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26 de janeiro de 2019
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16:24

“A arte é sempre a primeira coisa a ser atacada”, diz artista de exposição boicotada em Caxias do Sul

Por
Sul 21
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Em 2018, as obras de Rafael Dambros sofreram boicote em Caxias do Sul. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Annie Castro

Logo na entrada do Espaço 900, em Porto Alegre, um quadro mostra uma releitura contemporânea de uma das imagens católicas mais conhecidas. Nele há um Jesus nu, musculoso, com cabelos pretos com corte da moda, uma tatuagem de lágrima no rosto e segurando um coração pintado de rosa. Ele foi feito por Rafael Dambros, 35 anos, e é uma das quinze criações que integram a exposição ‘Santificados’, que apesar de ser inédita, reúne algumas obras que fizeram parte de uma mostra do artista que sofreu boicote em Caxias do Sul, em 2018, por causa de imagens de santos jovens, nus, tatuados, que usam piercings e aparecem em algumas delas em cenas com teor erótico.

Mesclando pinturas e desenhos feitos com caneta esferográfica, a exposição é resultado de uma pesquisa de quatro anos sobre os santos do catolicismo, e tem como inspiração a iconografia católica e estudos de Rafael sobre o assunto. A ideia de fazer uma releitura dessas imagens surgiu por meio de uma percepção do artista sobre ataques que essas figuras teriam sofrido em vida, e de como passaram a serem idolatrados após suas mortes.

“A grande maioria deles tem a mesma coisa em comum: a ideia de espalhar a filosofia cristã, que é de amor e de compreensão em diferentes culturas. Todos foram mortos de maneiras cruéis. Eu me perguntei quem são essas pessoas que hoje estão ali lutando pela causa LGBT, negra, feminista, dos pobres ou por todas essas causas que são apedrejadas”, lembra.

Por se basear na iconografia católica, Rafael conta que precisou respeitar símbolos que fazem parte da imagem de um determinado santo e, a partir disso, criou uma versão da sua visão contemporânea. Ainda, abaixo de cada quadro o artista acrescentou um papel contendo versículos da bíblia ou uma versão própria que criou da oração daquele santo.

Segundo ele, até a nudez das obras é inspirada em ideias bíblicas: “elas dizem que no juízo final nós nos apresentaríamos nus diante de deus. Não fala do corpo, mas uma nudez no sentido de que não há como esconder a verdade”. Assim, mostrar os santos nus foi uma maneira que Rafael encontrou para representar essa crença, incorporando-a a elementos mais modernos.

Foi por essa visão mais atual, mesclada com a nudez, que fez com que suas obras fossem boicotadas em Caxias do Sul. Inicialmente, as obras seriam expostas no Centro Municipal de Cultura da cidade, mas a exposição nunca aconteceu porque o local foi fechado para uma reforma, dias antes da inauguração da mostra. Segundo Rafael, as outras atividades que aconteciam ou estavam agendadas para o centro foram realocadas para outros espaços, exceto a dele. O artista ainda conta que não houve tentativa de remarcar a exposição, e que a reforma do local também não aconteceu.

As obras da exposição ‘Santificados’ mostram uma releitura moderna de santos católicos. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Depois disso, Rafael apresentou suas obras no Centro 8 da Universidade de Caxias do Sul, conhecido como Centro de Artes e Arquitetura, a convite de uma professora, e no Museu dos Capuchinhos. Em ambos locais não houve nenhum problema envolvendo o estilo das pinturas. O boicote maior começou quando o artista expôs as criações em uma galeria da Câmara de Vereadores da cidade. “Eu montei a exposição em uma véspera de feriadão, em novembro do ano passado. Nisso, os vereadores voltaram do recesso. Na terça-feira, o vereador Renato Nunes fez um discurso imenso, dizendo que eram obras de vilipêndio religioso, de orgias, de pedofilia, de sadomasoquismo. E que não poderiam estar expostas ali”, conta Rafael.

Durante aquela terça e a quarta-feira seguinte, discursos favoráveis e contrários à exposição se seguiram na Câmara e no resto da cidade. Rafael relata que a mostra continuou, pois o então presidente da casa, Alberto Meneguzzi, disse que não haveria censura na Câmara. Durante o resto da exposição, Rafael ia diariamente para garantir a segurança de suas obras. “Teve ameaça de que os quadros fossem quebrados por conta de toda essa movimentação”, afirma. Além dele, outros artistas, amigos e mulheres da Marcha das Mulheres também permaneciam no local para evitar qualquer tipo de censura.

“Não era a nudez em si o problema, o problema era o homoerotismo ali no meio”, afirma Rafael Foto: Guilherme Santos/Sul21

Na cidade, o debate maior era em função de crianças que visitavam a Câmara com excursões escolares e que estariam vendo as obras. Até mesmo o prefeito de Caxias, Daniel Guerra, lançou uma nota pedindo que as escolas não levassem crianças à exposição. Porém, a mostra possuía classificação indicativa de inapropriada para menores de 18 anos e “para machistas, gordofóbicos, homofóbicos e racistas”, conta Rafael. Portanto, todas as turmas eram orientadas sobre a mostra que estava acontecendo e sua faixa etária mínima para visitação. “Tentaram fazer essa folia envolvendo as crianças. Primeiro tentaram fechar a exposição e não conseguiram, daí tentaram impedir as escolas, mas isso foi mais pra criar um caos”, afirma. O artista relata também que alguns pais levaram seus filhos, e que houve até uma mini excursão de mães.

Com toda a polêmica criada em cima das obras, a exposição se tornou a mais visitada da história da Câmara, segundo Rafael. Apoiadores, classe artística, amigos, pessoas contrárias às obras, curiosos, todos iam conhecer do que tanto se falava na cidade.

“Elas iam lá só para ver, iam com a opinião contrária e saiam de lá mudadas, percebendo que não era aquilo tudo que estavam falando. Algumas senhoras chegavam pra mim perguntando onde estava o resto da exposição porque elas queriam ver as cenas de orgias”, conta. Até mesmo pessoas de Porto Alegre, ligadas ao MBL, foram até a serra devido à isso. “Na quinta-feira esteve lá um rapaz chamado Felipe Dihl. Fez um escândalo, colocou um celular na nossa cara. Tinha umas senhoras chorando, pedindo pelas crianças”, lembra Rafael.

Sobre todo o boicote que sua arte sofreu, o artista afirma que o que incomodou foi a “nudez masculina e o homoerotismo” presente nas obras, e não por envolver santos: “Não era a nudez em si o problema, o problema era o homoerotismo ali no meio, a homofobia das pessoas que gerou o problema. Existiam quadros de mulheres nuas e eles não geraram problemas. Tu não pode chegar e falar que ela era uma exposição que tinha uns ‘viados se beijando’, como falaram, o problema era a nudez masculina. É um preconceito velado”.

As obras também foram acusadas pelos vereadores contrários de conterem cenas de pedofilias, por mostrarem dois meninos nus. “Nem encostados eles estavam, mas se fossem duas meninas não seria pedofilia, a Melody, por exemplo, não é pedofilia.”

O que aconteceu com Rafael não foi um caso isolado. Diversas exposições ou apresentações artísticas estão sendo censurada ou boicotadas no país. O caso mais conhecido aconteceu no ano passado, envolvendo a ‘QueerMuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira’, mostra que foi encerrada de forma precoce no Santander Cultural após grandes manifestações de grupos conservadores. Para Rafael, a arte sofrendo censura é um reflexo de um forte e falso moralismo. “Em qualquer regime totalitário, seja ele religioso ou político, a arte é sempre a primeira coisa a ser atacada, porque a arte é uma forma de linguagem aberta, direta, livre, e ela sempre vai te trazer algum tipo de incômodo. Então quando tu tem um moralismo muito forte como temos agora, um regime político e social moralista extremo, tu vai causar diversos incômodos”, afirma.

Apesar de o foco da censura atual estar muito voltada para a classe artística, Rafael também acredita que a tendência é que ela se estenda para outras camadas da sociedade. “Censura é a restrição da liberdade, inicialmente a liberdade de expressão e depois a de outras coisas. A arte é um termômetro. Se tu está sendo impedido de se expressar, de falar, de questionar, quando é que tu vai ser impedido de sair na rua?”.

A exposição está aberta para visitação até o dia 20 de fevereiro, das 18h até 0h00min, no Espaço 900, na Rua José do Patrocínio, 900, em Porto Alegre.

Confira abaixo mais fotos das obras:

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

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