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23 de dezembro de 2018
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16:08

“Lógica da ressocialização só serve para criminalização da pobreza, mas não para o colarinho branco”

Por
Sul 21
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Professora Marília Budó lançou livro de sua tese de doutorado na Livraria Bamboletras | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Qual a relação e as possíveis influências entre os discursos midiáticos e os discursos políticos de parlamentares? É essa questão que a professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Marília Budó, buscou responder ao analisar especificamente os casos relacionados à criminalidade infanto-juvenil. Formada em Jornalismo e Direito também pela UFSM, a professora seguiu na carreira acadêmica na área da criminologia, concluindo o seu doutorado em 2013 pela Universidade Federal do Paraná com a tese “Mídias e Discursos do Poder – Estratégias de legitimação do encarceramento da juventude no Brasil”.

O trabalho acadêmico foi transformado em livro, lançado nesta segunda-feira (17) em Porto Alegre, na Livraria Bamboletras. Na obra, Marília analisou os projetos de lei relacionados a alterações do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com foco naqueles que propunham aumentar o tempo permitido de internação de jovens que cometeram delitos. Ela explica que, para além da proposta da redução da maioridade penal, essa questão, que é menos conhecida pelo público em geral, pode representar um perigo ainda mais grave para os que defendem os direitos dos adolescentes.

“O impacto prático do aumento do prazo de internação do meu ponto de vista seria muito mais grave do que a redução da maioridade penal. Se a gente for pensar que adolescentes poderiam ficar até dez anos privados de liberdade, quem é o adulto que fica 10 anos privado de liberdade em regime fechado?”, questiona. Ao mesmo tempo, avalia que projetos com esse tema tem maior probabilidade de serem aprovados, tanto por não dependerem de alterações constitucionais quanto por não serem necessariamente implicados na lógica do punitivismo.

Marília também observa que, mesmo que tenha havido picos em que a discussão da redução da maioridade penal e do aumento do tempo de pena para adolescentes tenham sido muito debatidos entre os parlamentares, as propostas acabaram não sendo aprovadas. Com o governo de Jair Bolsonaro (PSL), o temor é que elas voltem a ser debatidas e, com o apoio do Executivo, tornem-se realidade. “Temos um Parlamento conservador, um Executivo extremamente conservador e estamos falando de uma pauta que é sensível do ponto de vista de que é uma pauta muito querida da esquerda e portanto se a esquerda vai ser um alvo do novo governo, é óbvio que essa vai ser uma pauta prioritária”, avalia.

“Os filhos dos pobres, negros, marginalizados, seriam os menores, que são por um lado objeto da tutela e por outro da criminalização” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Confira a entrevista completa:

Sul21 – O livro une o Direito com o Jornalismo, que são as tuas duas formações. Pode me contar um pouco da tua trajetória?

Marília – Me formei nos dois no mesmo ano, em 2005, na UFSM. Naquele tempo era possível, tinha dois processos seletivos e levei a faculdade os dois juntos.  Quando fui para o mestrado, a essas altura eu já estava trabalhando na relação entre mídia e crime dentro do direito constitucional. O confronto entre liberdade de expressão e presunção da inocência, garantias penais. Mas durante o TCC do jornalismo eu me apaixonei pelo trabalho de uma professora, a Vera Andrade, da UFSC, que trabalhava com criminologia. Até então não se sabia o que era criminologia direito, não tinha essa disciplina no direito. Fui me encantando e acabei indo pra lá por causa dela, fazer o mestrado em direito. Desde o começo ela sempre apoiou a ideia de trabalhar com mídia e crime, e lá tem a pós em jornalismo também, então consegui me apropriar um pouco disso lá. No mestrado, trabalhei com a construção dos conflitos agrários no jornal Zero Hora, dentro da lógica de controle, vigilância e criminalização do MST principalmente. E isso deu origem ao livro “Mídia e controle social”, que saiu pela editora Revan também.

Sul21 – Então foi no doutorado mesmo que tu passou a estudar mais especificamente sobre direitos da criança e adolescente?

Marília – Sim. Eu fiz o doutorado na Federal do Paraná, e lá a minha orientadora era do campo da Sociologia Jurídica, então ela trabalha com outras ferramentas e eu pude me apropriar de outras linhas, além de todo o marco teórico que eu não tinha tanta propriedade que é a questão dos diritos da criança e do adolescente. E pra mim foi fascinante, faz muito sentido dentro do que a gente estuda no campo da criminologia. As rupturas de paradigmas que existem dentro da criminologia, quando surge a ideia de que o crime é uma construção social, que se dá nas interações, é muito parecida com a ruptura de paradigma que se tem nas teorias do jornalismo, da ideia da notícia como construção da realidade.

Tem ainda essa ideia de que a criança e adolescente são objetos de tutela do Estado em uma situação específica, quando são filhos de crianças pobres e que o Estado considera que essas pessoas não teriam condições de cuidar dessa criança, e o Estado se apropria disso e isso gera a distinção de ‘menores’ e crianças. Os filhos dos pobres, negros, marginalizados, seriam os menores, que são por um lado objeto da tutela e por outro da criminalização. E as crianças, que são o futuro da nação, todo aquele discurso super otimista. Quando os alunos tinham dificuldade de compreender a diferença eu falei “alguma vez vocês olharam para um parquinho cheio de crianças brincando e se referiu como ‘os menores brincando’?” Não né. É a criança que é criminosa ou que está em risco, ‘menores estavam sendo explorados’ por exemplo. A gente vai estudando tanto do aspecto histórico quanto teórico e vai notando a maneira como essas mudanças de paradigmas vão envolvendo todos os campos. E por isso que foi muito fácil fazer essa relação entre crime, mídia, infância, porque tudo se comunica. O positivismo surtiu efeito em todas as áreas, desde o estudo da criança e adolescente, até sobre mídia, até a questão dos estudos sobre o crime, tudo isso está relacionado.

Sul21 – E foi daí então que veio a ideia de no doutorado analisar essas relações entre os discursos?

Marília – O trabalho tem por objetivo identificar quais são as interações do discurso midiático e o discurso político, como interagem e como se dá a ótica dos efeitos. Se há efetivamente influência, isso desde uma perspectiva crítica. Claro que não considero que haja uma influência direta, crítica, tanto que essa é a minha pergunta: há mesmo influência e que tipo? Aqui eu estudo os discursos a partir das justificações dos projetos de lei que buscam aumentar o prazo de internação. Não se trata dos discursos de redução da maioridade penal, embora eu venha a trabalhar com isso também depois, mas a questão aqui era como se dá os discursos do Parlamento em relação a alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Porque a redução da maioridade penal altera principalmente a Constituição, a lógica é simplesmente de criminalizar, e não de conferir um tratamento. E todas as propostas que buscam aumentar o prazo de internação que está previsto no ECA buscam dar um tratamento, mas que tratamento é esse? Qual a finalidade dessas propostas? Por isso optei por trabalhar com essas propostas, e trabalhei com isso durante dez anos, do ano de 2003 a 2012. Foram 46 projetos de lei encontrados.

“Uma das questões que se sobressai é a ideia de defesa da sociedade, a lógica do inimigo, esse adolescente marginalizado” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Antes, eu fiz uma análise genérica de projetos que buscavam alterar o Estatuto de qualquer maneira, bem para fazer um mapeamento de quais são os defeitos encontrados pelos parlamentares no ECA. Uma das conclusões principais foi de que políticas penais preponderam a políticas sociais nesse sentido, seja em propostas de penalizar mais adultos, porque exploram crianças, seja no sentido de criminalizar mais adolescentes porque praticam atos infracionais. Depois vou para a parte qualitativa, na qual eu trabalho muito com as representações dos parlamentares a respeito de quem é esse adolescente autor de atos infracionais? Qual ato infracional cometido por esse adolescente? E qual deveria ser a resposta estatal aos adolescentes? Qual a finalidade de uma medida sócio-educativa? E daí vai entrar a questão desde a retribuição proporcional, a reeducação, ressocialização, até punição pura e simples, e assim por diante. Uma das questões que se sobressai é a ideia de defesa da sociedade, a lógica do inimigo, esse adolescente marginalizado, que apesar de ser resultado do abandono do Estado, ele se torna um inimigo da sociedade, o vilão, o agressor. Então para garantir que a sociedade se sinta segura, temos que aumentar a pena dos adolescentes. Isso prepondera, a lógica de neutralização.

Sul21 – E de que forma essa lógica do afastamento da sociedade é falha?

Marília – Historicamente, se sabe que a privação de liberdade, a retirada de alguém da sociedade, jamais pode implicar em uma reintegração social. Por vários motivos, isso as ciências sociais provaram na década de 1960 ainda. Porque você modifica todo o sistema de normas e crenças onde a pessoa estava inserida antes de entrar no cárcere e depois impõe um novo grupo de valores que não é o mesmo da sociedade livre. A ideia de que a noção de reeducação é para ser um preso, e não para ser um bom cidadão. Que é você obedecer, ser submisso, quem é líder hoje dentro da prisão vai para o regime disciplinar diferenciado. Tudo o contrário do que se diz que a pessoa precisa para ser bem sucedida na sociedade. Há uma microcultura que não são os mesmos valores da sociedade livre.

Para além disso, tem toda uma discussão até dentro do liberalismo, da liberdade individual, as pessoas pensam em ressocialização quando pensam no menino que furta, mas não para quem lava dinheiro, para quem desvia dinheiro público, pratica corrupção, ninguém acha que os empresários da JBS têm que ser ressocializados. Toda a lógica da ressocialização só serve para a criminalização da pobreza, mas não para o colarinho branco. Todos os discursos que tentam legitimar a ideia da privação de liberdade como solução para qualquer coisa, a gente vai ver que tem aí muito mais uma ideia de controle social da pobreza. E por isso que a criminologia crítica tem como principal conclusão a ideia de que o sistema penal serve para reproduzir socialmente as desigualdades.

Sul21 – E por que tu optou por estudar a questão do aumento do tempo de internação, e não a redução da maioridade penal em si? Qual a diferença prática?

Marília – O impacto prático do aumento do prazo de internação do meu ponto de vista seria muito mais grave do que a redução da maioridade penal. Se a gente for pensar que adolescentes poderiam ficar até dez anos privados de liberdade, quem é o adulto que fica 10 anos privado de liberdade em regime fechado? Que crime precisaria ter cometido? Levando em conta que quem não é reincidente cumpre 2/5 da pena em regime fechado em caso de crime hediondo, então quem fica dez anos? Então isso é muito mais grave que a redução da maioridade. Sem falar que quem praticou um ato infracional com 16 anos, três anos que é o prazo máximo que um adolescente pode ficar internado hoje no Brasil significa 1/5 da vida dele. O que é bem diferente de um adulto de 30 anos por exemplo.

Marília analisou dez anos de discursos políticos sobre encarceramento da juventude | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Então tem vários impactos que a privação de liberdade mais prolongada pode trazer na identidade desses indivíduos, que sobretudo no contexto do que é a medida socioeducativa hoje no Brasil, que é muito semelhante ao cárcere. E é mais fácil de ser aprovada, porque por não ser uma PEC, é ainda mais fácil de ser aprovada, porque não precisa de 3/5 dos votos, precisa só de maioria simples. E muito recentemente se tem falado muito porque houve a aprovação na Câmara da proposta 171, mas 15 dias depois foi aprovado o aumento do prazo de internação no Senado, com o apoio inclusive do PT, da esquerda. Como uma moeda de troca para que não fosse aprovada a redução da maioridade penal, quando na verdade a gente vê que a tendência era que as duas fossem aprovadas. Era muito mais fácil barrar essa proposta, que é a PL 33 de 2015, do José Serra. Era mais fácil barrar essa e tentar ir pelo mal menor. Mas houve esse apoio. Eu discuto isso num novo livro, em que analiso o cenário de 2015.

Sul21 – E tu analisou também as notícias desses dez anos que tua tese aborda?

Marília – É interessante notar então que nesse período de dez anos, é bem claro que há dois picos de propostas de projetos de lei, que é o ano de 2003, que tem justamente o caso do Champinha, que até hoje é utilizado nos discursos relacionados à redução da maioridade penal. Ele até hoje está privado de liberdade por internação compulsória. E em 2007 que teve o caso do menino João Hélio, que é um caso de latrocínio bastante triste. Nos dois momentos a gente vê esses picos de propostas. E eu analisei nesse trabalho o jornal Folha de S. Paulo, por ser o jornal mais lido pelos parlamentares e que seria a que os parlamentares consideram sério, que impacta na compreensão do mundo do que deveria ser proposto por ele. Analisei principalmente as notícias informativas, para trabalhar com a ideia de como a mídia representa o adolescente e as respostas estatais, mas também com a parte de opinião, como os editoriais do jornal. E a Folha se posiciona historicamente contra a redução da maioridade penal, mas favorável ao aumento do prazo de internação. E no fim ela acaba veiculando argumentos e representações sociais que são típicas daqueles que são pró redução da maioridade penal.

Então a gente nota esses dois picos, tanto no discurso político quanto midiático, e eu vou trabalhar em cima desses momentos para tentar entender um pouco como se instrumentalizam essas representações que são cotidianas, essa ideia do menor e da criança, a ideia do menor que está em perigo e se torna perigoso. Essa lógica está no nosso cotidiano, está nas notícias do dia a dia e são essas notícias inclusive que estão diariamente nos jornais. Mas como isso é instrumentalizado em momentos de casos de grande repercussão? Eu chego num ponto de tentar entender porque diante de dois casos super importantes, em que há uma veiculação de notícias muito maior que em outros momentos, uma discussão de projetos de lei muito maior que em outros momentos, porque no final não houve a aprovação. Como se barrou isso?

“Claramente não há um aumento dos atos infracionais praticados, mas sim da midiatização, há mais notícias sobre o mesmo caso” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – E o que foi possível concluir?

Marília – Eu trabalho com algumas hipóteses, a primeira delas é a maneira como se constrói o sistema político brasileiro, através de um presidencialismo de coalizão, e isso explicaria a maneira como projetos de lei que provêm do Executivo têm muito mais chances de serem aprovados do que os que provêm do Parlamento. Isso considerando que em 2013 e 2007 existia efetivamente uma coalizão importante com o presidente Lula, a gente tinha o PMDB como base de sustentação do governo e uma fácil jogada política de troca de pautas e que fazia com que esse tema, pelo qual a esquerda lutou muito no período da redemocratização, tanto na constituinte quanto na criação do ECA, por essa mudança de cenário, de paradigma. Por ser um tema bastante importante para as esquerdas, sempre entrou como uma maneira de se jogar. Quando acende o discurso sobre maioridade penal, o governo entra e sugere ‘quem sabe a gente prioriza uma outra pauta que é do interesse dos setores conservadores e esquece a redução’, foi isso que o Lula fez durante todo esse período em que esteve no governo e foram os dois primeiros anos do governo. Ele tinha, sobretudo no segundo mandato, muita popularidade, a economia estava arrefecida, então existe todo um cenário político que permite que se barre o avanço desse conservadorismo no campo da criança e do adolescente.

Eu trabalho como segunda hipótese com o conceito de pânico moral, um conceito que constrói algumas características de momentos em que preconceitos que já estão enraizados na sociedade vêm com maior força em razão de alguns acontecimentos que ferem a ordem das coisas. Obviamente um pânico moral em torno do ato infracional não vai surgir se um menino negro, pobre, da periferia for assassinado, mas sim se for um menino de classe média branco e cujos algozes são esses meninos periféricos. Existem algumas características que claramente mostram que essa ideia de ondas de criminalidade, uma midiatização muito forte desses casos acaba provocando esses pânicos morais, que culminam com a ideia do inimigo. Claramente não há um aumento dos atos infracionais praticados, mas sim da midiatização, há mais notícias sobre o mesmo caso, inclusive notícias que transitam da editoria policial para política.

E uma terceira questão é a ideia de que os efeitos da mídia na política podem ser mais simbólicos do que concretos. Existe uma defesa de que seria simbólico, porque simplesmente aparece no discurso, mas depois não há uma intenção efetiva. É muito mais no sentido do parlamentar construir capital simbólico em torno de algo que é popular e que não tem custo. Mas do meu ponto de vista, e como eu trabalho muito com análise de discurso, o que é simbólico também é concreto, discurso é ação. Existirem propostas, por mais que não sejam aprovadas, o fato é que isso reproduz essa representação. É um efeito concreto no sentido da reprodução desses discursos e a gente sabe que são discursos que legitimam a prática. Se a gente entende que aumentar o prazo de internação dos adolescentes é algo que resolve alguma coisa do ponto de vista da sociedade ou do próprio adolescente, está por exemplo legitimando a um juiz permitir que haja mais privações de liberdades, está legitimando pessoas acorrentarem ou praticarem linchamentos. Ou toda uma série de práticas que só são possíveis graças a discursos que as legitimam.

Sul21 – E que quando chega ao extremo, vira aquele discurso do ‘bandido bom é bandido morto’.

Marília – Exatamente. É muito fácil quando você demoniza um grupo social inteiro, mas essa demonização também só é possível porque existem preconceitos enraizados na sociedade, então todos os atravessamentos de raça, classe e gênero são essenciais pra gente entender essas lógicas. A ideia de que numa sociedade racista, a imagem do menino negro é obviamente mais facilmente relacionado com o bandido, o inimigo, do que uma menina branca de classe média.

Em 2015, questão da redução da maioridade penal voltou à pauta e movimentos se articularam para barrar | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – De que forma os discursos midiáticos colaboram ou não para esse punitivismo exacerbado? Ele está atrelado aos discursos que vemos na sociedade?

Marília – Nos estudos sobre mídia e crime, uma das teorias que eu gosto muito é vinculada no livro “Representing Order”, que é a ideia de que todo o discurso jornalístico é construído de maneira a comunicar um público. Você não comunica dentro de uma linguagem que não vai fazer sentido para ele. Então onde estaria essa influência? Justamente em qual a representação da realidade existente hoje. Se o número de atos infracionais praticados por adolescentes de periferia, negros, se mantém estável, mas o número de notícias sobre esses fatos é maior, é óbvio que a maneira como eu construo a minha leitura vai depender do que eu conheço a respeito disso. Então é mais nesse sentido do que é apresentado. A ideia de que os adolescentes matam muito, por exemplo. As pessoas têm medo de serem assaltadas e levarem um tiro por um adolescente. Quando na verdade se a gente for ver as estatísticas de latrocínio ou homicídio de adolescentes, esses dados são ínfimos, menos de 1% dos homicídios e latrocínios são praticados por adolescentes. Mas temos esse imaginário porque os atos infracionais praticados por adolescentes que aparecem não são os furtos, bater carteira, atos infracionais de rua, mas sim quando morre o menino branco, quando tem algo que essa sociedade vai se identificar como vítima.

Então é nesse sentido que eu enxergo mais essa interferência. Nessa ideia de ondas de criminalidade produzidas através de uma sobre-representação de alguns tipos de ato infracional na imprensa, aparece também uma relegitimação do sistema penal através dessas propostas. Isso aparece muito no discurso político, de que temos que reduzir a maioridade penal ou aumentar o prazo de internação porque existe uma onda de criminalidade de adolescentes, porque eles ‘estão sem limites, estão matando, roubando e o cidadão de bem está encarcerado em seus condomínios’. Esse discurso aparece muito, mas a gente sabe que não corresponde com a realidade. Então da onde vem esses discursos? É na produção, na construção da realidade que os meios de comunicação acabam interferindo, influenciando. Então não é diretamente como eu vou pensar sobre a redução da maioridade penal, mas como eu vou entender qual é a verdade sobre os atos infracionais por exemplo.

Sul21 – Existe por parte dos estudiosos dessa área um temor de que com esse novo governo esses assuntos vão voltar à pauta, de que vá existir algum tipo de movimentação?

Marília – A pauta da redução da maioridade penal foi uma das pautas que elegeu o Bolsonaro. Então não temos como negar um temor real e concreto de que passe efetivamente. Agora, pelo término da legislatura, todos os projetos vão ser arquivados pelo regimento interno. Então eles certamente vão restaurar isso, vai acontecer claramente também com outras políticas conservadoras que não passaram na legislatura anterior, como o Estatuto do Nascituro, que a nova ministra já declarou ser prioridade do governo. A gente tem um temor grande, os movimentos sociais estão já se articulando, como historicamente estiveram. Foi por isso também que conseguimos frear essas votações nessa legislatura. Mas temos um Parlamento conservador, um Executivo extremamente conservador e estamos falando de uma pauta que é sensível do ponto de vista de que é uma pauta muito querida da esquerda e portanto se a esquerda vai ser um alvo do novo governo, é óbvio que essa vai ser uma pauta prioritária. Então não é nem por eles acreditarem que vai resolver, mas sim porque vai resolver diretamente o alvo.

“Eu tenho a sensação de que quanto mais risco o governo Bolsonaro correr, maiores são as chances dessa pauta voltar à tona” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Já tivemos uma amostra disso em 2015, quando a Dilma ganha a eleição e nós temos um Parlamento extremamente conservador eleito, em março ganha o Eduardo Cunha para presidência da Câmara, já está sendo construído o golpe de 2016. E o Cunha vai mobilizar essa pauta não porque é mais importante, mas porque é uma pauta sensível, uma pauta chave para se fragilizar a esquerda. Na análise que eu faço nesse livro que escrevi com o Ricardo Cappi, é justamente sobre a maneira como essa pauta foi utilizada para enfraquecer ainda mais o governo e garantir que acontecesse o golpe de 2016. A gente vê isso no próprio discurso midiático desse contexto, naquele livro analisamos a Folha, o Globo e a revista Veja. E a maneira como se apresenta claramente, todas as pautas conservadoras colocadas com o objetivo de mostrar que o Parlamento está à frente do Executivo. Tudo isso no contexto da crise política, econômica, da Lava Jato. E a questão da redução da maioridade penal é algo que a maioria da população concorda segundo todas as pesquisas sobre o caso.

Sul21 – Sim, é a pauta perfeita para ser apresentada naquele momento.

Marília – É, é uma maravilha pegar uma pauta que tem o poder de enfraquecer o seu inimigo e ao mesmo tempo tem apoio da população. Eu tenho a sensação de que quanto mais risco o governo Bolsonaro correr, maiores são as chances dessa pauta voltar à tona. Porque é a pauta que está ali no bolso, esperando o momento certo, quando estiver precisando de popularidade, por exemplo. Claro que não depende dele exclusivamente, mas a gente sabe que no contexto político brasileiro as pautas do Executivo têm mais chances de serem aprovadas. Até porque já vimos que vai haver um governo de coalizão. E ao mesmo tempo há ferramentas que foram construídas no Parlamento para silenciar os movimentos. Então o cenário não é positivo, temos que cada vez mais desconstruir os discursos conservadores e sobretudo na conversa diária, no trabalho com extensão universitária.


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