Entrevistas|z_Areazero
|
25 de março de 2019
|
10:25

Mário Maestri: classes dominantes renunciaram à ideia de nação e entregaram direção política do país

Por
Sul 21
[email protected]
Mário Maestri: “Estamos assistindo a um desfibramento das instituições nacionais”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Marco Weissheimer

O golpe de 2016 representou a superação de uma situação semicolonial do Brasil na direção de uma ordem “neocolonial globalizada”. Neste processo, as classes dominantes nacionais renunciaram à qualquer ideia de autonomia ou de projeto de nação e entregaram a direção política do país ao grande capital e ao imperialismo. Estamos assistindo a um desfibramento geral da nação e a submissão do mundo do trabalho e da população em geral a uma condição de escravidão assalariada. Essa é uma das teses centrais do novo livro do historiador Mário Maestri, “Revolução e Contra-Revolução no Brasil: 1530-2018” (Coleção Coyoacan), que será lançado dia 5 de abril, no Clube de Cultura, em Porto Alegre.

Em entrevista ao Sul21, Maestri define seu novo livro como um projeto de vida, talvez a síntese teórica de sua vida como historiador e militante. Uma das inspirações iniciais da obra foi a percepção de uma profunda fragilidade de pensamento e reflexão sobre o Brasil, “sobretudo da nossa esquerda que se pretendia marxista”. “Isso tem raízes profundas que procuro apontar e investigar neste trabalho. Durante todo esse tempo de militância, sempre procurei destacar e chamar a atenção dos meus companheiros sobre isso. Nós sabíamos tudo sobre a revolução cubana, sobre a revolução chinesa ou a soviética, mas não sabíamos nada sobre o Brasil. Se você perguntasse a um militante bem formado o que era a Regência ele não saberia dizer muita coisa”, assinala.

O fio condutor da análise Maestri é a ideia de autonomia nacional. Por meio da dela, procura ver as contradições e os impactos sociais que nós vivemos ao longo de sua história (e segue vivendo). A escravidão, sustenta, é a estrutura sobre a qual se consolida a formação social brasileira com repercussões até hoje. “Até 1822, fomos basicamente um país colonial. Em seguida, passamos a ser um país semi-colonial, com independência política, mas sem independência econômica”. Após tentativas de construção de um projeto nacional, com Getúlio Vargas e, de modo truncado, com políticas nacional-desenvolvimentistas nas décadas seguintes, o Brasil chegou a uma situação onde, além de abrir mão da pretensão de ter alguma independência econômica, renuncia à própria independência política, sustenta o historiador.

“Essa, talvez, seja a síntese teórica da minha vida”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: O título do seu novo livro, “Revolução e Contra-Revolução no Brasil (1530-2018”, parece indicar um projeto ambicioso. Qual a gênese dessa obra e qual interpretação ela pretende apresentar sobre praticamente cinco séculos da história brasileira?

Mário Maestri: É um projeto de vida. Talvez seja a síntese teórica da minha vida. Eu sou filho dos anos da ditadura. Eu era pouco mais que um adolescente quando se instaurou o regime militar no Brasil. Comecei minha vida universitária cursando Engenharia. Mas nas aulas de Engenharia eu ficava lendo história. Apaixonado pela História, acabei mudando de curso. Participei da luta contra a ditadura aqui em Porto Alegre, já no curso de História da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Fui preso, pichando um muro. Cheguei a ser julgado no Alto da Bronze. Queriam me condenar a três anos de prisão por ter pichado um muro. Acabei sendo absolvido por falta de provas.

Sul21: Lembra qual era o conteúdo da pichação?

Mário Maestri: Nós pichamos duas coisas. Uma era “Fora Rockfeller!”. A outra pedia a estatização da PUC. A “estatização da PUC” não era considerada crime, a do Rockfeller, sim. Como não sabiam quem tinha pichado o quê, fui mandado embora. Quando a situação azedou mesmo, me refugiei no Chile, onde segui os meus estudos. Participei ativamente da revolução chilena. Foi um privilégio, algo que marcou profundamente a minha vida. Passei os três anos de Allende no Chile. Pretendia ficar lá, mas ocorreu o golpe. Participei da tentativa de resistência ao golpe, mas terminei me refugiando, aos trancos e barrancos, na embaixada do México. Neste processo, não nos deixaram ficar no México. Consegui um passaporte, junto com minha companheira na época, para ir a Iugoslávia. Quando paramos na Bélgica, descemos e pedimos refúgio. Acabei terminando lá os meus estudos universitários em História.

Voltei ao Brasil no período no final da ditadura, militando, naquela época, na Convergência Socialista. Neste contexto, iniciei esse processo de reflexão sobre a formação social brasileira. O que senti, desde o primeiro momento, é a nossa profunda fragilidade de pensamento e reflexão sobre o Brasil, sobretudo da nossa esquerda que se pretendia marxista. Isso tem raízes profundas que procuro apontar e investigar neste trabalho. Durante todo esse tempo de militância, sempre procurei destacar e chamar a atenção dos meus companheiros sobre isso. Nós sabíamos tudo sobre a revolução cubana, sobre a revolução chinesa ou a soviética, mas não sabíamos nada sobre o Brasil. Se você perguntasse a um militante bem formado o que era a Regência ele não saberia dizer muita coisa.

“A escravidão é a estrutura sobre a qual se consolida o Brasil”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Não é que seja obrigatório ter conhecimento sobre isso. A questão é que há elementos na nossa formação social que determinam certas práticas ainda hoje. Esses elementos dizem o que nós somos. Somos uma federação de estados que se unificaram com contradições profundas, que seguem existindo, se radicalizam e se apresentam no dia-a-dia. Durante muito tempo trabalhei, sobretudo, como historiador da escravidão, não pelo recorte étnico, mas sim pelo recorte de classe.

A escravidão é a estrutura sobre a qual se consolida o Brasil. Em países como França e Itália a gênese do capitalismo está no feudalismo, nos camponeses. As nossas raízes são escravistas. É uma formação completamente diferente. Tudo isso foi praticamente desconsiderado. A nossa esquerda, de forma geral, começa a analisar o Brasil em 1930, quando começam a se constituir as categorias próprias ao capitalismo e a própria ideia de Estado nação. Até aí o que havia era uma federação. Éramos riograndenses, cariocas, paraenses, pernambucanos, mineiros, etc., mas não éramos brasileiros propriamente.

A minha preocupação foi sempre avançar na direção de uma reflexão mais estrutural. Estou nesta militância há um pouco mais de meio século e fui constituindo esse livro ao longo desse período. Apresentei-o, de forma parcial, diversas vezes. Muitas dessas reflexões foram apresentadas, por exemplo, em cursos de formação para o MST na virada do milênio. Outras fizeram parte do núcleo dos meus cursos de pós-graduação nos últimos cinco ou seis anos.

Sul21: Qual é o fio condutor dessa reflexão sobre a formação social brasileira?

Mário Maestri: Procurei estruturar essa leitura em torno de um eixo central: o problema da autonomia nacional. Não se trata de querer apresentar uma visão nacional do nosso processo histórico. Por meio da questão da autonomia nacional, procuro ver as contradições sociais e os impactos sociais que nós vivemos. Até 1822, fomos basicamente um país colonial. Em seguida, passamos a ser um país semi-colonial, com independência política, mas sem independência econômica. A própria República não modifica fundamentalmente essa realidade, apesar do movimento abolicionista. A estrutura semi-colonial permanece. A primeira tentativa de ruptura com essa estrutura semi-colonial foi o período de industrialização getulista. Houve aí um recuo dessa situação semi-colonial e uma tendência de autonomia nacional sob a égide e o tacão da burguesia nacional.

Isso não quer dizer que esse processo tenha resultado, como alguns propõem, na emancipação das classes oprimidas. Mas houve um avanço e fortalecimento da autonomia nacional e das próprias classes industriais, processo este que vai influenciar os anos seguintes até 1964. Temos aí a luta entre o chamado nacional-desenvolvimentismo, voltado para o mercado interno e apoiado pelos capitais internos, contra os segmentos imperialistas voltados para a exteriorização da economia, para as exportações. Esse é um momento extremamente. Eu discuto no livro porque os trabalhadores não conseguiram alcançar a autonomia neste momento, falo da dependência ao populismo e à visão colaboracionista do PCB.

Esses elementos não os responsáveis principais pelo que aconteceu, mas dificultaram que os trabalhadores se assumissem como uma alternativa, no momento em que as classes dominantes brasileiras renunciam a qualquer plano de se transformarem em paladinos da nação, mesmo nos marcos de uma revolução burguesa autônoma.

Sul21: Abandonam qualquer ideia de projeto nacional…

“O processo de internacionalização e desnacionalização da economia se aprofunda no país”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Mário Maestri: Exato. Isso tudo desaparece. O golpe é mais uma daquelas tentativas, que fracassaram desde o suicídio de Getúlio, de impor uma política liberal. Essa visão vence inicialmente com Castello Branco, mas em 1967 ocorre um golpe dentro do golpe. Aí voltamos para um nacional-desenvolvimentismo, não mais voltado para o mercado interno, o que permitiu explorar os trabalhadores até onde foi possível. Tivemos a partir daí uma ditadura desenvolvimentista, o que nós não compreendemos na época. Não só não compreendemos como não estávamos preocupados com isso. Mas esse processo fracassa do ponto de vista econômico. E quando fracassa, se abandona totalmente a visão de autonomia nacional.

O processo de internacionalização e desnacionalização da economia se aprofunda no país. Aqui no Rio Grande do Sul, isso foi terrível. Tínhamos, por exemplo, uma pequena indústria de implementos agrícolas que foi toda vendida ou incorporada por capitais internacionais.

Sul21: A tua análise, no livro, chega até quando?

Mário Maestri: Eu venho até 2018. O imperialismo, o grande capital hegemônico, cria as condições para a destruição de qualquer vestígio de autonomia do Estado nação. Não se trata mais de um regime semi-colonial. É uma ordem que defino como colonial globalizada, na qual as classes dominantes nacionais não tem mais sequer soberania política. Essa soberania se desmancha. Esse processo não está sendo vivido apenas aqui no Brasil, mas também em países como Grécia e Itália . Na Itália, o governo não tem mais o direito de definir o próprio orçamento. Quem define o orçamento é o Banco Central europeu. Talvez, aqui no Brasil, estejamos vivendo-o de uma forma mais violenta.

Estamos assistindo a um desfibramento das instituições nacionais. Isso ocorre ao nível da mídia, que está completamente internacionalizada, das instituições educacionais, das finanças do país sobre as quais não temos mais nenhuma autonomia e do próprio STF. Mesmo que seja um órgão já comprometido, vamos ver um assalto ao STF no próximo período, como ocorreu na Colômbia. E o mesmo vale para o Parlamento, que já não reage mais como uma instância nacional. É um órgão fatiado por nichos de interesse que pouco estão preocupados com a questão nacional.

Sul21: E como ficam os militares neste processo de abandono de qualquer pretensão de um projeto nacional?

Mário Maestri: Os militares que deram o golpe dentro do golpe, em 1967, expressavam o capital paulista e reagiram a Castello Branco, que era homem dos americanos, defensor de uma abertura do mercado nacional. O capital paulista queria um nacional-desenvolvimentismo com um terrível arrocho dos trabalhadores. Esse capital acabou sendo golpeado e destruído ao longo dos anos. Uma das coisas que impacta neste processo é a destruição do capital monopólico brasileiro sem resistência nenhuma. Os Estados Unidos destruíram o Iraque para pegar o petróleo deles. Aqui não foi preciso fazer isso. As grandes empreiteiras que começaram a surgir em 1930, com o desenvolvimento getulista e depois com JK, se exteriorizaram e começaram a incomodar o capital hegemônico americano. O que aconteceu: elas foram desmontadas e destruídas sem nenhuma oposição. O mesmo está acontecendo com o Banco do Brasil e com a Petrobras. A compra da Embraer pela Boeing é outro exemplo.

“Alguns setores do capital estão assustados. Imagine o que significa cortar as exportações de soja para a China”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

O que havia de capital monopólico no Brasil foi destruído. O que nos espera é uma indústria pouco desenvolvida. Esse processo de destruição é necessário para o imperialismo americano que está travando uma luta à morte com o imperialismo chinês. Não há espaço hegemônico no mundo para dois imperialismos. Para derrotar a China, os Estados Unidos terão que acabar com a Rússia e estabelecer um cordão de isolamento econômico. No Brasil, o que estamos vendo agora são algumas reacomodações. Alguns setores do capital estão assustados. Imagine o que significa cortar as exportações de soja para a China. Os produtores de soja, praticamente todos de extrema direita, começam a cair na realidade. Começa a se notar uma certa reação, mas não é uma reação nacional. São interesses particulares que estão sendo atingidos. Defino esse período que estamos vivendo como uma ordem neocolonial globalizada.

Sul21: Diante deste cenário, qual é, na tua avaliação, a perspectiva de uma resistência a esse processo de destruição de qualquer ideia ou projeto de autonomia nacional?

Mário Maestri: Nós não temos mais economia nacional, mas acho que ainda temos algum respeito aos espaços nacionais. A defesa desses espaços só pode se dar por meio dos assalariados e da classe trabalhadora organizada. O paradoxal é que o Brasil tem espaço, riquezas e tecnologia para resistir tendencialmente de forma autônoma a essa globalização neocolonial. A Rússia, que é um país parecido com o Brasil, está fazendo isso. O ideal seria uma articulação internacional, começando pela América Latina, para fortalecer essa resistência. O Chávez chegou a ensaiar algumas propostas nesta direção, como a do banco latino-americano. O único caminho é os trabalhadores retomarem essa articulação. As classes dominantes brasileiras não tem mais eixo nenhum em defesa de um projeto de autonomia nacional.

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora