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9 de dezembro de 2018
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11:43

Documentário evidencia machismo da sociedade em experimento com grupo de homens

Por
Sul 21
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Débora Fogliatto

“A ordem do animal racional é Deus, homem, mulher, filhos. O homem foi criado por Deus, depois ele fez a mulher. É uma ordem perfeita”

“Não acho que as mulheres têm tanta opinião. Elas têm muito assunto, mas é difícil encontrar uma opinião assim formada”

“Tem uma coisa que eu não concordo com o feminismo, que elas vão para as ruas desnudas. Aquilo não me chama atenção, tem tantas maneiras de lutar pelo direito”

“Se a mulher for delegada de polícia, ela vai querer continuar sendo delegada dentro de casa, e vai querer mandar em mim”

“Você acha que uma mulher consegue ser uma boa engenheira e ao mesmo tempo uma boa dona de casa, uma boa mãe?”

“Eu acho que o homem é que deve ir e buscar. Vamos supor uma mulher de 18 anos, você tira ela da casa dos pais, é porque você está disposto a assumir ela. O homem é que tem que manter a casa”

Grupo de homens assiste a diversas cenas e depois fazem comentários | Foto: Reprodução/ Câmara de Espelhos

As frases acima poderiam ter sido ditas em qualquer grupo de homens em uma mesa de bar, reunião de trabalho, jantar em família. São alguns dos exemplos do pensamento machista vigente na sociedade que estão expostos de forma crua e direta no documentário Câmara de Espelhos, em cartaz em Porto Alegre. O filme da cineasta pernambucana Dea Ferraz tem como objetivo exatamente causar reflexão sobre a mentalidade masculina e as opiniões que os homens têm em relação às mulheres.

Filmado em 2013, o documentário foi feito com o intuito de escancarar que opiniões como as citadas acima não são exceção na sociedade. “É um incômodo que a gente começa a sentir ao longo da vida, começamos a perceber aquelas falas e eu comecei a me incomodar muito. Um dia eu estava numa mesa de bar com alguns amigos e eles diziam certas coisas que de repente eu falei que queria filmar isso, não estava acreditando que estava ouvindo aquilo”, conta a diretora.

Então o documentário nasceu desta ideia de “querer filmar uma mesa de bar”, a partir da qual Dea começou a pensar nas regras, nas peças do jogo. Ao mesmo tempo, ela estudava sobre filmar adversidades, ideia que a chamou atenção. “Historicamente, o documentário brasileiro filma em conformidade, quando a gente admira o personagem, concorda. Mas nesse caso foi se colocar no desafio de filmar quando não necessariamente você concorda”, aponta.

Com a ideia pronta, ela colocou um anúncio em jornais convocando homens de 18 a 80 anos, que morassem em Recife ou região metropolitana, para participar do filme, sem explicitar qual seria o conteúdo da produção. Cerca de 60 homens atenderam ao dia de testes, no qual 14 foram selecionados, os quais foram divididos em dois grupos para as filmagens.

“Tentamos traçar um perfil mais ou menos psicoanalítico dos personagens, mapear um pouco. E tinha que ter personagens que não tivessem vergonha de falar. Queria que fossem grupos bem heterogêneos, com maior diversidade de homens. Algumas pessoas acham que eles pensam igual, e é incrível porque eles vêm de lugares muito diferentes”, avalia Dea.

Idealizadora Dea Ferraz conta que quis mostrar situações comuns na sociedade | Foto: Beto Figueroa

No filme, os sete homens estão sentados em poltronas e sofás em uma pequena sala, com uma televisão à sua frente. Então, começam a ser exibidos trechos de filmes, propagandas, falas de personalidades famosas, videoclipes e novelas, e depois de cada inserção os participantes comentam entre si os conteúdos. Ao longo de 70 minutos, eles falam de questões como relacionamentos, sexualidade feminina, trabalho, feminismo e violência contra a mulher. A dinâmica é colocada de forma que os temas vão ficando mais “pesados” a cada momento, ao mesmo tempo em que os participantes, que não se conheciam até o início das filmagens, vão se sentindo mais à vontade para expressar suas opiniões.

“Tem uma coisa no filme muito latente e real que é esse universo masculino, tinha uma energia masculina, das rodas masculinas. Os homens se protegem, se reverenciam. Em poucos momentos eles se contrapõem, porque parece que há um código entre eles de que vão se respeitar nas falas”, relata Dea. No filme, é possível também perceber que justamente os homens que têm opiniões mais misóginas são os que mais interrompem os outros participantes e querem impor as suas opiniões.

Mas, também, alguns deles mostram ter pensamentos machistas em relação a um assunto e parecem mais abertos sobre outros. É o caso de um dos participantes que em vários momentos mostra concordar com o movimento feminista, mas se mostra conservador em relação à nudez feminina em protestos e à liberdade do corpo feminino. “Minha vontade era muito de falar mesmo desses discursos aparentemente banais que quase passam despercebidos, mas que são extremamente violentos”, afirma a realizadora.

O filme foi lançado em festivais em 2016, e agora está sendo exibido em diversas cidades brasileiras, com foco em locais que têm grande incidência de violência doméstica. Em alguns lugares, houve debates após as sessões, e Dea também mostrou o documentário para os próprios participantes. “Tem dois tipos de reações dos homens, têm os que olham e negam completamente o espelho, dizem ‘esse não sou eu, isso não existe, eu nunca vi isso’. Uma negação que eu acho bem grave, mas que também diz muito sobre cada um. E tem os que olham e dizem ‘já vi isso muitas vezes, até já pensei isso’”, conta Dea.

Sala onde os homens se encontraram para gravar o documentário | Foto: Divulgação

Sobre os participantes do filme, ela afirma que a experiência de conversar com eles após assistirem ao documentário foi bastante intensa. Ao longo das filmagens, a própria Dea não teve contato direto com eles. Quando o filme começou a ser exibido em festivais, oito dos participantes compareceram a uma sessão especial. “Eu me senti finalmente entrando na caixa e olhando no olho deles. A gente passa muito tempo olhando o filme e é quase uma exaustão olhar para aqueles rostos e depois estar com eles foi uma experiência muito forte, porque parece que quando a gente olha no olho a gente reconhece a nossa humanidade”, relata.

Sem querer impor sua presença, ela aguardou a equipe do filme perguntar aos participantes se eles queriam conhecê-la, até que os homens disseram que sim. “Queriam me conhecer e tive essa conversa. Disse para eles como foi difícil. Teve um deles que teve uma reação bem típica, não entendeu nada do filme, falou ‘fiquei bem, fiquei bonito’. A maioria foi para uma discussão de saber que esse é o espelho do mundo que vivemos, mas nenhum deles se viu como monstro. E eu não queria construir monstros, porque acho que não são monstros, são homens mesmo”.

Ela conta que um dos participantes, que tinha 18 anos durante as gravações, mostrou ter mudado de opinião e desenvolvido novas concepções, abandonando certas ideias machistas. “Ele tinha se transformado completamente e disse que ficava muito envergonhado. Ao mesmo tempo, disse: ‘entendo que é bom ter sido registrado porque não quero nunca mais voltar a ser esse cara’”, conta Dea. Mesmo sendo apenas um em todo o grupo, a mudança já demonstra a possibilidade de que isso aconteça. “Ele disse que ficou pensando na sua imagem, mas agora entende que a luta das mulheres é muito maior. É um cara assim que dá esperança”, constata a realizadora.

Para Dea, é significativo que o filme, mesmo tendo sido gravado há cinco anos, esteja estreando nos cinemas brasileiros no momento atual. “Em 2016, a gente falava de uma naturalização dos discursos de violência e hoje temos uma legitimação, porque temos um presidente que legitima esses discurso de ódio, racistas, machistas, preconceituosos. Por isso penso que mais que tudo o filme precisa estar nas salas. A gente como sociedade nunca olhou para as feridas sociais da gente, e agora mais do que nunca precisamos começar a olhar para isso para começar a curar”, completa.

Esse, aliás, é o tema do projeto no qual ela começa a trabalhar já na próxima semana, intitulado Agora. Trata-se de um filme que Dea conta ter sentido que precisava fazer após as eleições. “É uma sensação de que a gente está na beira do abismo e eu queria registrar esse momento pré-abismo, pré-algo que a gente não sabe o que vai vir, queria registrar os corpos dessas pessoas que sempre estiveram nesse abismo”, resume, acrescentando que a ideia é registrar “historicamente os corpos que resistem ao que está acontecendo”.


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