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30 de setembro de 2017
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20:20

“A barbárie já está em curso. Precisamos ter uma percepção mais dramática do presente”

Por
Sul 21
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Debate sobre crise capitalista e crise civilizatória, no SindBancários, reuniu Arno Augustin, Flavio Koutzii e Marilane Teixeira. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Marco Weissheimer

O processo da Revolução Russa, de 1917, foi um ensaio para o dia em que a história da humanidade deixe de ser marcada pela luta de classes e passe a se transforme em expressão de um debate de idéias baseado nos valores da liberdade, da igualdade e da busca de uma vida fraterna. O economista e ex-secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin, abriu assim, quinta-feira (28) à noite, no Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região, o segundo encontro do Seminário Reflexões sobre 1917: Repensar um século de socialismo, promovido pelos mandatos do deputado federal Pepe Vargas, dos deputados estaduais Jeferson Fernandes e Elvino Bohn Gass, e da vereadora Sofia Cavedon, integrantes da tendência Democracia Socialista (DS), do Partido dos Trabalhadores (PT).

Arno Augustin abriu o debate, que teve como tema geral a crise do capitalismo e a crise civilizatória, destacando que, apesar das sucessivas crises que marcam a história do capitalismo, não enxerga inevitabilidade histórica em nada e que não há nenhuma garantia que o capitalismo será substituído pelo socialismo algum dia. Essa inevitabilidade também vale no sentido contrario, ou seja, não é impossível que isso aconteça e a Revolução Russa teve o mérito de, apesar de seus erros posteriores, mostrar que é possível trilhar outro caminho. “Temos que ir aprendendo com as nossas experiências. A lição que temos que tirar dessas experiências não é a desesperança, mas o aprendizado para seguir tentando mudar a história da humanidade”, disse.

Arno Augustin: “Não enxergo inevitabilidade histórica em nada”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

O economista lembrou que, ao longo da história, o pensamento de esquerda considerou muitas vezes que a tendência à queda das taxas de lucro levaria a uma crise terminal do sistema capitalista. Recusando uma visão determinista sobre esse tema, Augustin preferiu chamar a atenção sobre como, em períodos de crise, o capitalismo eleva brutalmente a concentração de renda e a desigualdade social. Isso pode ser verificado tanto na grande depressão de 1929 quanto na recente crise de 2008. Entre 1987 e 2013, exemplificou, a faixa entre 150 e 250 pessoas mais ricas do mundo aumento sua participação na riqueza mundial de 0,3% para 0,9%, ou seja, sua riqueza triplicou.

O problema, no fundo, não é econômico, mas político. A verdadeira restrição do mundo é a da correlação de forças.

O estoque de capital no mundo, acrescentou Augustin, cresce bem mais do que a renda. Historicamente, a taxa de lucro no mundo é maior do que a taxa de crescimento. Enquanto esta última tem uma média histórica que varia entre 1 e 1,5%, a taxa de lucro cresce a 5%. “Fica claro que temos um problema aqui e que isso vai estourar em algum lugar”, observou, destacando ainda que cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial hoje está em paraísos fiscais. Os momentos de neoliberalismo exacerbado, disse ainda Arno Augustin, acabam resultando no contrario daquilo que apregoam. “Ao final do governo FHC, a relação dívida/PIB do Brasil estava na casa dos 59,9%. Em 2014, esse índice tinha caído para 32,59%. Ou seja, o Brasil devia muito menos em 2014 do que o devia ao final do governo FHC. Aí, por alguma razão que ainda procuro entender, mudou-se a política econômica e a relação dívida/PIB voltou a crescer, chegando a 46% em 2016 e a 49% em julho de 2017. Estamos voltando ao lugar de onde saímos”.

Assim como não acredita em inevitabilidades históricas, o ex-secretário do Tesouro Nacional também não crê que as soluções adotadas pelo capitalismo para enfrentar suas crises sejam soluções de fato. “O mundo tem resolvido essas crises com guerras ou com outras soluções não civilizatórias, com custos sociais altíssimos, como temos agora com a financeirização da economia, a precarização da força de trabalho, o aumento do desemprego, a terceirização e outras medidas para diminuir o salário real”. Arno Augustin concluiu sua intervenção dizendo que aprendeu muito durante sua passagem pelo governo federal e destacou uma lição em especial: “O problema, no fundo, não é econômico, mas político. A verdadeira restrição do mundo é a da correlação de forças. Por isso é importante seguir debatendo a Revolução Russa. Mesmo que tenha dado errado depois, ela provou que é possível fazer diferente.

Marilane Teixeira: “A Reforma Trabalhista proposta agora aqui no Brasil é muito semelhantes a que foi feita na Espanha em 2012”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Economista e pesquisadora da Universidade de Campinas (Unicamp), Marilane Teixeira destacou a influência da Revolução Russa para a constituição posterior de um Estado de Bem Estar Social na Europa. No século XIX, assinalou, o trabalho era uma coisa degradante. “Além disso, não havia mecanismos de representação nem sufrágio universal. As mulheres não votavam. Havia uma reação muito grande da classe trabalhadora, mas havia uma reação mais forte ainda das classes reacionárias”. A Revolução Russa representará um marco neste processo, favorecendo a luta por direitos em toda a Europa. “Tivemos um conjunto de direitos que vão se consolidar nos anos 50 e perdurar até os anos 80. Cabe destacar que tivemos, do ponto de vista histórico, um curto período de Estado de Bem Estar Social. Nos últimos dois séculos de história foram apenas 30 anos”, assinalou a economista.

Mas o contrato social do Estado de Bem Estar Social, observou Marilane Teixeira, foi também um contrato sexual. Esse contrato fez com que, nos anos 50, as mulheres ficassem no espaço reprodutivo, como donas de casa, enquanto os homens dominavam o espaço produtivo. Esse modelo só foi ser rompido nos anos 70 e 80, com o ingresso maciço de mulheres no mercado de trabalho. Por outro lado, ressaltou a pesquisadora, se o período entre os 50 e 50 foi marcado por um círculo virtuoso na economia com um Estado de Bem Estar Social, essa também foi a época em que as empresas das principais potências capitalistas expandiram seus negócios para a América do Sul, América Central, Ásia e África, se apropriando das riquezas e recursos naturais dos países destas regiões.

A ordem é flexibilizar ao máximo para recompor a margem de lucro das empresas.

Esse cenário, disse ainda a pesquisadora da Unicamp, começará a ser a alterado com a crise dos anos 70 que provocará um questionamento profundo do próprio conceito de seguridade social, que será substituído pelo conceito de proteção social. “Hoje, na Europa, não se fala mais em seguridade social, que era um conceito mais amplo e universal, mas só em proteção social, como uma ajuda para os mais necessitados”. Outro conceito que entrará em crise é o de trabalho assalariado, que será substituído progressivamente por conceitos como empregabilidade, empreendedorismo e as chamadas novas formas de trabalho.

Essas novas formas de trabalho, apontou Marilane Teixeira, foram se expandindo pelo mundo. “Hoje, o trabalho em tempo parcial já representa cerca de 25% da força de trabalho na Europa. Além disso, nos últimos anos vêm se ampliando também na Europa as possibilidades de demissão sem justa causa. Tudo isso em nome da necessidade de adequação às flutuações econômicas. A Reforma Trabalhista proposta agora aqui no Brasil é muito semelhantes a que foi feita na Espanha em 2012”.

Essas medidas estão sendo acompanhadas por uma crescente perda de representação sindical e dos mecanismos de negociação coletiva, substituídos pelos acordos individuais. “A ordem é flexibilizar ao máximo para recompor a margem de lucro das empresas. A uberização está se disseminando, assim como o trabalho em plataformas digitais. Estamos assistindo à transformação de todas as formas de serviço em mercadorias. O movimento sindical terá que se reinventar para poder sobreviver neste cenário e articular novas formas de luta também”, concluiu Marilane Teixeira.

Flavio Koutzii: “Estamos vivendo uma época ultra-reacionária que pretende destruir rapidamente o que conseguimos avançar”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Ex-deputado estadual e ex-chefe da Casa Civil do governo Olívio Dutra, Flavio Koutzii retomou o tema da recusa do determinismo ao se analisar as crises do capitalismo, levantado por Arno Augustin, para lembrar de um importante aprendizado que acompanha essa recusa. “A minha geração teve uma formação política muito marcada pelo determinismo. Parte da nossa evolução política se deu justamente com o rompimento gradual com o determinismo. A ruptura com o determinismo foi um convite a começar a pensar”, disse Koutzii. E o cenário atual está exigindo mais do que nunca, enfatizou, que a esquerda comece a pensar de modo mais profundo sobre o que está acontecendo. Lembrando a expressão de Rosa Luxemburgo, “socialismo ou barbárie”, acrescentou: a barbárie já está em curso”.

Ao analisar a realidade política brasileira pós-golpe, Flavio Koutzii chamou a atenção para a velocidade da ofensiva da direita sobre tudo o que foi construído nos últimos anos. “A lógica do golpe é de acelerar essas medidas o máximo possível. Não tem folga para pensarmos, respirarmos e retomarmos o fôlego. A ideia é essa mesma. Eles sabem por que estão avançando e para onde querem ir. Nós estamos atônitos, sem conseguir sequer respirar direito”. Além da velocidade, acrescentou, essa lógica também é marcada por uma disputa de hegemonia, que se manifesta em diferentes áreas, como a da forma de organização econômica e da reforma do trabalho.

Há um claro deslocamento do político para colocar o econômico no lugar. Isso é uma parte importante das conquistas que eles conseguiram.

“O discurso do empreendedor virou um verdadeiro evangelho. O núcleo dessa ideia é que só não avança quem não se esforça, quem não trabalha. A cada três frases do noticiário da Globonews, somos informados sobre qual o sentimento do mercado sobre aquele tema. É um discurso hegemônico que avança sem parar. Há um claro deslocamento do político para colocar o econômico no lugar. Isso é uma parte importante das conquistas que eles conseguiram”.

Neste contexto, defendeu Koutzii, é fundamental aguçar a percepção da história e do espaço em que as coisas aconteceram. Referindo-se à Revolução Russa, assinalou: “Os fenômenos históricos vividos mais remotamente não aconteceram em vão. Não é possível suprimi-los. Não dá para pensar o presente e o futuro sem pensar esses acontecimentos passados. Para reconstruirmos o que foi perdido é preciso conhecer e prestar atenção no que, de fato, aconteceu.”

“Estamos vivendo hoje”, concluiu, “uma etapa ultra-reacionária, que pretende destruir o mais rapidamente possível o que conseguimos avançar. Eles avançam rapidamente no espaço que perdemos. Precisamos ter uma percepção mais dramática do presente para poder voltar a avançar sobre o campo do adversário”.


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