, nos mostramos minoritários de alguma forma. Perdemos a capacidade de convencimento. A reversão disso vai depender, entre outras coisas, que as pessoas comecem a se dar conta do que está acontecendo. Já vemos alguns arrependidos, mas precisamos de uma percepção social mais ampla que se apresente nos meios de comunicação e que comece a se expressar no imaginário social reconhecendo que isso foi um desastre, um grande erro que precisa ser revertido. Até lá, teremos que conviver com essa situação.

Sul21: Tu consegue conviver com apoiadores de Bolsonaro?

Nei Lisboa: Não. Quando falo em conviver quero dizer conviver com a própria frustração em função disso estar acontecendo. Eu não tenho essa capacidade de me sentar e discutir com alguém que apoie o Bolsonaro. Eu me afasto. Não tenho perfil pessoal no Facebook, só uma página que é usada para divulgação. Uso um pouco o Twitter, mais para retuitar coisas que eu acho interessante e comentar alguma coisa aqui e ali. Nada mais. Não dou trela. A única experiência que tive foi no dia da eleição, quando um velho, como eu, me viu saindo do local de votação e veio me interpelar com um papo furado sobre a lei Rouanet. Quase fui às vias de fato com ele. Ia ser terrível. Dois velhinhos brigando em uma calçada do Bom Fim. Eu não tenho paciência. Mas acho importante que alguém tenha.

“Perdemos a referência de uma lei maior e de um pacto social”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: Esse processo de valorização da ignorância, do politicamente incorreto e de uma certa loucura coletiva parece se reproduzir também dentro das escolas. Há muitos relatos de professores, alunos e pais sofrendo algum tipo de opressão, censura, reprimendas. Falávamos sobre isso antes de iniciar essa entrevista. Poderia relatar um pouco a tua experiência sobre esse fenômeno?

Nei Lisboa: Eu vivi diretamente essa movimentação dentro do João XXIII, onde um professor foi gravado dentro de sala de aula por um aluno, que levou a gravação aos pais que, por sua vez, levaram para a direção da escola. O professor acabou advertido pela escola por ter se manifestado sobre o Bolsonaro. Acho difícil que não haja dezenas de exemplos semelhantes dentro da escola em relação ao Lula e a Dilma, que passaram batido e ninguém foi advertido. Como o João XXIII tem uma tradição de pais e professores de cabeça bem arejada, felizmente houve uma reação a isso e o professor se manteve na escola. Esse é um exemplo mínimo do que deve estar acontecendo por aí. Em Brasília, recentemente, chegaram a prender uma professora.

Há um ambiente repleto de mentiras que se cria com todo esse papo de doutrinação ideológica e o tal do marxismo cultural dentro das escolas. E muita gente acaba acreditando nestas bobagens. Não temos mais uma mediação confiável que afirme que isso é um absurdo. Perdemos a referência de uma lei maior e de um pacto social, aos quais todos estejam de acordo minimamente.

Esse limite acabou. Acabou no momento do golpe contra a Dilma, quando se tirou do governo uma presidenta legitimamente eleita por meio de um processo que foi uma falcatrua que não se sustenta juridicamente.

Essa lei já não valia para grande parte da sociedade. Para quem vive na periferia, para grande parte da população negra no Brasil essa lei nunca valeu. Tínhamos conseguido chegar num certo equilíbrio de favorecimentos que ia do Bolsa Família aos banqueiros. Todo mundo estava ganhando alguma coisa no governo do Lula. Houve uma ruptura total com esse equilíbrio. Quem está lucrando com esse caos é o grande capital internacional e seus representantes locais que estão avançando sobre a Petrobras, sobre a Amazônia e o mundo do trabalho de modo geral. O que interessa também é que a reforma da Previdência desloque um trilhão de reais para os bancos

Sul21: Pela tua experiência como pai, você também percebe um aumento desse conservadorismo entre os estudantes?

Nei Lisboa: Tenho relatos da minha filha que representam uma tradução do que os pais pensam e acreditam. Tem uma gurizadinha que é Bolsonaro, que repete o gesto da arminha e tudo, sem saber direito o que isso significa.

Sul21: Como esse processo todo que vem acontecendo no país impacta o teu trabalho como músico e compositor?

Nei Lisboa: Atinge de várias formas. Em termos de composição, muitas coisas vêm saindo inspiradas por esse momento, desde 2015. Não tenho composto muito. Talvez tenha entrado numa idade já não tanto criativa. Ao mesmo tempo, estou tomando boa parte do meu tempo com questões de produção, Além disso, estou em um momento intenso como pai, com uma filha na adolescência. O tempo para a composição está curto, mas o pouco que tenho feito está muito conectado com esse momento.

Como qualquer um na área da cultura, estou impactado com o desastre que esse governo representa e o furacão destruidor que se abate sobre a cultura. Eles querem fazer terra arrasada nesta área. A Caixa Econômica Federal, por exemplo, tem alguns teatros em cidades do Brasil. Um deles está sendo construído há uns dez anos aqui em Porto Alegre, na Praça da Alfândega. Eu tinha para esse ano um projeto para levar um show dos meus 60 anos a esses espaços. Eles cancelaram a seleção de projetos e os teatros da Caixa estão sem programação, vazios, à espera de um resultado que não veio e parece que não virá. A ideia é vender esses espaços. Aliás, a ideia é privatizar a própria Caixa.

A Lei Rouanet nem se fala. Houve um processo de demonização total. Também estou com um projeto lindo de um songbook comemorativo dos 60 anos, mas não há empresário que queira investir na Lei Rouanet no momento. Não faz bem pra imagem de ninguém. Nem sei se eu quero mais. E por aí afora.


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