Geral
|
23 de setembro de 2018
|
10:30

Dos acampamentos na beira de estradas às retomadas: a luta do povo guarani pelo ‘lugar onde se é’

Por
Marco Weissheimer
[email protected]
 Aldeia Guarani Mata Sagrada, em Maquiné. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Aldeia Guarani Mata Sagrada, em Maquiné. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Todos os dias, uma cena se repete nas margens de rodovias gaúchas, mostrando um lado sonegado da história da colonização do Estado. Famílias de indígenas guarani mbya e kaingang vivem acampadas em pequenas faixas de terra na beira de estradas ou em pequenas porções de terras e matas em uma situação de extrema vulnerabilidade. No artigo “Demarcação das terras e os direitos dos povos indígenas”, publicado no Relatório Azul 2017 (da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha), o professor João Mauricio Farias e Roberto Liebgott, coordenador do CIMI Sul, apresentam uma síntese sobre a realidade de 25 comunidades indígenas que estão vivendo em acampamentos ou áreas degradadas. Essas famílias convivem diariamente com a fome, falta de moradia, de saúde, educação, de terra para plantar e cultivar sua cultura, além de outros riscos como o da ameaça de atropelamento em rodovias de intenso movimento.

 

A maioria das terras indígenas no Rio Grande do Sul, apontam ainda João Mauricio Farias e Roberto Liebgott, não estão demarcadas. De um total de 90 áreas, apenas 14% estão regularizadas. As restantes estão envolvidas em processos paralisados ou em estudos de identificação que ainda nem começaram. Mesmo que a soma dessas áreas não atinja 1% do território gaúcho, fazendeiros e seus representantes políticos trabalham contra as demarcações. O esquecimento a que essas comunidades são relegadas parece andar de mãos dadas com a tentativa de esconder a história de como essas famílias indígenas chegaram ali, vivendo na beira das estrada, espremidas entre o asfalto e a cerca das fazendas. Neste processo, as terras indígenas foram divididas entre as oligarquias regionais e loteadas por empresas de colonização. É um capítulo da história do Estado que muita gente prefere não conhecer ou fingir que não existe. No século XVII, viviam aqui pelo menos 40 povos indígenas diferentes. Quatro séculos depois, restam pouco mais de 30 mil indígenas vivendo no Estado.

 

Famílias guarani vivem em situação de extrema vulnerabilidade e sob perigo constante, às margens da BR 290 e de outras rodovias no RS. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Durante dois dias, o Sul21 visitou quatro acampamentos de guaranis mbya localizados na beira de movimentadas rodovias do Rio Grande do Sul e a primeira retomada guarani no Estado, que é um símbolo de esperança e resistência para os indígenas. Todos os dias, uma parte importante da economia gaúcha passa em alta velocidade por esses acampamentos que reúnem os descendentes de povos originários que foram massacrados e expulsos de suas terras e que lutam até hoje um pedaço de terra inferior a 1% do território do Estado. Mas a luta guarani não se resume à terra. Na aldeia Tekoà Ka Aguy Porá, que surgiu da retomada em Maquiné, no litoral norte do Estado, desenrola-se também uma luta silenciosa pela sobrevivência da língua, da cultura e da espiritualidade guarani.

Em 1995, seis famílias guarani iniciaram um acampamento em uma estreita faixa de terra às margens da BR 290, perto do município de Arroio dos Ratos. Desde aquele ano vivem em condições precárias, aguardando que se cumpram as promessas de demarcação de terra. O cacique Estevan Garai conta que as famílias vivem sob perigo constante, às margens da BR 290 que apresenta um intenso e praticamente incessante fluxo de automóveis e caminhões que transitam em alta velocidade com cargas de eucalipto, automóveis e diversos outros produtos. Essa comunidade guarani vive em um pequeno espaço de terra espremida entre o arroio da Divisa, a BR e a cerca de uma fazenda que não permite que os indígenas peguem matéria-prima para fazer artesanato, que é a sua única fonte de renda.

 

Cacique Estevan Garai agradece a Nhanderu por nenhuma pessoa de sua comunidade ter sido atropelada até aqui. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Estevan agradece a Nhanderu (deus guarani) o fato de ninguém de sua comunidade, de 28 pessoas, ter sido atropelado ainda na BR 290, como já aconteceu em outros acampamentos nos últimos anos. Quanto à perspectiva de terra, o cacique cita a possibilidade de aquisição de uma área de 300 hectares, pelo governo federal, que faria parte de um processo de compensação dentro do licenciamento ambiental do projeto de duplicação da BR 290. Enquanto isso, as famílias resistem na pequena faixa de terra, vendendo artesanato na beira da estrada, plantando um pouco de aipim, milho, batata e melancia para sua subsistência e pescando no arroio da Divisa, cujas águas sofrem o impacto das lavouras da região. Um dos raros apoios governamentais que o grupo recebe hoje é uma cesta básica mensal para cada família entregue pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). “É muito complicado, mas não perdemos a esperança de conseguir uma terra para viver com nossas famílias longe da estrada”, diz Estevan.

Ainda na BR 290, na divisa entre Cachoeira e Caçapava do Sul, outro grupo de famílias guarani vive em situação de extrema vulnerabilidade no acampamento de Irapuá. Oito famílias, totalizando 40 pessoas, estão vivendo na beira da estrada. Apesar de já terem sua terra demarcada na região pelo governo federal, fazendeiros da região impedem a efetivação da demarcação. O cacique Valdomiro Karai, de 64 anos, conta que chegou na região de Irapuá em 1999 para trabalhar com artesanato. Depois que estava lá ouviu falar que havia uma terra que seria demarcada pra os guaranis na região. A espera por essa terra perdura até hoje. “O sonho da terra, pra mim, já está muito longe. Temos que avançar pra abrir caminho mais adiante”, afirma Valdomiro. Por enquanto, as famílias tentam conseguir alguma renda vendendo artesanato na beira da BR. Há cerca de três meses, segundo o cacique, as famílias não estão recebendo mais cestas básicas da Funai.

 

Cacique Valdomiro Karai (dir.) mostra mapa de área já demarcada para os guarani. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

A falta de terras obriga muitas famílias a se deslocar de aldeias e acampamentos para outras áreas, gerando novos acampamentos. Esse é o caso, por exemplo, do acampamento do Papagaio, que abriga dez pessoas, integrantes de duas famílias. “Faz três anos que estamos aqui. Temos a aldeia Araxaty, perto de Cachoeira, mas a área lá é muito pequena para 13 famílias. Por isso viemos pra cá. O que precisamos mais é de terra pra plantar. Só de artesanato não dá pra viver”, diz Albino Gimenez. Desde que estão lá, relata ainda, a Funai nunca apareceu. A sobrevivência das duas famílias depende fundamentalmente da venda de peças de artesanato como bichinhos de madeira e balaios. “É com isso que compramos alimento, se conseguimos vender, mas está difícil”. Como a renda decorrente dessas vendas é baixa, a pesca e alguma caça são alternativas de sobrevivência. “A nossa situação é muito precária. Além do alimento, temos que comprar lonas e é tudo muito caro pra nós”, resume Albino.

Os relatos dos guaranis em diferentes acampamentos apontam os mesmos problemas. Raul Benitez mora há cerca de 30 anos no acampamento localizado às margens da RS 40, em Capivari do Sul. Oito famílias vivem neste acampamento. “Moro aqui desde criança. Não me lembro que idade tinha quando comecei a viver aqui. Já havia acampamento guarani aqui há muitos anos. A nossa situação é muito difícil. Falta terra, falta espaço para a gente viver. Tudo é difícil pra nós”, conta Raul que trabalha como agente de saúde junto à Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena).

 

Raul Benitez: ˜Falta terra, falta espaço pra gente viver˜. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

“A gente sabe plantar e conhece a nossa cultura de plantação”, acrescenta Raul, “mas não temos espaço pra plantar”. “Tem brancos que falam que os índios não sabem plantar, que não trabalham e são vagabundos. Nós somos trabalhadores, mas não temos terra para construir esse trabalho e a nossa cultura. Tem muitos acampamentos que estão sofrendo como nós. Não tem como criar nossos filhos com uma educação melhor por causa da falta de espaço. A gente conhece a nossa cultura e não está esquecendo a nossa cultura. Primeiramente a gente tem que conseguir a terra para construir a casa de reza, para o cachimbo, o fumo. Tudo isso é sagrado pra nós”.

Mauricio da Silva Gonçalves, liderança guarani, relata que há hoje diversos acampamentos ao longo de rodovias como a BR 290 e a BR 116. “A situação é complicada. Os acampamentos têm uma estrutura mínima com casinhas de madeira ou feitas com lonas de plástico. Há algumas terras em processo de demarcação como ocorre aqui em Irapuá, com uma área de 22 hectares, onde praticamente só falta a demarcação física. Só que há uma resistência muito grande dos que se dizem donos dessa terra, já demarcada, que não deixam os guaranis entrar na área. Até hoje não há uma solução para essa situação e os guaranis seguem na beira da estrada, correndo o risco de ser atropeladas por caminhões que passam em alta velocidade. Em todos os acampamentos há esse risco. Na BR 116, já ocorreram vários atropelamentos de indígenas guarani”.

 

Albino Gimenez: “precisamos de terra pra plantar”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Há diversos estudos envolvendo demarcações de terras para os indígenas, mas os fazendeiros, com o apoio da bancada ruralista e do governo Temer, conseguiram paralisar esse processo. Com isso, assinala Mauricio da Silva Gonçalves, vem aumentando o numero de acampamentos na beira das estradas. Somente no trecho da BR 290 entre Arroio dos Ratos e Caçapava do Sul são três acampamentos (Divisa, Papagaio e Irapuá), reunindo cerca de 30 famílias. “A luta dos guaranis é para que a Funai tome as providências necessárias para que essas terras que estão com os estudos de demarcação avançados sejam liberadas. O guarani é um povo que respeita muito o que não é dele, mas nós precisamos ir para essas terras que estão com os estudos praticamente prontos. Há uma resistência muito grande dos fazendeiros contra isso, especialmente aqui em Irapuá onde há uma terra praticamente demarcada do outro lado da pista, mas os guaranis não podem ir para lá. Se tentarem entrar lá podem ser alvo de alguma violência. Já houve duas tentativas de ocupar aquela área. Numa delas, o fazendeiro foi lá e colocou fogo nas barracas”, relata.

Há outras situações envolvendo áreas adquiridas por conta do processo de compensação das obras de duplicação da BR 116. Foram adquiridas oito áreas que já foram ocupadas por cerca de 300 famílias guaranis. Ainda faltam recursos para construir moradias e centros culturais nestas aldeias, diz ainda Mauricio Gonçalves. “As famílias que foram para essas áreas estão numa situação melhor, pois estavam vivendo também na beira das estrada. Já estão conseguindo plantar alguma coisa, mas ainda falta muito. São áreas muito pequenas. O que resolveria mesmo seria a liberação das terras que estão em processo de demarcação. Mas esse processo está praticamente paralisado há cinco anos aqui no Estado. E ainda temos famílias acampadas na beira da estrada na BR 116, no Passo Grande, onde também há um processo de demarcação em curso”.

 

Mauricio da Silva Gonçalves: “Há uma resistência muito grande dos fazendeiros” (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Além de pressionar o governo federal pela retomada das demarcações, os guaranis iniciaram também um processo de retomadas de terras no Rio Grande do Sul. Ao todo, são cinco retomadas. “Nós estamos vivendo um momento muito importante. Não dá mais para ficar simplesmente esperando pelas demarcações. As famílias estão se organizando para ocupar essas áreas que ainda estão com matas, que devem ser preservadas e cuidadas, e possuem um espaço adequado para os guaranis viverem”, assinala Mauricio.

Esse processo de retomadas não está ligado somente à busca da terra. Essa busca está ligada a uma dimensão mais profunda que é a luta pela sobrevivência da língua, da cultura e da espiritualidade guarani. A confluência e articulação entre essas lutas aparece exemplarmente na primeira retomada Guarani Mbya no Rio Grande do Sul, iniciada dia 27 de janeiro de 2017, em uma área no município de Maquine, litoral norte do Estado. Essa área pertence à Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), uma das fundações de pesquisa extinta pelo governo José Ivo Sartori (MDB). A aldeia criada com a retomada recebeu o nome de Tekoà Ka Aguy Porá (Aldeia Mata Sagrada). O sentido do termo “Tekoà” não se reduz à palavra “aldeia”, significando o lugar do modo de ser guarani, o lugar onde se é.

Cacique André Benitez: “Nenhum povo nasceu para ser o dono da terra”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

André Benitez, cacique da Aldeia Tekoà Ka Aguy Porá, resume assim o sentido da retomada realizada no município de Maquiné:

“A gente foi chamado pelo nosso espírito ancestral. A nossa luta é diferente da de outros povos. Somos pacíficos como nação guarani. A área que vai desde aqui da região do Rio Grande do Sul até a região do Espírito Santo, historicamente, sempre foi um território de passagem dos povos originários. ara nós, toda a América Latina é um território para vivermos tranquilamente. Para as culturas indígenas, principalmente para os guaranis, não existem fronteiras. Por isso não posso dizer exatamente onde é nosso território e onde não é. Esse mundo foi criado para todos vivermos nele. Nenhum povo nasceu para ser o dono da terra. Cada povo nasceu para ser guardião da natureza e cada um deles tem seu modo de cuidar e de entender”.

O chamado do espírito ancestral ao qual o cacique guarani se refere, está associado à ideia de sentimento, que tem uma dimensão individual e coletiva ao mesmo tempo. “A gente sente isso. A nossa luta é uma luta calada, no silêncio. O próprio espírito puxa um ao outro. Ele chama a natureza e chama as pessoas. Não vou conseguir explicar como foi esse chamado, mas a gente sabe que foi chamado e guiado por Nhanderu para fazer a retomada. Cada família sentiu isso. Não houve um movimento organizado para vir pra cá. Eu falei que estava vindo fazer a retomada. Outras famílias sentiram também esse chamado e vieram junto”.

 

André destaca essa dimensão de proteção da natureza ao falar sobre a decisão da retomada em Maquiné. “A gente está fazendo a retomada para cuidar desta natureza que restou. O não-indígena tem um projeto para acabar com a natureza, vendendo as terras e fazendo lotes privativos. A gente não quer isso. A nossa luta é uma luta para toda a humanidade, não só para o povo indígena. Daqui a 50 , 60 anos, nossos filhos e nossos netos precisarão de uma natureza preservada para poder respirar. Sem terra, sem mata, sem natureza, a gente não tem vida. Por isso retomamos essa área. Os nossos ancestrais já passaram por aqui para coletar sementes, frutas, remédios e material para artesanato”.

Os povos indígenas, diz ainda o cacique, dependem da natureza para a sua sobrevivência física e cultural. “Não precisa de armas de fogo para nos matar. Sem lugar, sem natureza, a gente está morrendo. Por isso todos os povos indígenas vão continuar lutando por seus direitos, uma luta que é de toda a humanidade. Estamos aqui há um ano e sete meses mais ou menos, vivendo bem. As crianças não tem nenhum problema de saúde. Todo dia, levantam, brincam, estão felizes. A retomada é por isso também, pela felicidade das crianças. Cada família tem sua casinha, sua roça, está plantando. Estamos retomando também nossas atividades culturais, nosso canto, nossa dança. E temos uma escola autônoma, que se chama Teko Jeapó (cultura em ação), que conseguimos construir com o apoio dos nossos amigos. A escola, que funciona com regras definidas pela própria comunidade, tem hoje 32 alunos”.

 

Eliana e sua filha Ritieli, uma das três crianças que já nasceram na retomada de Maquiné. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

André não tem ilusões a respeito da posição do governo do Estado em relação à retomada. Prefere pensar e se concentrar na força do que a comunidade vem construindo. “A gente sabe que o governo do Estado nunca vai dar, mas a gente não alimenta a nossa cabeça com esse ‘não vai dar’. A gente alimenta a nossa cabeça com o pensamento de que estamos indo bem e vamos conseguir. Estamos lutando para a humanidade e pela nossa cultura, que quase foi perdida. Sabemos que têm muitas famílias sofrendo na beira da estrada, sem casa, sem água, sem alimento. Estamos lutando por eles também”.

Ele lembra a presença dos povos indígenas neste território muito antes da chegada de portugueses e espanhóis. “O Brasil não foi descoberto, foi destruído. Para descobrir uma coisa, teria que não haver nada antes dessa descoberta. Antes da chegada dos portugueses tinha povos originários vivendo aqui. Mas nós não queremos retomar o Brasil. Queremos retomar um lugarzinho que resta para a nossa sobrevivência. Estamos acreditando e estamos felizes porque está acontecendo a retomada. Não queremos lutar contra o Estado, mas apenas ser reconhecidos”.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Roberto Liebgott, coordenador da Regional Sul do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o cacique Valdomiro Karai, no acampamento Irapuá. (Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Uma cena que se repete: acampamentos espremidos em pequenas faixas de terra entre a cerca das fazendas e o asfalto das estradas. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Aldeia Tekoà Ka Aguy Porá (Mata Sagrada), em Maquiné (RS). (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Rafael Brisuela, Beto Gimenes e Raul Benitez (da esq. para a dir.) vivem em um acampamento às margens da ERS 40, em Capivari do Sul. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora