Cidades|z_Areazero
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3 de março de 2019
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12:15

Na ‘contramão’ do momento, Colégio João XXIII envolve pais, alunos e professores na escolha de nova direção

Por
Luís Gomes
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Colégio João XXIII é uma escola comunitária administrada pelos pais dos estudantes | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

“Mentes livres. Corações abertos”. Esses são os dizeres do cartaz que dá as boas-vindas aos estudantes na entrada do Colégio João XXIII, localizado no alto do morro Santa Tereza, na Zona Sul de Porto Alegre. Em tempos de militarização e de Escola Sem Partido, quando a pluralidade de vozes vai sendo suprimida, esta escola comunitária escolhe o caminho contrário, abre as portas para que pais, alunos, professores e funcionários escolham, de forma colegiada, a próxima direção.

O João XXIII é uma escola que nasceu para ser diferente. Foi concebida em 31 de março de 1964, por uma iniciativa de um grupo de educadores encabeçado pela professora Zilah Totta, que fora demitida do cargo de secretária estadual de Educação por “não tolerar interferências retrógradas de superiores”, como conta a página oficial do colégio. Sob influência pedagógica de nomes que hoje são considerados palavrões em alguns círculos — como Paulo Freire, Jean Piaget, Carl Rogers e Hilda Taba –, o João XXIII nasceria em agosto de 64, contrariando a matriz educacional imposta pelos militares na época.

Os fundadores Frederico Lamachia Filho, Zilah Totta e Leda de Freitas Falcão no terreno do colégio durante a construção | Foto: Divulgação/João XXIII

“Essa escola foi criada em agosto de 1964 sem muros. O que significa isso? Ela pregava liberdade de opinião como forma de resistência ao que acontecia nos anos 60 e 70”, diz o professor Rogério Carriconde.

Rogério é um dos quatro professores que, ao lado de quatro pais, dois estudantes, dois funcionários do setor de apoio pedagógico e administrativo, um representante do conselho técnico-administrativo e um representante da Fundação João XXIII — conselho de pais que administra a escola –, fazem parte de um colegiado instituído no final de 2018 para escolher a nova direção da escola.

Presidente da Fundação, Laura Maria da C. Eifler Silva explica que, em 2018, após um período longo sem mudanças na direção pedagógica, a então diretora deixou a escola. Em seu lugar, assumiu um conselho composto pelas quatro coordenadoras de etapa, ficando responsável pela direção interina da instituição. Paralelamente, foi instituído o colegiado para definir a nova direção permanente. “Todos os membros da comissão foram eleitos em alguma instância”, diz Laura.

O primeiro papel desse grupo foi o de definir quais os valores deveriam guiar a escolha. “O que se tem muito claro é que todo o trabalho deve ser em equipe, que a direção tem um papel de coordenação, de trabalhar em equipe, trabalhar o coletivo”, diz Laura, acrescentando ainda que não será mantido a direção de quatro coordenadoras, mas que a ideia é ter duas pessoas encabeçando a função.

Professor Rogério Carriconde é um dos representantes dos professores na escolha da nova direção | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Para o professor Rogério, esse processo configura uma retomada dos valores e princípios democráticos sob os quais a escola foi concebida. “Valores de liberdade, de voz ativa e de comunidade”, diz. “Nessa escola horizontal, nessa escola comunitária, conseguir essa ligação com os alunos, com pais, professores, a gente participar dos processos, isso é uma coisa única no João XXIII”, complementa a secretária de ensino Fernanda Radajski, representante de funcionários no colegiado.

Representantes discentes no processo, Antonio Olivé e Renata Campos, estudantes da 3ª série do Ensino Médio, consideram que o processo tem sido muito produtivo. “É interessante os alunos estarem participando de algo tão importante. Não é em toda a escola que o aluno tem voz, que ele pode dizer alguma coisa, até mesmo dar ideia de alguma coisa. Isso está sendo bem importante”, afirma Renata, que é representante do conselho de alunos.

Antonio avalia que o processo é um reflexo de como a escola está estruturada. “De forma geral, é um colégio muito democrático, que todo mundo tem muita voz. O grêmio estudantil e o conselho de alunos têm muita voz dentro do colégio. Todo mundo participa ativamente. Isso está se mostrando muito nesse processo de sucessão”, diz o estudante, que preside do grêmio estudantil do João XXIII.

Os estudantes Antonio (centro) e Renata (dir.) também estão participando do processo | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Para além da escolha da nova direção, ele destaca que os estudantes têm poder de decisão na vida da escola, que as reivindicações que surgem nas reuniões discentes são levadas às esferas superiores e ouvidas. “O grêmio e o conselho também participam do orçamento do colégio, opinam em questões de infraestrutura, como agora na construção de um prédio novo”, diz.

A presidente da Fundação concorda que o estímulo à participação dos alunos é uma das marcas do colégio. “É importante resgatar que o João XXIII foi criado em 1964, na contramão de um processo que existia no País da implantação da ditadura militar. Ele foi criado exatamente para assegurar esse espaço democrático, de participação. Esse é o perfil do colégio. É uma escola comunitária, que preza a participação, que preza a pluralidade de ideias. Esse é o DNA do colégio”, afirma Laura.

Na contramão do momento

Se o colégio estava na contramão do pensamento dominante ao ser criado, em 2019 ele volta a se encontrar em situação semelhante. Após o então candidato Jair Bolsonaro (PSL) participar do Roda Viva, na TV Cultura, estudantes comentaram o programa em sala de aula durante uma aula de Geografia do Ensino Médio e um professor deu sua opinião, criticando o agora presidente. “Um aluno gravou esta fala do professor e a família dele pediu para a direção da escola ter uma atitude de sancionamento em relação a esse professor”, conta Laura.

O episódio gerou um abaixo-assinado de mais de 300 pais defendendo a liberdade de cátedra e contra qualquer punição ao professor. Por outro lado, um grupo de pais se movimentou para pressionar a escola por uma punição ao professor. “Eles entendiam que, se [o professor] não fosse punido, a direção pedagógica estaria sendo desautorizada. Houve sim um debate dentro do colégio em função disso”, conta Laura. Ao fim, um grupo de 100 alunos deixou a escola.

A socióloga Aline Kerber, presidente Associação Mães & Pais Pela Democracia, entidade recém-criada para promover a pluralidade nas redes pública e privada de Porto Alegre, destaca que há uma tensão que tem sido percebida nas 43 escolas representadas na associação atualmente.

“Há alguma brecha ao diálogo. Há um reconhecimento em relação à nossa associação, uma legitimidade. Ao mesmo tempo, há receio porque a nossa associação que tem um perfil bem definido de trabalhar pela pluralidade nas escolas, liberdade de expressão, liberdade de cátedra, de ensinar e aprender, portanto reforçando a ideia de democracia e de liberdade, e tem outro lado tensionado as escolas por conta da existência do nosso movimento. Então, a gente percebe que as escolas estão como num brete atualmente, questionadas no conteúdo pedagógico”, diz.

O incentivo à pluralidade e diversidade de opiniões é um dos valores que guiam a escola, diz a presidente da Fundação João XXIII | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Para ela, há um forte movimento de pais que prega outro tipo de escola, uma que não seja aberta para a pluralidade e para a promoção da diversidade. “É um movimento ideológico para terminar com o debate da diversidade, que está militando por uma ideia única na escola, que não trabalha a questão dos direitos humanos, da diversidade, que oculte a história, em prol de interesses individuais e capitalistas”, afirma.

Aline conta que, nesta sexta-feira, a associação tomou conhecimento da reclamação de uma mãe do Colégio Marista Rosário questionando a distribuição de um livro que tratava do sofrimento gerado pelo trabalho. “Essa mãe, sem nenhum pudor, tensionava a escola, reforçando a ideia de que o trabalhador na verdade tem que dar graças a Deus porque tem um trabalho, que tem um empregador. Quer dizer, não sabe nada sobre o papel social, não entende a construção do trabalho, não sabe o que é mais-valia, não entende, e tensionando a escola”, diz.

O filho da socióloga estuda atualmente justamente no Rosário, mas ela corrobora, a partir do relato de integrantes da associação que tem filhos no João XXIII, que a escola apresenta um perfil diferenciado do padrão da rede privada de Porto Alegre. “No João XXIII, a gente vem percebendo um grande empoderamento dos pais, o que possibilita e transforma completamente a gestão e a tomada de decisão na escola”.

É essa pluralidade saudada por Aline que permite que temas considerados tabus em outras escolas, como a discussão de gênero, sejam tratados abertamente no João XXIII. Uma escola que, apesar de hoje estar cercada de muros, busca reviver os ideais de liberdade sob os quais foi fundada.


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