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3 de junho de 2017
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18:10

‘Numa democracia, precisamos sair da nossa zona de conforto para falar com os outros’

Por
Sul 21
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Thomas Fischermann: “Hoje em dia está mais fácil acreditar em uma mentira. Ela entra, por exemplo, em seu grupo de amigos no Facebook, onde todo mundo já compartilhava certo preconceito”. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Marco Weissheimer

A proliferação de “fake news” e a formação de bolhas de interesse na internet estão configurando um novo cenário para o debate público. O debate político em um ambiente democrático, em particular,  está sendo desafiado por essa nova realidade. “Hoje em dia está mais fácil acreditar em uma mentira. Ela entra, por exemplo, em seu grupo de amigos no Facebook, onde todo mundo já compartilhava certo preconceito. E quando você quer acreditar em uma coisa é muito difícil não acreditar. Ler uma declaração que discorda do teu ponto de vista ou uma declaração de alguém que você não gosta provoca um certo desconforto. Mas, numa democracia, nós precisamos sair um pouco da nossa zona de conforto e entrar numa zona de desconforto para falar com os outros”, diz o jornalista alemão Thomas Fischermann, correspondente do jornal Die Zeit para a América do Sul, que esteve em Porto Alegre essa semana para participar de um debate sobre mídia, poder e democracia, promovido pelo Instituto Goethe, em parceria com o Sul21.

Em entrevista ao Sul21, Thomas Fischermann fala sobre os desafios que estão colocados para os sistemas públicos e privados de comunicação diante desse novo cenário, marcado pelo crescimento exponencial dos produtores de informação, pelo surgimento de novas formas de mídia e também por uma nova mentalidade entre os consumidores de informação.

Sul21: No Brasil, ainda existe uma grande resistência, em especial do setor privado, à existência de um sistema de comunicação pública forte no país. Aqui, no Rio Grande do Sul, recentemente, o governo decidiu extinguir as emissoras públicas agrupadas na Fundação Piratini, argumentando que não cabe ao Estado manter esse tipo de investimento. Você poderia falar um pouco sobre a situação da comunicação pública na Alemanha?

Thomas Fischermann: Em primeiro lugar, gostaria de assinalar que o que estamos fazendo na Alemanha, em termos de comunicação, pode não servir de modelo para a realidade de outros países. Nós não temos um modelo ideal e também enfrentamos muitos problemas. Na Alemanha, a comunicação pública é muito importante, especialmente na área da mídia eletrônica. As grandes redes de televisão são públicas. Elas não são do governo. Há um sistema com muitos checks and balances (sistema de pesos e contrapesos para garantir um equilíbrio político) que estabelece limites e padrões éticos. Não é um sistema livre de problemas. Mesmo que o governo não interfira diretamente, há políticos que tentam exercer algum tipo de influência. Mas como existem também televisões privadas e quase toda a mídia impressa é privada, há um bom equilíbrio.

“Lula representou um governo de uma esquerda bem razoável e deu certa esperança ao mundo”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: Os mandatos das direções dessas emissoras públicas coincidem com as trocas de governos ou são independentes?

Thomas Fischermann: São independentes. Há uma boa pluralidade aí. Não é perfeito, mas acho um sistema bom. Há vários veículos cobrindo as mesmas coisas, o que garante uma pluralidade de versões e uma competição que funciona.

Sul21: Aqui no Brasil, há alguns grandes grupos que acumulam concessões de rádio, televisão, jornais e portais de internet, entre outras plataformas de comunicação. Há algo parecido com isso na Alemanha?

Thomas Fischermann: Nós só temos uma empresa muito grande de mídia, a Berterlsmann, que tem uma família por trás, um pouco como ocorre aqui no Brasil. Eles são mais conservadores e de direita, mas mantem uma pluralidade em seus veículos de mídia eletrônica e impressa. Há outros três ou quatro grupos um pouco menores. Em alguns casos, esses grupos têm famílias por trás deles e, em outros, estão baseados na Bolsa. Alguns são mais de esquerda, outros são mais de direita. Até agora, acho que estamos conseguindo manter uma certa pluralidade. Existe uma legislação para evitar a formação de monopólios. Quando uma empresa quer comprar outra, por exemplo, esse processo passa por uma avaliação que visa manter a pluralidade.

Sul21: Você está no Brasil desde 2013, ano em que iniciaram grandes protestos de rua que abriram um processo de instabilidade que culminou na crise política que o país enfrenta agora. Essa crise vem sendo acompanhada por uma grande ofensiva conservadora, não só no Brasil, mas em vários países da América do Sul? Qual a sua avaliação sobre isso que está acontecendo?

Thomas Fischermann: Eu não sei se eu tenho uma versão completa sobre o que está acontecendo. Acompanhei muito a era Lula, mesmo antes da minha chegada aqui em 2013. Essa era deu uma certa esperança para o mundo, pois Lula representou um governo de uma esquerda bem razoável – e não de uma esquerda louca como vemos hoje na Venezuela – que proporcionou um grande progresso social e econômico no país. Infelizmente, o país quebrou, ainda na época da Dilma, e a economia deixou de funcionar. Agora temos esse governo quase interino e pouco legítimo que é resultado também desse processo econômico. Como na economia temos alternância de anos péssimos e anos bons, tenho certeza de que o Brasil vai crescer de novo e haverá espaço para uma política mais democrática.

Sul21: Junto com a crise econômica e o aumento do desemprego, nos últimos meses tivemos vários episódios de repressão violenta contra manifestações de rua e massacres de indígenas e camponeses. Como está acompanhando essa escalada de violência. Acredita que esses episódios representam riscos mais sérios para a democracia e os direitos humanos no Brasil?

“No Mato Grosso, fui ameaçado e recebi recados muito claros de “o gringo” precisava sair. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Thomas Fischermann: Esses massacres no campo não são propriamente uma coisa nova. No período do governo Dilma, eu fui muito para o interior do Brasil, para o Pará, norte de Mato Grosso e passei muito tempo com vários grupos indígenas no norte e também no sul do país. Nestes locais, muitas vezes, os direitos humanos não valem muito. Há áreas onde ainda impera o coronelismo. Eu fui ameaçado e recebi recados muito claros de que “o gringo tem que sair”.

Sul21: Em que região isso aconteceu?

Thomas Fischermann: No Mato Grosso. Após a publicação de minha reportagem, recebi comentários de fazendeiros alemães que não queriam saber de falar com alguém como eu, um “esquerdista louco”. Nunca fui um esquerdista louco. Eu participei da ocupação de uma fazenda por sem terras, para conhecer de perto aquela realidade. Ninguém vai entender esse processo que ocorre lá no interior sem participar dele. O processo que vivi lá foi bem violento e assustador.

Sul21: Qual sua opinião sobre o padrão de cobertura da mídia brasileira o que está acontecendo no país, especialmente de 2013 para cá?

Thomas Fischermann: A primeira observação que gostaria de fazer sobre isso é que não existe tal coisa como “a imprensa brasileira” ou “a mídia brasileira”. Mesmo dentro da rede Globo há jornalistas ótimos que fazem muita pesquisa sobre o que está acontecendo. O que vai ser publicado, ao final desse trabalho, é outro assunto. Às vezes, neste resultado final, não aparece o que eu acho que é mais perto da verdade. Já participei de vários eventos e o que acabou saindo no Globo não tinha nada a ver com aquilo que vi.

Sul21: Qual é a percepção e o interesse hoje do público alemão consumidor de notícias sobre o que está acontecendo no Brasil e em outros países da América do Sul?

Thomas Fischermann: Há ondas de interesse. Ele foi maior antes e durante a Copa e antes e durante as Olimpíadas. Agora estamos vivendo um período onde há um menor interesse. Neste momento, o que interessa mais aqui na região é a situação da Venezuela e um pouco também a de Cuba. Para um jornalista que trabalha com temas de longo prazo, isso é até bom. Eu adoro esses períodos quando posso viajar. Posso desaparecer por um período e ninguém vai perceber isso na Alemanha. Eu não estou tirando férias ou na praia, mas sim aprofundando minhas matérias, visitando pela terceira vez um índio que encontrei na região Norte do país para ficar um tempo com ele e com a família dele.

Sul21: O debate sobre a regulação do setor de comunicação ainda é um tabu no Brasil. Os empresários desse setor costumam rotular como tentativa de censura todas as iniciativas tomadas nesta direção. Também há um grande desconhecimento sobre o que é feito em outros países a respeito desse tema. A maioria dos países europeus tem mecanismos de regulação, inclusive de conteúdo em alguns casos. Qual sua opinião sobre esse tema?

“Acho que podem existir leis contra a formação de carteis, para garantir uma diversidade de posições”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Thomas Fischermann: Esse é um assunto difícil. Por um lado, é importante garantir a liberdade de expressão nas diferentes mídias. Hoje em dia, com a internet, redes sociais e tudo mais, é mais difícil controlar a informação. Na minha opinião, a regulação não pode significar alguém dizer o que pode e o que não pode ser publicado, observando alguns limites é claro. Por outro lado, o direito de resposta a uma matéria com erros ou inverdades é muito importante. Não tenho problema com uma lei que obrigue um jornal conceder direito de resposta. Também acho que podem existir leis contra a formação de carteis, para garantir uma diversidade de posições.

Temos outro assunto relacionado a esse tema hoje que são as fake news. Temos produtores de notícias que não são produtores de notícias, mas sim de mentiras. Eles utilizam essas mentiras com fins econômicos e políticos. É muito difícil controlar esse tipo de prática que tem precursores, como a propaganda e campanhas de desinformação feitas por serviços secretos de diversos países. Já se iniciaram guerras a partir disso. Hoje é um fenômeno de massa com três componentes básicos: novos produtores de mídia, novas formas de mídia e uma nova mentalidade entre os consumidores de mídia.

Hoje em dia é mais fácil acreditar em uma mentira. Ela entra em seu grupo de amigos no Facebook, onde todo mundo já compartilhava certo preconceito. E quando você quer acreditar em uma coisa é muito difícil não acreditar. É como o amor. Se você quer acreditar que a sua namorada é a guria mais linda do mundo, você vai acreditar nisso. Isso dá um certo prazer. Ler uma declaração que discorda do teu ponto de vista ou uma declaração de alguém que você não gosta provoca um certo desconforto. Mas, numa democracia, nós precisamos sair um pouco da nossa zona de conforto e entrar numa zona de desconforto para falar com os outros.

Sul21: O desenvolvimento de novas tecnologias e plataformas eletrônicas facilitou muito a produção de informações e conteúdos diversos, verdadeiros ou não. Mas, além da produção, há o tema da distribuição dessa informação. O Facebook, por exemplo, que é hoje um dos principais canais de distribuição de informação, vem operando cada vez mais com uma lógica privada onde quem paga mais tem maior distribuição. Na sua opinião, em que medida a proliferação dessa lógica privada pode dificultar a democratização do sistema de comunicação como um todo?

“Eu utilizo muito o Twitter que é hoje a minha principal fonte de informação”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Thomas Fischermann: Eu nunca acreditei muito no papel das grandes mídias como ampliadoras do acesso à informação. Pegando o caso do Brasil, vemos que grandes grupos como o Globo controlam o acesso à informação para a maioria das pessoas e, às vezes, utilizam esse controle para fins de propaganda. Eu utilizo muito o Twitter que é hoje a minha principal fonte de informação. O Twitter não me dá propriamente a informação, mas serve como canal para chegar até ela e me apresenta informações que podem me tirar um pouco da minha zona de conforto. O Facebook é um horror. Lá eu tenho o círculo dos meus amigos que querem compartilhar coisas que satisfaçam uns aos outros. Estamos em um processo de busca para encontrar um caminho para enfrentar essa situação, mas não quero retornar para tempos passados. No Brasil, tivemos casos recentes onde um juiz proibiu o funcionamento do Whatsapp por três dias.

Sul21: Considerando tudo o que está acontecendo agora, qual a sua visão sobre o futuro do Brasil?

Thomas Fischermann: Eu tenho formação em Economia e sou muito materialista neste tipo de análise. Na economia, temos anos péssimos e depois anos melhores. Na minha avaliação, o que está acontecendo no Brasil é um fenômeno fundamentalmente econômico. Tivemos uma crise econômica internacional, a redução do crescimento da China e a queda do preço das commoditties. Mas essa situação vai mudar e já há alguns sinais disso nos Estados Unidos e na China. O preço do petróleo e de outras matérias prima voltará a subir e isso favorecerá economicamente o Brasil. O que interessa mais saber é se essa retomada vai, pela segunda vez, ser acompanhada por progressos sociais. Isso foi o mais importante que ocorreu no Brasil. Houve um processo de crescimento econômico e também de intervenções sociais inovadoras.


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