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1 de dezembro de 2018
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09:58

Moradores de bairro ocupado há 30 anos em Cachoeirinha temem não conseguir pagar por suas casas

Por
Sul 21
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Duas casas que preservaram o formato original das construções da Granja | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Ao chegar no bairro Granja Esperança, a 5km do centro de Cachoeirinha, a palavra “ocupação” não é o que vem à mente. A comunidade, existente há 30 anos, está consolidada e se assemelha a uma cidade pequena, em um formato que existe em diversos bairros de periferia de Porto Alegre e região metropolitana, com a presença de pequenos comércios, praças, ruas asfaltadas, casas com puxadinhos, academias, restaurantes e redes de farmácia.

Inicialmente, assim como muitos bairros de classe média-baixa, a Granja foi uma ocupação urbana, que se desenvolveu ao longo das décadas. Agora, a Habitasul, empresa que arcou com os custos para que fossem construídas as casas nos anos 1980, obteve despacho judicial que autoriza a comercialização dos imóveis. Ou seja, os moradores deverão pagar os valores estipulados pela Caixa Econômica Federal para poderem permanecer em suas casas e regularizar a situação de sua moradia.

A preocupação da comunidade, porém, é que os valores – cuja média é de R$ 125 mil – são altos demais para a condição financeira de grande parte dos moradores. Desde que o despacho foi expedido, em maio de 2017, onze casas já foram adquiridas, das cerca de 1.700 existentes na Granja. Agora, enquanto o prazo corre para que a regularização seja efetivada, eles buscam uma forma de tentar diminuir o valor cobrado.

História da Granja

Era fim de tarde do dia 21 de abril de 1987 quando os militantes do PT que organizaram a ocupação de casas vazias em um bairro afastado em Cachoerinha perceberam que não eram os únicos a ter tido essa ideia. Valci Guimarães logo notou que, para além das dezenas de pessoas chamadas pelo partido, havia ainda centenas de outras presentes no local, com seus pertences embaixo do braço, esperando conseguir uma casa.

O casal Valci e Maria da Graça estão entre os ocupantes que vivem há mais tempo no local | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Antonio Edir Brendel, o Toninho, abria as portas e janelas com facilidade, usando uma faquinha para romper os ganchos que fechavam as aberturas. Em poucos dias, a situação havia saído do controle dos militantes que originalmente a planejaram, após terem organizado ocupações também em Canoas e Alvorada. Ali surgiu a ocupação Granja Esperança, atualmente um bairro que abriga cerca de 15 mil pessoas.

A área onde ocorreu a ocupação originalmente pertencia às Indústrias Ritter Alimentos SA. Era um “banhado, uma granja de arroz que não dava mais lucro”, segundo Toninho. No início dos anos 1980, a Habitasul Crédito Imobiliário S.A. forneceu dinheiro, com recursos do Banco Nacional da Habitação (BNH), para a Cooperativa Habitacional São Luiz, com o objetivo de inicialmente providenciar a construção das casas, para depois procurar compradores e associá-los.

No início, 74 sócios da cooperativa adquiriram as primeiras casas construídas. Ao mesmo tempo em que não se conseguia pessoas interessadas em comprar os outros imóveis, o BNH havia sido extinto, o custo de vida aumentou e crescia no país um clamor por moradia, tema que estava sendo discutido entre os militantes de partidos de esquerda.

Nos anos 1980, ocupações na região metropolitana começaram a ocorrer pela organização de vários partidos de esquerda, o que na época incluía o PDMB. Quando a Granja tomou corpo, os militantes do PT assumiram o controle da chamada Fase 4, enquanto os desconhecidos que Valci avistou, alguns deles ligados ao PMDB e à prefeitura de Cachoeirinha da época, passaram a morar na Fase 3.

Em maio de 1987, a Habitasul entrou na Justiça pedindo a reintegração de posse do terreno pela primeira vez. “Tinha ameaça do Choque entrar aqui. Foi o vice-prefeito na época, Volnei Gomes [falecido em 2015], que foi imprescindível no processo. Ele era militante do PCdoB, mas se aliou com o PMDB para ser vice-prefeito. Ele estimulou e ajudou a organizar na época”, lembra Valci.

Casas da Granja na época em que foram construídas, nos anos 1980 | Foto: Comissão de Moradores da Granja Esperança

Na época, poucos anos após o fim da ditadura militar, os próprios militantes partidários e integrantes de governos apoiavam abertamente movimentos desse tipo. Valci lembra alguns dos nomes que ajudaram a Granja, como os deputados à época Mário Madureira, Selvino Heck e Jussara Cony. Mas havia também quem fosse contra os movimentos, como o deputado Sérgio Zambiasi, que era “totalmente contra”, segundo Valci. “Isso obrigou a se discutir uma aliança no movimento, juntar as fases 3 e 4 para se mobilizar. Levei muito pau dentro do PT defendendo isso, e decidimos buscar uma organização unitária”, relata.

Além da luta pela permanência, os moradores precisavam ainda conquistar direitos básicos, como acesso a transporte e luz elétrica. “Não tinha luz na Granja, só existia dois, três transformadores. Tu imagina 1600 famílias com três transformadores. Durante meses vivemos à base de velas e bico, um morador de cada rua se revezava para fazer a segurança, existia essa solidariedade”, lembra Maria da Graça Svierszcz, esposa de Valci e também uma das primeiras ocupantes do local.

Após seis meses, foram conquistados mais quatro transformadores, mas foi necessário que ocorresse uma tragédia para que todo o bairro tivesse acesso à energia. Uma família morreu asfixiada dentro de casa devido ao rompimento da manga do ‘liquinho’, lampião utilizado diante da falta de luz, o que repercutiu na imprensa e fez com que as lideranças do bairro conquistassem mais transformadores.

A Granja tem um histórico de luta por direitos no início de sua existência, que depois acabou adormecido pela acomodação da falta de ameaças, avaliam Valci e Graça. “Houve um grande movimento de ocupações em frente ao Palácio Piratini, nós lotamos 11 ônibus para pedir que o governador Pedro Simon não deixasse haver os despejos”, conta ela. Politicamente deu certo, enquanto juridicamente o advogado dos moradores à época, Jacques Alfonsin, também conseguiu vitórias que barraram reintegrações.

Casas foram transformadas e bairro tem seu próprio centro comercial | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ao mesmo tempo, as precariedades continuavam. “Era uma faixa de barro vermelho, levou alguns anos para conseguirem ampliar as ruas e começar a passar ônibus”, relata Graça. A única escola existente era voltada para os filhos dos cooperativados, as 74 famílias que compraram as casas em 1984. Já existia um Clube de Mães, “composto por mulheres que nem eram mães”, segundo Graça, que cumpriu um papel importante nas conquistas do bairro, funcionando inclusive como local para recebimento de correspondências.

“Dividimos a Associação de Moradores em duas partes para fazer duas salas de aula, com uma divisória de madeira com roldanas. No final de semana, subia as correias e fixava no teto a divisória”, lembra. Depois de dez anos do início da ocupação, foi inaugurada a Escola Municipal de Ensino Fundamental Granja Esperança.

Nesse meio tempo, as pessoas foram mudando, alguns ocupantes iniciais se mudaram, vendendo a chave das casas para novas famílias. “Sem ameaças iminentes e com a troca de pessoas da comunidade, as pessoas vão se desmobilizando”, destaca Valci. Após o sufoco inicial, desde o início da década de 2000 até agora, as famílias viviam tranquilas, menos mobilizadas, enquanto o bairro se desenvolvia.

Comercialização dos imóveis

A Cooperativa São Luiz nunca efetuou o pagamento dos valores emprestados pela Habitasul para que fossem devolvidos ao BNH, o que fez com que a empresa ajuizasse uma ação de execução contra a Cooperativa. Até hoje, perante o Registro de Imóveis, as casas são de propriedade da Cooperativa. Segundo a Habitasul, o objetivo da ação foi o de reaver os recursos disponibilizados para as obras para que pudesse devolvê-los ao Sistema Financeiro da Habitação.

Em maio de 2017, houve um despacho judicial no processo, a partir do qual foi autorizada a comercialização dos imóveis através da venda judicial, conforme explica Felipe Moleta, diretor da área comercial da Habitasul. “O valor dos imóveis foi estipulado através de uma avaliação feita pela Caixa Federal, que não considerou as benfeitorias. Foi uma avaliação genérica considerando o imóvel no estado de matrícula, com a única distinção dos imóveis que estavam no eixo comercial e os residenciais”, afirma.

Moradores adaptaram as casas, aumentando-as ou transformando em comércios | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Os atuais moradores, na teoria, não são parte do processo judicial, mas por serem quem vive nas casas, têm prioridade na compra dos imóveis. “As duas partes do processo são a Cooperativa e a Habitasul. Mas a São Luiz não existe mais desde 2008. Nós ficamos sabendo do processo por acaso, porque viram que diziam que iam regularizar a granja”, conta Valci. Até agora, onze casas já tiveram a compra homologadas e outras 37 estão com os documentos já encaminhados para homologação judicial.

Os preços cobrados pelas moradias nesta possibilidade de regularização ficam em média em R$ 125 mil, conforme a Habitasul, que afirma que os valores estipulados para as vendas das casas, que começam em torno de R$ 100 mil, consideram as casas originais, que tinha cerca de 30m². Atualmente, muitas casas da Granja foram ampliadas, reformadas e melhoradas. As condições de pagamento oferecidas são uma entrada de 10%, e o restante do valor parcelado com juros de 8% em 15 anos.

Havia um prazo inicial para que fosse feita a compra, que terminou no dia 12 de novembro, mas ele foi estendido por mais 180 dias a partir de uma decisão judicial. Na teoria, após este período, qualquer interessado poderá adquirir os imóveis e os ocupantes terão que sair, de acordo com a Habitasul. A proposta, porém, não leva em conta as melhorias feitas pelos moradores. “Não sei dizer, não tem solução para essa questão das benfeitorias. Por isso a oportunidade é essa agora, de regularizar no estado original”, colocou Felipe.

Moradores buscam forma de reduzir valores

“O que estamos fazendo é que a Habitasul quer um preço e nós queremos diminuir o valor e ampliar prazo de pagamento, não é nada revolucionário, é uma questão de mercado”, resume Valci. Atualmente, representados pela advogada Clarice Zanine, eles conseguiram enquadrar a comunidade na lei de Regularização Fundiária Urbana (Reurb), que prevê que os valores sejam estipulados de acordo com a condição de cada um.

Dona Manuela dobrou a casa de tamanho e adaptou todo o interior da moradia | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A comunidade se mobilizou e buscou apoio da Prefeitura e da Câmara de Vereadores da cidade, assim como da Assembleia Legislativa gaúcha, onde foi criada uma comissão especial para tratar do caso. No dia 1º de outubro, o prefeito Miki Breier (PSB) decretou que a área se encaixa na Reurb. “Tem gente que não tem condições, são diferentes faixas de renda e a nossa grande preocupação é com morador de baixa renda. Não somos inimigos de quem pagou”, afirma Valci.

Alguns moradores temem perder as casas caso não consigam pagar as casas no tempo estipulado. Dulce Terezinha dos Santos Pereira, uma das que vive no local desde o início da ocupação, afirma ser “muito difícil conseguir pagar”. “Eu tenho medo de não ter onde morar. Chegamos aqui desde o início, quando vim meu marido pegou uma casa nessa rua e eu lembro que não podia deixar a casa sozinha, lembro de tanta coisa. Quero ficar com a minha casa”, afirma ela, que tem uma deficiência física e atualmente é viúva.

Diferentemente de Dulce, Maria Manuela de Assis, de 75 anos, não foi uma das ocupantes iniciais das casas. Ela vive na Granja há onze anos, após precisar deixar a casa onde havia morado sua vida inteira devido a uma obra que passaria por sua moradia. “Ia passar uma rua por dentro do meu pátio, e daí disseram para eu vir para cá, que daqui ninguém ia me tirar. A própria Prefeitura que disse para eu vir, faz onze anos que comprei essa casa”, relata.

O problema, porém, é que Dona Manuela, como é conhecida no bairro, pagou pela casa para quem havia morado lá anteriormente, mas não para a empresa que é efetivamente dona do local. Ou seja, ela gastou todo o dinheiro obtido da venda de sua casa anterior em uma compra que não a tornou a real proprietária do novo imóvel. “Gastei todo meu dinheiro para comprar e entreguei tudo para essa casa”, afirma a idosa, que não tem conseguido dormir diante da preocupação de perder a moradia.

Adriana e Manuela temem perder a casa, adaptada para comportar a locomoção com cadeira de rodas | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O que mais a preocupa é não deixar desamparada sua filha, Adriana, que tem 51 anos e sofre de uma rara doença degenerativa sem cura, chamada xantomatose cerebrotendinose. A condição começou a se apresentar quando Adriana tinha 28 anos, após dar à luz a sua filha. “Ela casou, teve uma filha, e daí começou a cair do nada, chegou a quebrar a perna”, lembra Manuela. A partir daí, teve início a jornada para tentar descobrir o que afetava Adriana, mas foi apenas recentemente, 23 anos depois, que elas obtiveram um diagnóstico.

A doença teve início nos calcanhares de Adriana, motivo pelo qual ela começou a perder o equilíbrio. Atualmente, ela não consegue caminhar, locomovendo-se principalmente com uma cadeira de rodas. A casa que mãe e filha dividem foi toda adaptada por Manuela, que dobrou a moradia de tamanho e abriu a maior parte das paredes, fazendo os cômodos serem conectados para que Adriana consiga transitar livremente. Agora, antes de saber que teria que pagar “novamente” pela casa, estava economizando para terminar de adaptar o box do banheiro, após a filha cair tomando banho.

Devido ao avanço da doença, Adriana também está com catarata e deve perder a visão dentro de alguns anos. Manuela dedica seus dias a cuidar da filha, que também teve o cérebro afetado pela xantomatose. As duas gostam de jogar cartas e montar quebra-cabeças, e sobrevivem da soma da aposentadoria de Manuela e o benefício recentemente conquistado por Adriana devido à condição de saúde. A mãe recebe dois salários mínimos, enquanto a filha tem direito a R$ 1193 mensais. “Se eu fosse uma pessoa nova e tivesse saúde, eu dava um jeito. Mas quando eu morrer é meus dois salários a menos para ela”, lamenta Manuela.

A ideia dos ocupantes iniciais, desde o início, era pagar pelas casas, segundo Toninho e Valci. O que eles afirmam é que o valor pedido pela Habitasul não condiz com a situação das moradias na época em que foram ocupadas. “Não temos como pagar um salário mínimo por mês nessas casas. O terreno aqui não vale nada e o custo para fazer as casas foi muito baixo. Eles montavam quatro, cinco casas por dia, é tudo placa de concreto. Então queremos pagar o que elas custavam na época”, reitera.

Toninho destaca que a própria população que fez o bairro se desenvolver | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ele lembra que, na época em que chegaram ao local, havia apenas uma linha de ônibus, que passava de manhã cedo, ao meio-dia e de noite. “Não tinha zona comercial, nem escola, nem posto. Com a nossa luta que fomos conseguindo tudo aos pouquinhos”, conta Toninho. Outra reivindicação dos moradores é o fato de as casas que estão localizadas na rua comercial, mesmo sendo residenciais, estarem sendo cobradas mais do que as que ficam nas outras vias. “Agora querem cobrar de nós o que nós fizemos, antes não tinha nada disso aqui, foi investimento nosso. Não foi a Habitasul que veio aqui construir, é isso que não queremos pagar”, afirma.

Reurb

A esperança dos moradores de que os valores possam ser modificados é amparada no fato da área ter sido enquadrada na lei da Reurb pela Prefeitura. A regularização prevê duas modalidades: a de interesse social (Reurb-S), que corresponde à regularização fundiária aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda; e a de Interesse Específico (Reurb-E), que objetiva a regularização de núcleos ocupados por população não qualificada na hipótese da primeira modalidade.

Das famílias que vivem em situação irregular no bairro, cerca de 600 já entregaram a documentação necessária na Secretaria de Assistência Social, Cidadania e Habitação (Smasch), que determinou que 530 estão aptas a fazer o Reurb Social. Em seminário ocorrido no último dia 19, o prefeito Miki Breier destacou que a Prefeitura vem buscando agilizar este processo, para que a situação dos moradores seja resolvida o mais rápido possível. “Estamos trabalhando junto com a Smasch para que isso tenha um desfecho rápido. Todo mundo ganha com o processo de reurbanização”, afirmou. Ao mesmo tempo, a advogada Clarice tenta transferir o processo da Vara de Cachoeirinha para o Centro Judiciário de Solução de Conflitos (Cejusc), em Porto Alegre, para buscar uma solução baseada na mediação entre as partes.

Confira mais fotos:

Foto: Guilherme Santos/Sul21
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