Cidades|z_Areazero
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24 de agosto de 2017
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18:05

Final feliz? Lanceiros Negros e BM firmam acordo, mas decisão ainda não é definitiva

Por
Luís Gomes
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Choque foi mobilizado para isolar Rua dos Andradas na espera da ocupação | Foto: Maia Rubim/Sul21

Luís Eduardo Gomes

No princípio, parecia que seria mais uma noite de violência e de derrota para as famílias da ocupação Lanceiros Negros Vivem. Pouco antes da meia-noite, policiais do 9º Batalhão de Polícia Militar iniciaram o isolamento do perímetro do prédio do antigo Hotel Açores, ocupado por famílias ligadas ao Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), no início de julho, semanas após a desocupação sob bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha do prédio outrora ocupado na esquina das ruas General Câmara e Andrade Neves.

Durante a madrugada, reinou o silêncio. Um grupo pequeno de apoiadores da ocupação se postou diante do prédio para passar a noite e outro se manteve além do cordão de isolamento estabelecido pela Brigada Militar, isolando a Rua dos Andradas entre a Caldas Júnior e a João Manoel, acompanhados, em ambas vias, por um cordão de isolamento formado por policiais do Batalhão de Choque, que levavam escudos, balaclavas, capacetes e armas para disparar balas de borracha. A reintegração estava prevista para ocorrer a partir das 7h, de acordo com o tenente-coronel Eduardo Amorim. Antes, às 5h30, um grupo de apoiadores que passara a noite na entrada do prédio, saiu para a rua e iniciou um ato de apoio e resistência à reintegração de posse, com palavras de ordem como: “MLB, essa luta é para valer”; Aqui tem um bando de louco, louco por moradia, quem acha que isso é pouco, nunca teve uma noite fria”; “pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem tem medo das formigas, não atiça o formigueiro”; tortura, assassinato, não acabou sessenta e quatro”. O clima era de tensão e expectativa para que a Brigada entrasse no prédio para retirar às famílias à força.

Quando o relógio bateu sete horas, não houve nada. Mais apoiadores já ocupavam a Caldas Júnior, mas não havia sinal dos homens do Batalhão de Operações Especiais. Um indício de que a reintegração de posse seria diferente dessa vez? Talvez pela repercussão negativa, pelas fortes críticas que a Brigada Militar recebeu ou apenas por uma mudança de postura, o fato é que, dessa vez, a ordem não foi de iniciar a entrada no prédio a qualquer custo. Comandante do Policiamento da Capital, o coronel Jefferson Jacques informou às 7h que, antes de qualquer ação, seria realizada uma reunião entre o comando da BM, representantes da ocupação, advogados dos proprietários do imóvel, defensores público, o Secretário de Diligências do Ministério Público, oficiais de Justiça, servidores da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) da Capital, deputados estaduais representando a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, vereadores e conselheiros tutelares. Estes últimos só chegariam depois das 8h, mas foram aguardados pela Brigada, que era cobrada pelo deputado estadual Jeferson Fernandes (PT), presidente da Comissão de DH, para seguir todos os protocolos e sugestões feitas por Defensoria e MP para a reintegração.

Deputados se reuniram com o comando da BM na Praça Brigadeiro Sampaio. Foto: Maia Rubim/Sul21

O objetivo da reunião era formar uma comissão de negociação para buscar um acordo para desocupação pacífica dos moradores da Lanceiros. Antes mesmo de as tratativas iniciarem, quando as autoridades ainda se encontravam na praça, surgiu a informação de que a Prefeitura de Porto Alegre, por meio da secretaria de Desenvolvimento Social – que havia sido instigada pelas vereadoras Fernanda Melchionna (PSOL) e Sofia Cavedon (PT) -, Maria de Fátima Záchia Paludo, estava oferecendo alugueis sociais por um período de seis meses, com valor máximo de até R$ 500, para 20 famílias da ocupação. Na véspera, a Fasc havia iniciado um processo de cadastramento dos moradores e contabilizado 19 famílias – o movimento contabilizava até 70 famílias morando na Lanceiros. Além disso, a informação era de que seria disponibilizado abrigo no Centro Vida, localizado na Av. Baltazar de Oliveira García. Esta opção, no entanto, era inicialmente rechaçada pelo MLB, uma vez que, após a desocupção de 14 de junho, os moradores foram levados para o local e encontraram um espaço sem as mínimas condições para abrigá-los.

As negociações com os moradores, de fato, só viriam a começar pouco antes das 9h, envolvendo representantes de todos os órgãos presentes na reunião da Praça Brigadeiro Sampaio. Aos poucos, enquanto os cerca de 200 homens do BOE permaneciam aguardando na praça, as conversas foram evoluindo. Por volta das 9h30, a deputada Manuela D’Ávila (PCdoB) trouxe a informação de que o Centro Vida não teria condições de alojar nenhuma família porque está abrigando um evento que vai até domingo. Depois, no entanto, já com a presença do líder do governo na Assembleia Legislativa, Gabriel Souza (PMDB), foi informado de que, na verdade, que estava sendo disponibilizado era um espaço pertencente à Brigada Militar localizado junto ao Centro Vida além de um outro espaço administrativo, que teriam melhores condições de abrigar as famílias do que aqueles oferecidos em 14 de junho e onde elas poderiam ficar até que os trâmites de liberação do aluguel social fossem resolvidos, o que pode levar semanas. A proposta foi levada para os moradores, que se reuniram em uma assembleia dentro da ocupação.

Carlos André foi pai pela segunda vez ontem | Foto: Luís Eduardo Gomes/Sul21

Carlos já nasceu desalojado?

O vendedor ambulante Carlos André, que mora na Lanceiros há cerca de 40 dias após conhecer o movimento quando tentava vender balas e água em uma assembleia, não conseguiu passar a noite na ocupação. Sua esposa deu à luz ontem ao segundo filho do casal, Carlos Augusto. “Meu filho já nasceu desalojado”. Antes, a família, que inclui também Rian, 3 anos, alternava a estadia em um hotel na região central e a rua, uma vez que a diária de R$ 75 não permitia que dormissem todos os dias sob um teto no Centro da Capital. “Mais parava fora do que dentro. A gente parava dois três dias no hotel, dois três na rua”.

Ele lamenta que o poder público tenha deixado chegar ao extremo de uma grande operação de reintegração de posse em vez de negociar uma solução anterior. “No último momento que eles foram decidir”, diz. No entanto, por experiência pessoal, para ele o aluguel social não era uma boa opção. “Nós já fizemos um contrato de aluguel social de um ano, mas eles [Prefeitura] atrasou três meses, e proprietário sempre da porta. No quarto mês, a gente foi despejado”.

Sem o acesso da imprensa ao local onde as tratativas eram realizadas, era impossível saber o teor das conversas, se haveria ou não possibilidade de acordo, mas era possível avistar que a cada pouco tempo representantes do movimento se aproximavam para negociar com a comissão formada por representantes do poder público. Era por volta das 11h, quando a reportagem já tinha conseguido acessar a frente do imóvel, que surge a notícia de que um acordo estava sendo firmado. Além do aluguel social e do abrigo temporário do Centro Vida, foi disponibilizado aos moradores unidades habitacionais vagas de um condomínio do Minha Casa Minha Vida na Restinga. Também ficava acordado que um grupo de mediação seria firmado entre o movimento e o poder público para discutir uma solução definitiva para as famílias, que poderia ser este condomínio ou outras opções, que poderiam incluir até mesmo terrenos para a construção de casas da família. Em troca, o movimento se comprometeria a desocupar pacificamente o imóvel. O acordo foi aceito, com a condição de que veículos seriam cedidos para as famílias visitarem o alojamento no Centro Vida e o condomínio na Restinga, além de que o cadastramento das famílias para o aluguel social fosse feito antes da saída do total e retirada dos pertences do imóvel, o que deve ocorrer durante a tarde.

“A gente sempre trouxe que queria sair pacificamente, mas que não iria para a rua. Hoje foi dito para nós que a gente não ia ser levado para rua, que havia um local para a gente ficar. Da outra vez, recebemos o mesmo informe, mas era um depósito, não era um local bom para ficar. O acordo é a gente ficar nesse local até termos o aluguel social para todas as famílias. Foi indicado para nós a existência de conjuntos habitacionais que estão vazios, que é algo que o MLB sempre pautou. A gente sabe que existem locais municipais que têm que ser habitação e ainda não são. Então, a gente pediu para formar uma comissão mista entre o poder municipal e o movimento social para a gente ver quais são esses lugares que a Prefeitura dispõe e aí sim a gente ir do aluguel social para a nossa casa definitiva. É um processo relativamente longo. A gente está tentando impor garantias de tempo, mas sabe também que no Brasil se assinam muitos contratos e eles não são finalizados, então a gente vamos seguir a nossa luta para conquistar essas moradias”, diz Nana Sanches, coordenadora do MLB. “Hoje, a gente teve pela primeira vez a abertura de um diálogo com órgãos municipais, o Demhab e Fasc, sobre a possibilidade dessas famílias que vêm lutando há tanto tempo terem unidades habitacionais. A gente sabe que só poder ter certeza da vitória quando tiver com os contratos em mãos”.

Lilian de Oliveira Luciano | Foto: Luís Eduardo Gomes/Sul21

Apesar da cautela, a moradora e também coordenadora da ocupação Lilian de Oliveira Luciano considerava o acordo como uma vitória. “A gente conseguiu fazer com que eles nos chamassem para conversar e para nos ouvir. Tudo bem que eles que nos deram as propostas, mas nós que estamos com o poder de aceitar. Se for viável, se eles estiveram agindo humana, lugares que tenham condições de moradia, para que os filhos tomem um banho, durmam, isso é uma vitória muito grande, nunca acontece. Se concretizar a habitação na Restinga, por mais que seja na periferia e a gente lute tanto pelo direito de morar no Centro, por mais que seja longe, de alguma forma é uma vitória da ocupação. Pela primeira vez a Lanceiros Negros vai ter um imóvel, um conjunto habitacional vencido pelo MLB, pela luta do povo. Vai ser nosso, pela nossa luta. Se a gente simplesmente tivesse se retirado sem lutar pelos nossos direitos, a gente continuaria sem um teto”, diz Lilian, acrescentando que, se o acordo fosse honrado, os moradores iriam sair da ocupação pacificamente, cantando, sorrindo e esperando em que as novas casas ficarem prontas para poderem fazer uma grande festa de inauguração. “Tava tenso. A gente tava tremendo, chorando, batendo panela, com medo de apanhar. Agora a gente está feliz. Temos que agradecer de alguma forma o comando da Brigada porque de alguma forma eles conseguiram entender que estão sendo usados como escudo desse governo que não faz nada por nós. De alguma forma, eles conseguiram cobrar uma atitude da Prefeitura”, disse.

Lizandra Rodrigues dos Santos, no entanto, recebeu o acordo com desconfiança e restrições. “Da outra vez, nós também tivemos propostas. Eu, ingenuamente, aceitei, levei meus filhos para o Centro Vida. Cheguei lá não havia condições. Dessa vez, fizeram a proposta novamente. O que nos dá segurança é que nos disseram que poderemos ir ver o local antes de dar uma decisão final. Mas, além da desconfiança, vejo com muito pesar, porque ofereceram lugares para nós na Restinga, um bairro super afastado, e todos sabem que nós temos a nossa vida no Centro. Meu filho trabalha e estuda, meu outro filho estuda, e assim várias outras famílias têm o seu meio aqui no Centro. Eu acho que é injusto eles nos obrigarem a uma decisão com a faca no pescoço, com a polícia com o pé na porta, pronta para invadir. Isso é pressão. E sob pressão do trauma também, porque a gente sabe o que aconteceu da outra vez e tem receio que aconteça novamente. Nós não vamos aceitar que nossas famílias sejam massacradas novamente. Isso é coação. Então, essas propostas são um ultraje à luta. Mas a luta não acabou, nós também não vamos virar as costas para a negociação, estamos felizes que pelo menos está tendo uma negociação.

A decisão final, porém, ainda dependia do resultado das vistorias no Centro Vida e no condomínio da Restinga. Contudo, pouco antes do meio-dia, o coronel Jacques já considerava que a solução pacífica seria o caminho a ser seguido. “Até o presente momento, eu considero que está avançando bem. O comitê funcionou bem. Existem circunstâncias que são alegadas pelo movimento, mas que não tem solução no dia de hoje. Mas o que construímos hoje é o que está caminhando para uma solução pacífica, sem o uso da força, sem a necessidade da reintegração forçada”, disse Jacques.

Para o coronel, o saldo da mediação foi positivo por não ter sido preciso “produzir danos”. “A polícia não pode ser usada como solução final das coisas. A característica dela é prevenir, mediar e, em último caso, se recebe hostilidade, resistência ou força antagônica, aí sim é reagir, defender-se e progredir avançando na resolução da questão”, disse. Ele ainda considerou que o acordo foi possível pelo engajamento de instituições e de representantes do movimento, além de tempo disponível para a negociação, o que, segundo ele, não havia na reintegração de 14 de junho. “Isso que aconteceu hoje, na outra ocupação perdurou por dois anos. Só que, para execução da ordem, não foi aberta essa premissa, porque já tinha ocorrido a fase de conciliação. Hoje a negociação aconteceu aqui, no local”.

Por volta das 14h, a comitiva de moradores que vistoriou os lugares oferecidos retornou à ocupação. Em vídeo, o deputado Jeferson Fernandes informou que o local, apesar de amplo, oferecia problemas nos banheiros e no teto, inclusive com uma parte da estrutura totalmente destruída. A BM, por sua vez, se comprometeu a “dar um jeito” nos problemas.

Até o fechamento da matéria, uma decisão final ainda não havia sido tomada. A expectativa ainda é de que não seja necessário o emprego da força para retirada das famílias e que a Brigada leve o tempo que for necessário para retirar elas e seus pertences do prédio.

Galeria de fotos

Foto: Maia Rubim/Sul21
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