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13 de janeiro de 2017
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10:58

Ocupação Mirabal: Como funciona uma ocupação de mulheres para mulheres

Por
Sul 21
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Foto: Giovana Fleck/Sul21
Foto: Giovana Fleck/Sul21

Fernanda Canofre

Era um dia de dezembro de 2016, já depois das 19h, quando o Centro Pop, da Rua Voluntários da Pátria, no Centro de Porto Alegre, recebeu uma solicitação de atendimento para três mulheres e um homem, que carregavam com eles um bebê e um cachorro. O local, que atende pessoas em situação de rua, já havia passado do horário de expediente, mas ainda assim a assistente social Priscila Ferreira Lopes resolveu atendê-los. O grupo havia sido assaltado poucas horas antes na região. Perderam todos os pertences e documentos que tinham.

A única coisa deixada com a família foram as passagens de ônibus com destino a Florianópolis, com data de viagem para aquele mesmo dia. Sem documentos, quando eles tentaram embarcar com o bebê, foram barrados. Os cinco se viram então desabrigados e sem ter para onde ir em Porto Alegre. Acabaram batendo na porta do Centro que fica em uma das ruas mais movimentadas da região central da capital gaúcha para pedir ajuda.

Priscila conta que não sabia para onde encaminhar a família. Os abrigos municipais só recebem pessoas até às 18h30 – e quem fica no abrigo deve deixar o local até às 6h30 do dia seguinte. Tinha ainda a questão do cachorro, que uma das mulheres dizia que não poderia se separar dela, e normalmente não são aceitos em abrigos municipais. A assistente lembrou então de algo que havia ouvido várias usuárias do Centro Pop falando no último mês: a Ocupação Mirabal.

Em contato com as mulheres responsáveis pelo local, conseguiu lá um teto para as três mulheres, o bebê e o cachorro passarem a noite. O companheiro de uma delas que viajava junto foi encaminhado a um abrigo municipal em situação de urgência. “Acho que se teve uma acolhida, um olhar diferenciado [na Ocupação]. A rede [da Prefeitura] tem isso, mas às vezes depende de ter que marcar reuniões, horários, etc para encaminhar [o atendimento]. Essas são um pouco das dificuldades que a gente encontra”, conta Priscila.

Dificuldades criadas dentro do próprio sistema de atendimento, graças a burocratização da estrutura, que dentro da Mirabal não valem como regra. A ocupação que corre no boca a boca de mulheres em situações de vulnerabilidade social surgiu no último dia 25 de novembro. Na data que marca o aniversário do assassinato das irmãs Mirabal na República Dominicana, um grupo de cerca de 100 mulheres de Porto Alegre ocupou o imóvel na Rua Duque de Caxias, nº 380, onde antes funcionava o Lar Dom Bosco, dos Irmãos Salesianos. O objetivo, desde o início, era dar às mulheres vítimas de violência na capital um atendimento que o serviço público não disponibiliza.

“Na verdade, os serviços têm muitas restrições, eles criam barreiras muito grandes para o não acesso e nossa ideia é justamente ser um contraponto para o que a prefeitura e o estado vem oferecendo hoje. É ser um espaço de acolhimento, dentro das nossas possibilidades, mas ser um espaço de acolhimento”, explica Victória Chaves, de 21 anos, uma das ocupantes.

Casa onde funcionou o Lar Dom Bosco por mais de 20 anos foi ocupada no final de novembro | Foto: Giovana Fleck/Sul21

Um panfleto que é distribuído pelas mulheres da Ocupação afirma que, atualmente, Porto Alegre possui apenas uma casa abrigo para mulheres – com apenas 48 vagas – e um centro de referência. Só os dois “não conseguem suprir a demanda da população, para uma cidade com mais de 700 mil mulheres”. Depois de verem o Movimento de Mulheres Olga Benário de Belo Horizonte conseguir criar o Centro de Referência Tina Martins, a partir de uma ocupação no Dia Internacional da Mulher, o núcleo gaúcho do Olga começou a se articular para fazer a mesma coisa. Foram meses de planejamento para escolher o local a ser ocupado.

Passada a primeira semana de ocupação, assim que garantiram o espaço na Rua Duque de Caxias, a Mirabal abriu as portas para acolher mulheres tanto como lugar para ficar, quanto como espaço para debates políticos. As ocupantes calculam que nestes 47 dias de Ocupação cerca de 300 mulheres tenham passado pelo espaço. Das mulheres vítimas de violência doméstica e de gênero, que vieram em busca de acolhimento ali, a maioria eram negras, com mais de 25 anos.

O acolhimento no local ainda é transitório. Há mulheres que ficam ali por vários dias, por um dia ou mesmo um turno. Quem procura acolhimento na Mirabal deve preencher uma ficha de entrada e, se necessário, ser encaminhada a atendimento médico e psicológico. A ocupação, que tem 60 vagas, conta com uma rede própria de assistentes sociais, profissionais de saúde, psicólogas, professoras e educadoras sociais para auxiliar na atenção. Quem quiser levar pertences pessoais, filhos ou cachorros para a casa – coisas que costumam ser “confiscadas” em instituições municipais – ali é bem-vinda.

Mulheres ocupantes da Mirabal no primeiro dia da ocupação, no final de novembro de 2016 | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A Mirabal tem funcionado assim como um Centro de Referência. O modelo que gostaria de pressionar o poder público a criar. “A ideia é ser um centro de referência porque uma casa abrigo, por mais que fosse o essencial para que as mulheres pudessem ficar por mais tempo, é perigoso. Como [esse] é um local que está sendo divulgado, não é 100% seguro ter essas mulheres aqui. A ideia é pressionar para que o Estado olhe para a pauta das mulheres e possa transformar isso em um centro de referência mesmo”, explica Thainá Maria da Silva, estudante de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também ocupante.

Para levar o trabalho da ocupação e o aviso de que suas portas estão abertas, as mulheres da Mirabal têm se organizado em conversas em bairros da periferia de Porto Alegre. Ali, além de divulgar que mulheres em situação de violência, que precisem de ajuda, podem contar com um teto e comida na ocupação, elas também anunciam oficinas de geração de renda realizadas no local. “Muitas se animam porque estão desempregadas há muito tempo, precisam de alguma coisa que preencha a renda”, diz Thainá.

A própria ocupação tira uma parte do sustento de produtos feitos pelas ocupantes, além de doações feitas por apoiadores. Pães caseiros, bolos, sabonetes artesanais vendidos em feiras e brechós com roupas doadas são algumas das maneiras de angariar fundos para a manutenção da casa. As mulheres da ocupação se orgulham em dizer que conseguiram criar duas redes a partir dela: uma, de acolhimento, com profissionais voltados ao atendimento de quem busca abrigo com elas; a outra, de apoiadores , pessoas que chegam ali com ideias para atividades e doações.

Na página do Facebook, todos os dias, elas recebem mensagens de meninas de todos os cantos do Brasil perguntando sobre a ocupação e como elas se organizam. Há até uma visita agendada para os próximos dias de uma jovem interessada que as procurou no ano passado para levar a ideia para seu estado.

O prédio ocupado no final de novembro pelas mulheres da Mirabal pertence à Congregação dos Irmãos Salesianos. Por mais de 20 anos, eles mantiveram no edifício o Lar Dom Bosco, dedicado a atender meninos em situação de vulnerabilidade social. Nos últimos anos, as crianças não viviam no local, mas eram atendidas ali durante o dia. O público principal do Lar eram moradores da Vila Chocolatão, localizada próxima ao Tribunal de Justiça do RS. Quando a Vila foi removida e realocada para a Zona Norte da capital, o Lar perdeu “a demanda” e acabou paralisando os serviços.

No quadro de avisos, cartas de apoiadores e de mulheres que foram acolhidas na casa e agradecem o acolhimento | Foto: Giovana Fleck/Sul21

Segundo Marco Rippel, assessor da direção da Inspetoria Salesiana São Pio X, a Congregação optou por fechar o prédio enquanto pensava em “um novo redirecionamento”. A ideia trabalhada agora pela congregação é utilizar o espaço como Centro de Atendimento a Crianças e Adolescentes, com foco em justiça restaurativa. Ele diz ainda que o local não estava abandonado e que o prédio passou por reformas há pouco tempo.

Apesar de ter dado entrada no termo de reintegração de posse do imóvel dias antes da reunião marcada para dialogar com representantes da ocupação, Rippel diz que não houve “nenhum tipo de sensibilidade do outro lado” e que “não dá para entidades que realizam trabalho social ficarem brigando entre si”. A Congregação afirmou desde o princípio que não pretende transformar o impasse em uma questão de polícia, mas que o diálogo está rompido entre as duas partes.

“Não executamos [a reintegração] porque queríamos dialogar, quem quebrou o diálogo não fomos nós. Elas que não estão mais em conversação [conosco] desde o momento em que disseram que não iam sair. Então não há mais o que conversar”, declarou ele.

As ocupantes, no entanto, reiteram que estão “abertas para construir diálogo com os proprietários e o poder público”. Para elas, algumas atitudes tomadas pela Congregação “não condizem” com o discurso adotado. As mulheres da Mirabal contam que quando entraram no prédio encontraram o imóvel mobiliado, com eletrodomésticos em funcionamento, luz e água ligadas (as contas seguem sendo pagas pela Congregação) e os documentos das pessoas atendidas pelo Lar Dom Bosco em uma das salas. “O que na verdade, além de ser ilegal, é uma forma de descaso.  Tu atende alguém em um serviço, fecha o serviço e deixa os documentos das pessoas aqui, as histórias de vidas delas, fotos, tudo aqui”, nota Victória.

A Mirabal formou uma comissão jurídica para cuidar do caso e participar das reuniões. A previsão é de que o processo de reintegração volte a correr a partir do dia 20 de janeiro, depois do recesso do Judiciário.

Enquanto isso, a casa da Duque de Caxias segue tentando cumprir o papel de preencher a vaga de um serviço que não existia em Porto Alegre. Onde mulheres universitárias, mulheres em situação de rua, mulheres da periferia podem dialogar e compartilhar suas experiências. Uma ideia que elas esperam não deixar morrer tão cedo. “A gente planejou por muito tempo essa ocupação, firmamos um compromisso com as mulheres da cidade de Porto Alegre, de não deixar que nenhuma mulher mais morresse por falta de atendimento”, diz Thainá.


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