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17 de agosto de 2018
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11:48

Sem verbas federais, projetos de habitação popular sobrevivem por iniciativas locais e de entidades

Por
Sul 21
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Prefeito Ary Vanazzi sancionou lei que tornou terreno da comunidade área de interesse social, permitindo a permanência dos moradores| Foto: Valentin Thomaz/PMSL

Débora Fogliatto

Há quatro anos, 68 famílias ocuparam uma quadra de um loteamento no bairro Vicentina, em São Leopoldo, dando início à Ocupação Cerâmica Anitta. A história, que poderia terminar como a maioria das ocupações urbanas, despejadas sem a chance de dialogar com proprietários e instituições públicas, teve um final bem diferente. Após muita resistência da comunidade, em março, o prefeito da cidade, Ary Vanazzi (PT), assinou a desafetação de área, destinando o terreno para interesse social e permitindo a permanência dos moradores.

Agora, o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), em parceria com a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e com recursos provenientes do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU), irá desenvolver um projeto técnico de habitação popular no local. O trabalho dos arquitetos está em fase inicial, com o recente lançamento do edital por parte do IAB para a contratação de dois profissionais e dois estagiários para trabalhar no projeto. Mas a luta da categoria por uma legislação e recursos que permitam o estabelecimento de projetos de moradia popular vêm de muitos anos.

A convicção de que a assistência técnica é um direito e que pode ajudar a suprir o déficit habitacional está no cerne da questão que levou o arquiteto Clóvis Ilgenfritz a, ainda nos anos 1970, elaborar junto com outros profissionais vinculados ao Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA) a proposta que viria a ser a lei de Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social, a ATHIS.

Foi apenas nos anos 2000, quando se elegeu deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, que Clóvis conseguiu levar a pauta para a Câmara. Em 2002, o texto inicial da ATHIS começou a ser debatido pelos deputados e, após o término do mandato de Clóvis, foi levado a cabo pelo também arquiteto Zezéu Ribeiro (PT-BA), o que culminou na aprovação da lei e sua sanção pelo então presidente Lula, em 2008.

O texto prevê que o poder público deve financiar o trabalho técnico de arquitetos e/ou engenheiros para famílias com renda de até 3 salários mínimos, para a qualificação de sua habitação. A lei também estabelecia a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), para subsidiar os programas vinculados à ATHIS.

Objetivo do CAU é que assistência técnica seja política de Estado, afirma Tiago, presidente do Conselho | Foto: Maia Rubim/Sul21

Na prática, porém, o previsto pela lei acabou nunca sendo aplicado, conforme explica o presidente do CAU-RS, Tiago Holzmann da Silva. “Esse fundo existe, mas o acesso a ele não foi regulamentado. Então é um dinheiro que está parado e acaba sendo usado para outra coisa. A nível estadual, no Rio Grande do Sul também existe, e nos grandes municípios, como Porto Alegre, um fundo de habitação. Ou seja, existe já um sistema de financiamento”, afirma, relatando que a ideia do Conselho é que, agora, esse fundo seja utilizado de fato para assistência técnica como política de Estado, que seja algo contínuo.

Em 2016, o CAU nacional determinou que cada unidade estadual disponibilizasse pelo menos 2% de seu orçamento a programas de assistência técnica, com o objetivo de fomentar iniciativas voltadas para a habitação popular. “Nunca se efetivou um programa de Estado que de fato garantisse recursos para essa política. O CAU assumiu essa demanda no sentido de demonstrar o potencial dessa política como solução, demonstrar que é possível, para sensibilizar a classe política de que isso é eficaz para resolver uma situação consolidada”, relata Rafael Passos, presidente do IAB-RS.

É nesse contexto que surge a possibilidade de a comunidade Cerâmica Anitta de ter seu processo de regularização acompanhado por arquitetos, que irão elaborar o projeto de moradia. Em 2017, o CAU-RS lançou dois editais de fornecimento de recursos para o desenvolvimento de projetos que sigam a lógica da ATHIS. Destes, um foi destinado ao Sindicato dos Arquitetos do Estado do Rio Grande do Sul (SAERGS), que está trabalhando na reforma do Assentamento 20 de Novembro, em Porto Alegre, e o outro foi captado pela IAB-RS, que por sua vez buscou a Prefeitura de São Leopoldo para realizar um convênio que permitisse beneficiar alguma comunidade da cidade.

O envolvimento do IAB se deu a partir da lógica seguida pela entidade de que pessoas com menos recursos devem ter o direito à terra, à cidade e à assistência técnica. “A ATHIS, aliada com a regularização fundiária e a qualificação urbana, que são questões do direito à terra e à cidade, trata da qualificação da habitação em uma situação real. Ou seja, as pessoas já estão lá ocupando, a partir disso é preciso garantir o direito à terra, aos serviços de saneamento, abastecimento, transporte, e [é preciso] complementar essa política com um programa de assistência técnica para qualificação da habitação”, afirma Passos.

Parceria em São Leopoldo

A atual gestão da Prefeitura de São Leopoldo tem como política buscar a regularização fundiária de áreas ocupadas, evitando ao máximo os despejos dessas populações, segundo a arquiteta Ângela Maria Müller, diretora de programas habitacionais da Secretaria de Habitação e coordenadora do programa de Inclusão Urbana. “Em função de ter algumas ocupações no município que são passíveis de regularização, por se localizarem em áreas que não são de preservação ou de risco, o governo municipal está buscando a regularização. A Cerâmica Anitta é uma das que estão sendo tratadas dentro do projeto Inclusão Urbana, que tem como finalidade agregar essas áreas que são passíveis de regularização fundiária”, relata ela, que também coordena o projeto.

Em um primeiro momento, o Inclusão Urbana foi estabelecido como uma cooperação técnica entre o município e a Unisinos, por meio do curso de Arquitetura e Urbanismo. Em março, quando a desafetação da área da Cerâmica Anitta foi assinada pela Prefeitura, os estudantes começaram a realizar saídas de campo na comunidade selecionada e, a partir daí, após levantar dados socioeconômicos e conversar com as famílias, elaboraram projetos urbanísticos voltados à necessidade dos moradores. Isso acontece com o acompanhamento da Secretaria, que então dialoga com os alunos sobre as possibilidades de se concretizar as propostas e, ao final do semestre, escolhe alguns trabalhos para a elaboração do projeto definitivo, em parceria com a comunidade.

Desde a criação do curso de Arquitetura e Urbanismo na Unisinos, há 47 anos, a disciplina de Atelier de Projeto 6, do sexto semestre, é voltada à temática da habitação popular, afirma a professora Débora Becker, que é responsável pela cadeira em São Leopoldo e coordena o curso em Porto Alegre. “Isso faz parte do espírito da Unisinos, de responsabilidade social universitária, muito dentro da questão de desenvolver nos alunos a competência de trabalhar com arquitetura social, para quem precisa e não tem acesso a ela”, aponta.

Parceria permitiu que estudantes da Unisinos elaborassem projetos reais para a comunidade | Foto: Valentin Thomaz/PMSL

Até o ano passado, os estudantes já trabalhavam com comunidades carentes, mas com projetos fictícios, que não eram aplicados na realidade. Em 2017, com a assinatura de um termo de cooperação entre a faculdade e a administração municipal, viabilizou-se a integração dos universitários com os órgãos públicos e com pessoas em situação de vulnerabilidade social. O primeiro projeto desenvolvido após a firmação do termo foi no Loteamento Padre Orestes e, após o da Cerâmica Anitta, neste segundo semestre de 2018 os estudantes irão trabalhar no Tancredo Neves, também conhecido como Santa Marta.

Para a professora, a troca de experiências entre alunos e a comunidade é a “pedra preciosa” do projeto. “A comunidade ganha qualidade e participação nesse projeto, ela é ouvida, não é um projeto que simplesmente é dado para ela sem que possa opinar. Já os estudantes, assim como os moradores, ganham essa troca de experiência com outra realidade de vida, com pessoas que estão muitas vezes numa situação social diferente”, avalia Débora.

Paralelamente ao desenvolvimento do projeto pelos estudantes, a Secretaria começou a trabalhar na regularização fundiária da área. A ocupação se destaca por ser muito organizada, segundo Ângela. “Eles lutaram muito, resistiram, e se organizaram, tinham ideia da dimensão da área e as mesmas 68 famílias que entraram são as que permanecem até hoje”, explica.

A partir da disponibilização do recurso do CAU captado pelo IAB, o Instituto procurou a Prefeitura de São Leopoldo com a proposta de efetuar um projeto de assistência técnica gratuita em uma das áreas do município. Após uma avaliação de locais que tivessem essa demanda, a administração optou por sugerir aos arquitetos que trabalhassem na Cerâmica Anitta, como forma de dar continuidade ao trabalho feito até então com a Unisinos.

“Tudo surge da crença de que a assistência técnica é uma política não só necessária, mas também mais efetiva e eficiente para solucionar a questão do déficit habitacional, em comparação com programas de produção habitacional em massa como o Minha Casa, Minha Vida”, aponta Passos. Segundo Ângela, a ideia é que essa experiência funcione como um laboratório: “a partir desse projeto, vamos ver como vincular a lei de assistência técnica gratuita ao município, com o objetivo também de fomentar a utilização dessa lei para os municípios como uma forma de oferecer para as famílias de baixa renda um serviço feito por um profissional”.

Além do Inclusão Urbana, a Secretaria de Habitação também desenvolve o projeto Regulariza São Léo, que tem como objetivo regularizar cerca de 16 loteamentos que foram implantados nos últimos 30, 40 anos e que já tem infraestrutura. São comunidades já estabelecidas, mas que nunca tiveram sua situação regularizada. 

Escritório de assistência técnica

Para 2018, o projeto que o CAU vai realizar com os fundos previstos para assistência técnica de habitação social é ainda mais ambicioso: além de promover eventos relacionados ao assunto, o Conselho irá instaurar um escritório de assistência técnica a nível estadual, com o objetivo de ser “um agente potencializador de todas as iniciativas de assistência técnica do Estado”, conforme define o presidente da entidade, Tiago Holzmann da Silva.

Assentamento 20 de novembro, na Barros Cassal, em Porto Alegre, foi outro projeto contemplado com fundos do CAU em 2017 | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Os arquitetos do CAU tem definido a ATHIS como um “SUS para a habitação”, por se tratar de um serviço público para atender famílias que precisam de arquitetos e não têm recursos. “Vai ter um recurso de política pública para atender a habitação, considerando que a moradia é um dos direitos fundamentais previsto na nossa Constituição. Nada mais justo do que ter um fundo para que as pessoas possam ter acesso à qualificação de sua moradia”, resume Tiago, que diz que a ideia do Conselho é que o escritório ajude municípios, universidades e coletivos de arquitetos que queiram implantar projetos de habitação popular.

O presidente do órgão foi ao interior do Estado dialogar com diversas prefeituras e relata já ter conversas bastante avançadas com algumas administrações, inclusive em cidades grandes como Santa Maria e Caxias do Sul. “Estive com os prefeitos e eles reforçaram seu interesse na parceria para poder implantar esse projeto. Em Caxias também iremos contar com participação do IAB e da Universidade de Caxias do Sul (UCS)”, conta.

O momento é propício, segundo Tiago. “A lei está fazendo dez anos, é bastante tempo, mas é um tema que, no ano passado e nesse ano, por todos os lugares e ambientes que a gente vai, não só profissionais, assim como em prefeituras, universidades, falam disso. A ATHIS é, quem sabe, a grande oportunidade que o Estado brasileiro, nas suas diversas instâncias, tem de enfrentar esse problema de maneira mais perene. Porque o que precisamos é de uma política contínua, assim como o atendimento de saúde e educação, habitação tem que ser contínuo, não pode ser episódico”, acredita.


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