Entrevistas
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9 de outubro de 2017
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11:18

‘Doenças ligadas à alimentação já são principal problema de saúde pública no mundo’

Por
Marco Weissheimer
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Patrick Caron:
Patrick Caron: "É uma revolução completa que precisa ser feita na agricultura e nos sistemas alimentares". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

O século XX foi marcado, na agricultura, pelas promessas da Revolução Verde de aumento da produção e da produtividade para vencer o espectro da fome diante do crescimento demográfico. Essas promessas foram, em parte, cumpridas, mas não conseguiram resolver o problema da fome e da desnutrição no mundo. Além disso, desenvolveram um modelo de agricultura baseado fortemente no uso de insumos químicos, agrotóxicos e, mais recentemente, organismos transgênicos. Para além de seus resultados econômicos, esse modelo deixou um legado ambiental e de saúde pública que começa a cobrar seu preço.

O pesquisador francês Patrick Caron, presidente do Painel de Alto Nível de Especialistas (HLPE) do Comitê de Segurança Alimentar da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), defende a necessidade de uma revolução em nossos hábitos alimentares e no sistema agrícola como um todo. Caron veio a Porto Alegre a convite da presidência da Assembleia Legislativa e do curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para participar de um seminário sobre políticas públicas na área da agroecologia. Em entrevista ao Sul21, ele falou sobre os limites do atual modelo de agricultura e sobre as possibilidades abertas pela agroecologia:

“Temos que inventar outra agricultura, uma agricultura que não se baseie na química, mas que invente novas modalidades e incorpore as questões da saúde, do meio ambiente, da geração de emprego e do bom estar dos produtores. É uma revolução completa que precisa ser feita na agricultura e nos sistemas alimentares. Hoje, as doenças ligadas à alimentação, como enfermidades cardiovasculares, câncer e diabetes, já são o principal problema de saúde pública no mundo”.

“Tínhamos esquecido que a segurança alimentar era um problema mundial ou não queríamos nos lembrar”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: Qual o papel que o Painel de Alto Nível de Especialistas, do Comitê de Segurança Alimentar da FAO, desempenha hoje no debate sobre os problemas relacionados à fome e à má nutrição no mundo?

Patrick Caron: O Comitê de Segurança Alimentar foi criado nos anos 70 como um órgão intergovernamental sediado na FAO, em Roma. Em 2008, ocorreram protestos contra a fome em 37 países do mundo. Tínhamos esquecido que a segurança alimentar era um problema mundial ou não queríamos nos lembrar. Após esses protestos, chegou-se à conclusão de que era preciso reforçar a governança mundial. Foi feita, então, uma reforma na FAO e também no Comitê de Segurança Alimentar das Nações Unidas, que passou a ser mais inclusivo, integrando vozes não governamentais que não tinham sido incorporadas no processo até então. A segunda perna da reforma de 2010 foi a criação do Painel de Especialistas de Alto Nível, composto por cientistas, com três funções específicas.

A primeira delas é analisar a evolução da situação da segurança alimentar e nutricional no mundo. Como a FAO já faz isso, em conjunto com outras agências das Nações Unidas, o Painel acabou não atuando muito nesta área. A segunda função é elaborar relatórios sobre temas críticos e controversos para definir o que sabemos sobre o tema em questão, o que não sabemos e quais são os pontos de desacordo e controvérsia. Uma vez que é entregue o relatório começa um processo de negociação política.

Produzir um relatório desses demora, em geral, mais de um ano. Há uma consulta sobre o foco do relatório e, depois, uma chamada para convidar os maiores especialistas do mundo a trabalhar juntos sobre o tema escolhido. Após, é realizada uma consulta pública sobre uma primeira versão do relatório e uma revisão do texto pelos pares científicos. Concluídas essas etapas, o relatório é apresentado para o Comitê de Segurança Alimentar e inicia um processo de negociação política. Tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada envolvem uma negociação intergovernamental.

A terceira função do Painel é identificar, para o Comitê, quais são as temáticas críticas e emergentes envolvendo a segurança alimentar e nutricional que deverão ser consideradas nos próximos anos. Algumas delas podem se tornar tema para relatórios futuros.

Já foram publicados doze relatórios, desde 2010, sobre temas como clima, relatividade dos preços, apropriação fundiária, o papel da pecuária, os recursos hídricos e a segurança social. O último relatório, publicado semana passada, é sobre nutrição e sistemas alimentares. Todos eles podem ser acessados, sem custo, pela internet, na página do Comitê de Segurança Alimentar.

“Há uma necessidade absoluta de se repensar a agricultura através de uma melhor potencialização dos ciclos ecológicos”.
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Sul21: Neste último relatório, sobre nutrição e sistemas alimentares, quais foram as controvérsias que motivaram a realização do estudo?

Patrick Caron: Há várias. Uma delas envolve a questão do sobrepeso e obesidade no mundo. Esse relatório trabalhou com o conceito de meio ambiente alimentar, ou seja, o conjunto de todos os elementos que fazem com que o consumidor escolha este ou aquele produto. Entre aí, por exemplo, a questão da publicidade para crianças, de alimentos que não são saudáveis.

Sul21: Você poderia citar exemplos de temáticas críticas e emergentes envolvendo a segurança alimentar e nutricional no presente e no futuro próximo?

Patrick Caron: Claramente, a agroecologia, que foi identificada como uma das novas temáticas que devem ser estudadas melhor. É preciso entender melhor como ela funciona e contribui para o desenvolvimento sustentável e também como ela pode ter impacto em grande escala.

Sul21: Aqui no Brasil, ainda há muita gente que acha que a agroecologia não é viável em grande escala. Qual a sua opinião sobre esse tema?

Patrick Caron: Essa é a controvérsia principal que precisa ser respondida. É possível que um dos próximos relatórios do Painel seja sobre isso. Devemos reunir todas as evidências e pontos de vista disponíveis para fazer um balanço e tentar entender melhor o tema. Uma dos princípios da agroecologia é basear-se sobre a internalização de questões que, até então, foram completamente externas à agricultura. O impacto ao meio ambiente é um exemplo disso. Nunca essa questão foi considerada nas avaliações do rendimento de uma determinada cultura. A questão do clima é outro exemplo. Nunca se procurou saber também que quantidade de carbono é sequestrada dentro do solo em função de uma certa prática agrícola. Somos obrigados a olhar para isso agora.

A questão do emprego é outro tema importante. Uma determinada prática agrícola cria ou diminui o emprego e a renda para os produtores? Essas questões foram deixadas de lado e olhávamos apenas o rendimento biofísico da cultura. Temos que olhar essa questão de outra maneira, para que possamos ter um sistema alimentar sustentável. Saindo do meu papel de presidente do Painel e falando como pesquisador, entendo que há uma necessidade absoluta de se repensar a agricultura através de uma melhor potencialização dos ciclos ecológicos, mais do que forçar pelo lado da química e da genética. Esse é um grande assunto para o futuro.

Sul21: O debate sobre a agroecologia está diretamente associado, entre outras coisas, ao tema dos agrotóxicos. O Brasil lidera o ranking mundial de uso desses produtos e o Rio Grande do Sul lidera o ranking no Brasil. Um dos produtos mais utilizados é o glifosato, que está proibido em vários países. Um deles é a França que pretende inclusive estender essa proibição para o âmbito da União Europeia. Como está esse debate hoje na Europa?

“O debate sobre agrotóxicos na Europa é muito forte hoje”.
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Patrick Caron: É um debate muito forte. Eu falei antes sobre a internalização da pegada ecológica e da pegada social no debate sobre a agricultura. Podemos também olhar para a pegada em termos de saúde pública. A polêmica sobre esse tema está muito viva na Europa envolvendo a agricultura, a saúde e o meio ambiente. Estamos no início do processo de combinar esses três elementos. O século XX foi marcado pelo aumento da produção e da produtividade para vencer o espectro da fome diante do crescimento demográfico. Agora, temos que inventar outra agricultura, uma agricultura que não se baseie na química, mas que invente novas modalidades e incorpore as questões da saúde, do meio ambiente, da geração de emprego e do bom estar dos produtores. É uma revolução completa que precisa ser feita na agricultura e nos sistemas alimentares.

Temos o costume de olhar para isso como um problema o que, certamente, é verdade. Mas temos aí também a perspectiva de olhar para a agricultura como uma maneira de buscar um desenvolvimento sustentável. Existe uma relação muito forte entre o clima, a saúde, os ecossistemas, a agricultura, a coesão dos territórios e a estabilidade política. Se tomarmos a agricultura como uma alavanca para abordar essas conexões podemos abrir um novo caminho.

Sul21: A ONU divulgou um comunicado esta semana afirmando que a fome, após um declínio constante por mais de uma década, a fome está novamente em ascensão no mundo. Quais as razões disso e quais as regiões mais afetadas?

Patrick Caron: A fome nunca deixou de ser um problema. Como vimos acontecer em 2008, quando pensamos que não é mais um problema, ela volta a aparecer. Se olharmos para o que aconteceu, desde 1970, sempre houve aproximadamente 800 milhões de pessoas padecendo de fome no mundo. É claro que, como a população dobrou em termos globais, a proporção diminuiu. Tivemos resultados espetaculares em países emergentes como Brasil, China e Índia, onde tivemos uma saída da fome muito expressiva.

Então, pode ser que tenha se criado uma percepção que o problema estava desaparecendo. Mas não é isso. O que a ONU está fazendo agora é um alerta forte e relevante em torno de dois problemas. O primeiro está ligado às áreas de conflito envolvendo Iemen, Somália, Nigéria e algumas partes do Sudão do Sul que têm sua situação agravada pelas mudanças climáticas e pela pobreza. O segundo é o aumento da pobreza que está atingindo pessoas no mundo inteiro. Esse alerta serve para nos lembrar que a fome ainda é um flagelo muito grave no mundo.

“Uma em cada três pessoas do planeta sofre algum problema alimentar. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: Você poderia falar um pouco sobre as diferenças entre os conceitos de segurança alimentar e segurança nutricional? Além do problema da fome, no outro extremo, há um grave problema de saúde envolvendo obesidade e sobrepeso. Como esses dois temas se relacionam?

Patrick Caron: Mesmo antes do surgimento do problema da obesidade e do sobrepeso, já havia a ideia de que a segurança alimentar não era apenas uma questão de oferta alimentar. Em 1996, a segurança alimentar foi redefinida através de quatro dimensões: a disponibilidade, o acesso ao alimento, a qualidade e estabilidade no tempo. Hoje, temos uma estimativa de que cerca de 2 bilhões de pessoas sofrem de carência alimentar, 800 milhões de fome e outros 2 bilhões de sobrepeso, dos quais 600 milhões em situação de obesidade. Ou seja, uma em cada três pessoas sofre com um desses problemas. Nos anos 2000, passamos a incorporar as questões da nutrição e da saúde no debate sobre a segurança alimentar. Hoje, as doenças ligadas à alimentação, como enfermidades cardiovasculares, câncer e diabetes, já são o principal problema de saúde pública no mundo.

Sul21: A indústria da alimentação é dominada hoje por algumas grandes corporações que, ao mesmo tempo, produzem sementes, agrotóxicos e outros insumos químicos. Essas corporações participam, de algum modo, deste debate promovido pela ONU sobre a segurança alimentar e nutricional?

Patrick Caron: Em primeiro lugar, é importante assinalar que há evidências concretas de que a concentração neste setor está aumentando. Esses grupos estão representados no Comitê de Segurança Alimentar por um mecanismo particular que é o mecanismo do setor privado. Algumas empresas começam a perceber que é preciso mudar alguma coisa e manifestam interesse em se envolver neste processo. Não é por caridade. É uma questão de sustentabilidade para elas mesmas também pensar em temas como assegurar o abastecimento no longo prazo ou em como não sofrer campanhas por parte de consumidores. Dá para perceber que há um debate crescente sobre comércio solidário, comércio justo e invenção de novos circuitos de comercialização, que afeta todas as cadeias de comercialização e questiona os grandes grupos industriais. Está sendo produzido um relatório agora sobre esse tema, que deverá estar pronto dentro de um ano.

Sul21: Você veio a Porto Alegre participar de um debate sobre agroecologia e políticas públicas. Poderia indicar um desafio que considera importante para a formulação de políticas públicas nesta área?

Patrick Caron: O debate sobre políticas públicas em agroecologia é, sem dúvida, muito importante e deve buscar conectar uma visão do que está acontecendo no mundo com uma visão do que acontece em nível regional nos diferentes países da América Latina. Penso que um dos grandes desafios do futuro nesta área é reconhecer que nenhuma localidade está isolada e há uma conexão muito grande entre o que acontece no mundo e o que acontece localmente. A capacidade de entender essas relações e conexões é muito importante para acompanhar as transformações em curso no mundo.


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