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27 de março de 2019
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19:51

Procurador recomenda a chefes militares que se abstenham de celebrar golpe de 64 e que punam quem o fizer

Por
Sul 21
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Procurador Enrico Rodrigues de Freitas. (Foto: CMPA)

Marco Weissheimer

O Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, Enrico Rodrigues de Freitas, expediu, nesta quarta-feira (27), ofício aos comandantes de unidades militares no Rio Grande do Sul, recomendando que eles se abstenham de “promover ou tomar parte de qualquer manifestação pública, em ambiente militar ou fardado, em comemoração ou homenagem ao período de exceção instalado a partir do golpe militar de 31 de março de 1964”. A recomendação nº 14/2019 foi enviada ao general de Exército Geraldo Antonio Miotto, chefe do Comando Militar do Sul (Porto Alegre), ao coronel aviador Élison Montagner, comandante da Ala 4 da Força Aérea Brasileira (sediada em Santa Maria), ao brigadeiro do ar Arnaldo Silva Lima Filho, comandante da Ala 3 da FAB (sediada em Canoas), ao vice-almirante José Renato de Oliveira, comandante do 5º Distrito Naval (Rio Grande).

Além disso, o Procurador pede que os chefes militares adotem “providências para que os militares subordinados a sua autoridade se abstenham de promover ou tomar parte em manifestação pública, em ambiente militar ou fardado, em comemoração ou homenagem ao período de exceção instalado a partir do golpe militar de 31 de março de 1964, adotando as medidas para identificação de eventuais atos e seus participantes, para aplicação de punições disciplinares, bem como para comunicar ao Ministério Público Federal, para adoção das providências cabíveis”. O MP Federal fixa ainda o prazo de 48 horas para que os comandantes militares  “informem as medidas adotadas para o cumprimento do disposto nesta Recomendação ou as razões para o seu não acatamento”.

Ao justificar a recomendação, o procurador lembra que o “Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, possuindo a incumbência constitucional de promover a defesa da ordem jurídica e do regime democrático, adotando, para tanto as medidas judiciais e extrajudiciais necessárias no exercício de suas funções constitucionais”. Enrico Rodrigues de Freitas cita as declarações do porta-voz da Presidência da República, dia 26 de março, afirmando que o presidente Jair Bolsonaro “determinou ao Ministério da Defesa que faça as comemorações devidas com relação a 31 de março de 1964, incluindo uma ordem do dia, patrocinada pelo Ministério da Defesa, que já foi aprovada pelo nosso presidente”.

“Homenagem” a golpe de 64 viola a Constituição Federal

Sobre o significado dessa data, o procurador assinala que “a Constituição Federal de 1988 restabeleceu a democracia após o período entre 1º de abril de 1964 e 15 de março de 1985, durante o qual o país foi presidido por governos militares, com supressão das eleições diretas e dos direitos decorrentes do regime democrático, como direitos de reunião, liberdade de expressão e liberdade de imprensa”. Sendo assim, acrescenta, a “homenagem por servidores civis e militares, no exercício de suas funções, ao período histórico no qual houve supressão da democracia e dos direitos de reunião, liberdade de expressão e liberdade de imprensa viola a Constituição Federal, que consagra a democracia e a soberania popular”.

Enrico Rodrigues de Freitas afirma ainda que a “Constituição Federal repudia o crime de tortura, considerado crime inafiançável, e prevê como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Além disso, recorda, o art. 8º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias “reconheceu expressamente a prática de atos de exceção pelo Estado Brasileiro no período de 18 de setembro de 1946 até a promulgação da Constituição Federal de 1988”. O Procurador da República observa também que a Comissão Nacional da Verdade, com o poder a ela atribuído pelo Congresso Nacional, “reconheceu, em seu relatório final, a prática de graves violações aos direitos humanos no período entre 1946 e 1988 pelo Estado Brasileiro, denotando o caráter autoritário dos governos impostos, e se referindo ao dia 31/03/1964 como golpe contra a democracia então vigente, formalizado pelo Ato Institucional n° 1, de 09 de abril de 1964”.

A Comissão Nacional da Verdade, aponta Enrico Rodrigues de Freitas, definiu em sua Recomendação nº 4 “a proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964, em virtude de investigações realizadas terem comprovado que o regime autoritário que se seguiu foi responsável pela ocorrência de graves violações de direitos humanos, perpetradas de forma sistemática e em função de decisões que envolveram a cúpula dos sucessivos governos do período”.

Regime iniciado em 31 de março de 1964 foi antidemocrático

No dia 19 de setembro de 2014, acrescenta ainda, as Forças Armadas admitiram, por meio do Ofício nº 10944, do Ministro de Estado da Defesa, a existência de graves violações de direitos humanos durante o regime militar, registrando que os Comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica não questionaram as conclusões da Comissão Nacional da Verdade, por não disporem de elementos que sirvam de fundamento para contestar os atos formais de reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro por aqueles atos”.

O Presidente da República, destaca também o Procurador, “se submete à Constituição Federal e às leis vigentes, não possuindo o poder discricionário de desconsiderar todos os dispositivos legais que reconhecem o regime iniciado em 31 de março de 1964 como antidemocrático”. O dever do Estado Brasileiro não é só de reparar os “danos sofridos por vítimas de abusos estatais no mencionado período, mas também de não infligir a elas novos sofrimentos, o que é certamente ocasionado por uma comemoração oficial do início de um regime que praticou graves violações aos direitos humanos”, diz Enrico. Ele lembra que países que passaram por experiências históricas semelhantes ao Brasil vêm se esforçando para consolidar a democracia, com repúdio à relativização dos fatos ocorridos em seus regimes autoritários e que devem ser tomados como exemplo para o Brasil.

O exemplo chileno

E cita o exemplo do Chile, que reconheceu a ocorrência de violações sistemáticas a direitos humanos pelo Estado durante a ditadura de Augusto Pinochet e decidiu repudiar “declarações públicas de autoridades civis e militares em defesa da ditadura militar ou a seus agentes”. O procurador cita casos recentes de como esse tema vem sendo tratado no país. Em 2006, o Exército do Chile expulsou o capitão Augusto Pinochet Molina, após discurso defendendo o golpe de estado de 11 de setembro de 1973.  Em 2018, destituiu o diretor de Escola Militar, coronel Germán Villarroel Opazo, por homenagem a um sequestrador da ditadura. Ainda em 2018, o ministro de estado Mauricio Rojas foi demitido pelo Presidente da República, por questionar os fatos históricos expostos em museu que retrata a ditadura militar daquele país.

A recomendação não tem caráter obrigatório, mas ela está fundamentada em normas e leis e o seu descumprimento pode levar a ações legais, envolvendo inclusive a prática de improbidade administrativa, disse o procurador ao Sul21. Ao justificar a iniciativa, inédita na história política recente do Brasil, Enrico Rodrigues de Freitas disse que, até então, medidas como essa não eram necessárias pois a data (31 de março de 1964) já havia sido excluído do calendário militar. “Um estado democrático não comemora um ato que ataca o estado democrático de direito e a própria democracia. Tivemos um retrocesso absurdo neste campo e a Constituição Federal atribui ao Ministério Público a defesa do estado democrático de direito. Esse é o nosso papel”, enfatizou.

Confira abaixa a íntegra do documento encaminhado aos comandos militares do RS

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