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17 de maio de 2018
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15:40

Como fica o debate sobre a Lei de Anistia depois do documento da CIA citando Geisel

Por
Sul 21
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Protesto pela Anistia, no Rio de Janeiro | Foto: Memórias Reveladas/Arquivo Nacional

Fernanda Canofre

Há uma semana, uma postagem do professor Matias Spektor, da Fundação Getúlio Vargas, chamou a atenção para um documento da CIA relatando uma reunião entre três generais: o presidente da ditadura militar, Ernesto Geisel, o chefe do Serviço Nacional de Inteligência (SNI), João Baptista Figueiredo, e o chefe do Centro de Inteligência do Exército (CIE), Milton Tavares. Nela, o presidente que havia acabado de suceder Emílio Médici, aprovou a continuidade de execuções sumárias de “subversivos” contrárias ao regime.

Os documentos fazem parte de um lote que teve o sigilo levantado em dezembro de 2015, pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos. No memorando assinado pelo diretor da CIA, William Colby, é mencionado ainda que 104 pessoas haviam sido executadas sumariamente pelo Exército, até 1974. Em 2003, no livro A ditadura derrotada, o jornalista Elio Gaspari já havia citado um episódio que mostrava o pensamento de Geisel sobre execuções. Em um reunião com o general Dale Coutinho, um mês antes se tornar presidente, ele afirmava que “esse troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser”.

A publicação dos documentos, reforçando que o alto escalão do governo sabia e participava da política de execuções, trouxe de volta um velho debate que o Brasil resiste em encarar: a Lei de Anistia.

Em 2o1o, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) declarou a Lei de Anistia brasileira inválida para casos de graves violações de direitos humanos. A sentença veio pelo julgamento do caso Gomes Lund, um dos guerrilheiros executados no Araguaia. Ela determinava ainda que o Estado brasileiro tinha obrigação de investigar os fatos, julgar e punir os responsáveis e determinar o paradeiro das vítimas. Além de adotar medidas para a não-repetição dos crimes.

Assinada em 1979, em teoria, a Anistia se aplicaria a quem cometeu crimes políticos durante a ditadura. Pessoas que tivessem cometido os chamados “crimes de sangue” não poderiam ser incluídas. Na prática, isso serviu apenas para o lado de quem lutou contra o regime militar. Muitas pessoas que participaram de assaltos a banco ou da luta armada seguiram presas mesmo após a lei. Do lado dos militares, porém, todo crime de execução, tortura, sequestro ou desaparecimento, foi acolhido na interpretação de “crime político”. Nenhum militar foi preso.

Manifestação contra a ditadura no Rio de Janeiro em 1968 | Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Para o procurador do Ministério Público Federal, Marlon Weichert, o próprio texto da lei “é ruim”. Ela inclui um dispositivo que permitiu dar a leitura de “políticos” para crimes praticados por agentes do Estado.

“O que o MPF defende é que essa parte da lei seria inválida. Porque ela viola a Convenção Americana, viola a Constituição Brasileira e a Corte Interamericana assim já decidiu e mandou que o Brasil aplicasse essa lei. A gente defende que o documento da CIA reforça esse entendimento. A partir da decisão de um presidente da República, houve uma política de perseguição sistemática a todos aqueles que eram suspeitos de serem dissidentes do governo. Essa perseguição envolvia execução sumária, tortura, desaparecimento forçado”, avalia.

Ex-guerrilheira da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Susana Lisboa dedicou a maior parte da vida lutando por reparação junto à Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos. O marido dela, Luiz Eurico Tejera Lisboa, sequestrado pelo regime, foi o primeiro corpo identificado na vala do cemitério de Perus, em São Paulo. Ela acha a revisão desnecessária.

“Para mim, a interpretação da Lei de Anistia é uma questão jurídica. Eles colocaram a coisa de crimes conexos, foi ali que  tentaram anistiar os seus, mas sempre consideramos que se havia exceção dos chamados crimes de sangue, que não tinham sido anistiados, eles também não poderiam ter sido. Se foi igual para os dois lados, como eles anistiaram os que mataram em nome do Estado?”, questiona.

Susana diz que não foi surpresa nenhuma saber da participação de Geisel na política de execuções. Ela cita, por exemplo, a Operação Radar, que durou de 1973 a 1976, montada para acabar com o PCB. O partido era o único que tinha conseguido se manter organizado, ainda na clandestinidade. A operação terminou por prender 700 pessoas em todo o país e desapareceu com 10 integrantes da direção do partido.

Julgamento no STF sobre Lei da Anistia, em 2010 | Foto: STF/Divulgação

No STF, recurso aguarda há 6 anos

Poucos meses antes da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso do Araguaia, o Supremo Tribunal Federal (STF) também discutiu a Lei de Anistia. A arguição de descumprimento de preceito fundamental de número 153 foi apresentada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pedindo a revisão da lei.

Por sete votos a dois, a Corte acompanhou o relator Eros Grau, que defendia que ao Judiciário não caberia rever “o acordo político” feito na transição do regime. O próprio Grau, indicado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para o STF, foi preso e torturado no DOI-CODI, por ser militante do Partido Comunista do Brasil. A única vez que ele falou publicamente sobre o tema foi em depoimento ao jornalista Zuenir Ventura, no livro 1968: O que fizemos de nós, onde disse: “No DOI-Codi, aprendi a não ter tanto medo. Nada pior do que aquilo pode acontecer”.

Autor da ação, o jurista Fábio Konder Comparato conta que no dia da votação no STF foi abordado por um dos ministros que relatou um jantar realizado no Palácio do Planalto na noite anterior. O então presidente Lula e seu ministro da Defesa Nelson Jobim teriam pedido “não uma, mas várias vezes” que a ação fosse julgada improcedente. A assessoria do Tribunal não retornou ao contato da reportagem sobre o episódio.

O jurista Fábio Konder Comparato | Foto: Reprodução

“Quando foi publicado o acórdão, eu percebi que havia uma omissão grave, eles não diziam uma palavra sobre os crimes de ocultação de cadáveres e de sequestro de pessoas. São crimes permanentes ou continuados até que apareça o cadáver ou a pessoa sequestrada. A Lei de Anistia de 1979 declarou que só se aplicava a crimes consumados até 15 de agosto de 1979. Evidentemente, o relator não quis entrar nesse assunto, porque ele não tinha nada o que dizer”, diz Comparato.

Em 2012, ele deu entrada aos embargos declaratórios pontuando as questões. O recurso, porém, nunca foi levado a julgamento. Com a aposentadoria de Grau, a relatoria ficou para seu sucessor, o ministro Luiz Fux. Em nome do PSOL, Comparato tentou ainda uma representação contra Fux por não levar o julgamento à pauta. No site do STF, a última movimentação do processo está registrada no dia 21 de março de 2016. A assessoria do órgão diz que não há previsão de julgamento do recurso.

Para o jurista, o “acordo político” feito na transição do fim da ditadura é “absolutamente nulo” por que se trata de crimes contra a humanidade, cometidos por agentes estatais por determinação do Chefe de Estado. O que foi confirmado mais uma vez pelos documentos citando Geisel.

“Eles acham que torturar um prisioneiro, porque ele pertence ao Partido Comunista ou matar um guerrilheiro é um crime político. Eu repito, esses crimes não podem ser anistiados, sobretudo pelo Estado. O Estado foi o responsável, ele não pode se auto-anistiar. É isso que dizem os tribunais internacionais há muito tempo”.

Impunidade contribui para momento político

Cartazes estudantis contra a truculência da repressão | Foto: Arquivo Nacional, Correio da Manhã

No dia seguinte a revelação sobre a os documentos da CIA, o Exército brasileiro se manifestou por meio de nota. Através de seu Centro de Comunicação Social, ele afirma que “os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar a veracidade dos fatos narrados foram destruídos, seguindo normas da época”.

A relutância das Forças Armadas em abrir os documentos sobre o período também são uma discussão antiga no Brasil. Susana Lisboa lembra, porém, que durante o governo de Itamar Franco, já passados oito anos desde a abertura política, o então ministro da Justiça, Maurício Correia, criou uma comissão entre as três Armas pedindo que elaborassem relatórios que ajudassem com a questão de desaparecidos. Os familiares chegaram a ter acesso aos documentos por um período.

“Naquele ano havia arquivos. Especialmente o da Marinha, trazia informações detalhadas sobre os desaparecidos do Araguaia. Muitos, que nós achávamos que tinham morrido em combate, descobrimos ali que tinham sido presos e executados posteriormente. Então, onde foram parar esses documentos? A Comissão Nacional da Verdade não deu bola para isso, ninguém deu bola para isso. Esse encaminhamento para o ministro da Justiça está assinado pelas três Armas. As pessoas que assinam tem que responder. Eles queimaram os arquivos depois disso?”.

Susana Lisboa conta que sempre foi tratada com “desdém” pelos governos | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Susana acredita que muitos arquivos tenham sido destruídos já no período democrático, inclusive durante os anos de governo Lula. Na transferência do acervo do SNI para o Arquivo Nacional, muitos documentos desapareceram. Para ela, “[as Forças Armadas e o governo] não abrem os arquivos porque não querem”. Ao longo dos anos, junto com os familiares e vítimas que ainda lutam por reparação e justiça, ela se acostumou a ser tratada “com desdém” pelos sucessivos governos.

“Diziam ‘vocês estão sempre reclamando, nunca estão satisfeitos, tudo o que a gente faz é pouco’. Tudo o que eles fizeram foi pouco. Nós sempre dizemos que a Anistia foi parcial e restrita. Nós lutávamos por uma anistia ampla, geral e irrestrita”, lembra ela. “Todos os presos políticos daquela época foram julgados. Nenhum torturador foi julgado. Nenhum torturador foi apontado, sequer conhecido, o Exército nunca assumiu que matou no Araguaia, que cortou cabeças. O pedido de desculpas feito pela Comissão da Anistia não tem nada a ver com o reconhecimento do Estado e das Forças Armadas que fizeram isso”.

O MPF tem levado agentes de Estado para o banco dos réus há anos mas, segundo o procurador Marlon Weichert, “o poder Judiciário não tem aceitado a iniciativa”. O memorando da CIA reforça o que já era apontado nesses processos, que no Brasil houve uma política de perseguição e crimes contra a humanidade, que não podem ser anistiados. O órgão foi um dos únicos a se manifestar sobre o documento.

“A consequência [de não punir torturadores] é um desgaste da ideia de princípio de igualdade, um desmerecimento da ideia republicana, de que os agentes não são responsáveis pelos próprios atos que cometem. É um desprestígio aos direitos humanos, porque quem violá-los permanece impune. É um incentivo a que agentes do Estado continuem a praticar essas violações. Basta ver o grau de violações pelo Estado que continuam”, defende Weichert.


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