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1 de abril de 2017
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17:43

Com moradores como atores, filme conta história de ocupação de antigo hotel de luxo em SP

Por
Luís Gomes
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Carmen Silva e José Dumont falam sobre o filme “Era O Hotel Cambridge” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Um hotel de luxo que virou uma ocupação popular no Centro de São Paulo. Este é o pano de fundo do filme “Era o Hotel Cambridge”, obra dirigida por Eliane Caffé que estreou na última quinta-feira (30) em Porto Alegre com uma sessão especial no CineBancários. Antes da estreia, o Sul21 conversou com os protagonistas José Dumont e Carmen Silva sobre a história desse tradicional hotel que acabou abandonado, ocupado por um movimento de luta por moradia, casa para famílias de refugiados e um filme que mistura atores profissionais e moradores vivendo eles próprios na telona.

O Hotel Cambridge | Foto: Divulgação

O hotel

O Hotel Cambridge foi inaugurado em 1951. Localizado na Av. Nove de Julho, no Centro de São Paulo, era um dos mais luxuosos e requintados da capital paulista nas décadas que seguiram sua inauguração, tendo hospedado personalidades nacionais e internacionais. Era famoso especialmente por seu bar, que tinha grandes painéis pintados pelo artista plástico Danilo Di Prete. Após passar por um período de decadência, foi reformado no início dos anos 1990, mas os anos de glamour já eram passado. Fechou as portas definitivamente em 2002. Em 2011, após acumular grandes dívidas, o hotel foi desapropriada pelo prefeitura e passou a pertencer à Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo.

A ocupação

Carmen Silva conta que a relação dos movimentos de luta por moradia com o hotel surgiu em 2004. Na época, o Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) – braço da Frente de Luta por Moradia (FLM), da qual ela faz parte – estava em meio a negociações com governos federal, estadual e municipal de São Paulo para discutir o reassentamento de famílias da antiga ocupação Prestes Maia.

“A gente saiu procurando prédio e se deparou com o Hotel Cambridge abandonado. Então, a gente procurou o proprietário para ver se ele tinha interesse em vender o prédio, em 2004”, diz.

A demanda acabou se resolvendo de outro forma, mas, em 2012, voltaria a estar na mira do MSTC. “A Prefeitura comprou o prédio, desapropriou e ele continuava abandonada, sem nenhuma função social. Nós resolvemos ocupá-lo, primeiro porque estávamos em um momento de desgoverno, pós eleição municipal, e também porque a gente sabia que havia outros movimentos, que não tinham história alguma com o prédio, querendo ocupá-lo. Nós tínhamos família na necessidade, já cadastradas no sistema de habitação, mas há muitos anos na espera. Então, a gente resolveu ocupar”, conta Carmem.

O Filme

A diretora Eliane Caffé originalmente queria fazer um filme sobre a vida de refugiados no Brasil quando trombou com a história da ocupação, que hoje é casa para cerca de 500 pessoas, muitas delas oriundas da África, do Oriente Médio, do Haiti e de países da América Latina. Ao descobrir, porém, que o local era palco de uma história de resistência, multicultural e também de promoção de múltiplas iniciativas artísticas, acabou optando por narrar a história da ocupação e como ela se organizou.

“A ocupação do Hotel Cambridge é uma ONU. Os refugiados a procuram, não os mecanismos de Estado”, conta o ator José Dumont, que vive Apolo no filme.

Dumont, aliás, é um dos raros atores profissionais a aparecer no filme. Veterano de dezenas de filmes e novelas, ele contracena com a também veterana da dramaturgia nacional Sueli Franco e dezenas de personagens reais, vividos pelos próprios moradores do hotel. Entre eles, a própria Carmem, uma das líderes da ocupação.

Mistura de ficção e realidade

O Apolo de Dumont é um dos poucos personagens que retratam pessoas que não existem. Na obra, ele interpreta uma pessoa responsável por fazer a coordenação das atividades culturais da ocupação. Carmen diz que, apesar de não ser fidedigno a ninguém real, é uma pessoas que “gostaríamos de ter”. Já os moradores, incluindo os refugiados, contam suas próprias histórias, com elementos de ficção.

“Mesmo a parte de ficção é a nossa vivência. Apesar da gente ser uma parte da sociedade que tem todas as mazelas, falta de moradia, falta de educação, saúde, falta de políticas públicas em geral, a gente vive brincando. Esse é o filme”, diz Carmen. Dumont, porém, explica de outra forma: “Na verdade é tudo ficção, porque o personagem da Carmem vivencia coisas que ela conhece na carne, mas não está vivendo naquele momento”.

O ator pontua ainda que os moradores da ocupação, entre eles Carmen, foram responsáveis por “dar o tom” do filme, levá-lo para um caminho que não era aquele que a própria diretora pretendia no início. “Com a Eliane, esse negócio de figurante não existe. No que botou a câmera em você, o protagonista é você. Pela experiência que a Carmen tem, acabou modificando muito o filme em cima do personagem dela. No começo, era mais divertido, mas ela foi vendo que o filme foi se adensando, que a realidade era maior, puxada pelo personagem dela”, diz o ator.

Veterano ator José Dumont contracenou com moradores no filme | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Acolhimento a refugiados

Apesar de Eliane ter mudado de foco, um dos destaques do filme ainda são os refugiados. Oriundos de diversos países, são advogados, engenheiros, professores que, por guerra ou desastres naturais, acabaram sendo obrigados a deixar seus países e acabaram no Brasil, onde não conseguiram encontrar uma moradia fixa antes de bater na porta da ocupação.

Carmen diz que refugiados procuram a ocupação e, historicamente, procuram movimentos sociais porque o Brasil, mesmo tendo firmado acordos com a ONU para receber refugiados do Haiti, por exemplo, não tem uma política para que eles possam ser introduzidos na sociedade de forma adequada.

“Até a entrada no País está tudo bem, mas como é que vai se manter por aqui? Aí procura os equipamentos públicos, que têm uma regra clara, é provisório, passageiro”, diz. “Essa falta de planejamento da entrada faz com que os movimentos sociais tenham o acolhimento que realmente eles esperam, porque como é que chega uma pessoa que não tem trabalho e moradia? Para nós, brasileiros, é difícil alugar uma casa, porque é tanta exigência, imagina quem chegou aqui e nem um CPF tem?”

Em vários momentos, os refugiados contam a própria história, como é o caso de um jovem que narra que, aos 13 anos, fugiu do Congo pela “roda de um avião”.

Importância do filme

Dumont destaca que o filme tem uma papel essencial por falar justamente sobre a exclusão causada pela falta de moradia e para ajudar a desmistificar o preconceito que existe contra movimentos de ocupação no Brasil. “Não tem como estabelecer uma visão futura de família sem que você entenda que tem uma moradia. Ninguém foi feito para viver embaixo de viaduto. Muitas vezes, a pessoa que tem preconceito é quem paga aluguel. Ele vive dentro dessa indústria da exploração. Não consegue amar e exclui o outro. E o filme fala sobre isso, sobre a exclusão”, diz.

Para Carmen, esse preconceito é oriundo da forma “tendenciosa” como a mídia retrata os movimentos. “A mídia presta um desserviço. Ela usa títulos sobre o movimento de moradia que abominam qualquer ser humano que está preocupado em trabalhar para sobreviver. Somos ‘vândalos, vagabundos, ladrões, irresponsáveis’. E não é verdade. Lutamos por nossos direitos, que hoje são privilégios de poucos, porque morar é um privilégio de poucos, ter casa própria nos bairros urbanizados é para poucos. Nós não queremos viver à margem da cidade, queremos pertencer à cidade”, diz. “Nós não queremos nada de ninguém. Só queremos a nossa parte. Enquanto direitos básicos forem vistos como privilégios, vai acontecer sempre essa controvérsia e vai haver movimentos, pessoas reagindo. Porque é a morte. A pessoa viver sem ter uma moradia fixa é a morte da alma”.

Eles também destacam que o filme tem o papel de mostrar que as pessoas da ocupação são capazes de organizar, não só para ter seu próprio espaço, mas também para organizar atividades e começar a ter acesso a coisas que antes pareciam distantes de suas realidades, como a arte. “O barato da história é que é mais organizado que o Brasil. As coisas funcionam”, diz Dumont. “Quando chegam lá dentro das ocupações organizadas, tem um choque, porque eles não imaginam”, acrescenta Carmen.

Carmen e Dumont concederam entrevista ao Sul21 na última quinta-feira | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ficha técnica

2016 / Brasil / Drama / 90 min
Direção: Eliane Caffé
Produção: Aurora Filmes
Coprodução: Tu Vas Voir
Distribuição: Vitrine Filmes

“Era o Hotel Cambridge” está em exibição no CineBancários, às 15h e às 19h30, e no Espaço Itaú 8, às 16h50 e às 18h30.


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