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31 de dezembro de 2016
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10:27

Parcelamentos, bombas de gás e pacotaço: o ano em que o Piratini jogou contra servidores

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Sul 21
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Parcelamentos, bombas de gás e pacotaço: o ano em que o Piratini jogou contra servidores
Parcelamentos, bombas de gás e pacotaço: o ano em que o Piratini jogou contra servidores
Na frente da Catedral, choque da Brigada jogou spray de pimenta em manifestantes e promoveu uma carga de cavalaria pela Duque de Caxias. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Na frente da Catedral, Choque da Brigada jogou spray de pimenta em manifestantes e promoveu uma carga de cavalaria pela Duque de Caxias.
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Fernanda Canofre

Dois mil e dezesseis não foi fácil de lado nenhum, para ninguém, não há como negar. Mas no Rio Grande do Sul, os ânimos que já estavam esquentados no primeiro ano do governo de José Ivo Sartori (PMDB), se acirraram de vez. De um lado, o governador e os problemas internos do Executivo – secretários pedindo demissão em meio à crise de pastas, defendendo “tiro, porrada e cacete” contra a oposição ou a legalização do Caixa 2 – de outro, servidores públicos lutando para conseguir fechar o mês com os parcelamentos constantes e receber salário normalmente. Os dois lados se encontrando nos protestos nas ruas da Capital, vigiados por helicópteros com custo de R$ 5 mil por hora de voo, em meio a bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e infiltração da Brigada Militar.

Foi o ano em que Sartori assumiu no seu plano de governo inspiração no passado de outros ocupantes do Palácio Piratini. O peemedebista ressuscitou as políticas de educação sem sucesso de Yeda Crusius (2006-2010) e trouxe de volta o espectro das privatizações de Antônio Britto (1994-1998). Num mar de contradições que marcaram as manchetes envolvendo o governador, ele foi de autor de ação contra a União pela dívida dos estados a lobista do governo Michel Temer (PMDB) para convencer deputados a aprovarem um dos pactos de recuperação fiscal mais “draconianos” já desenhados no país. Passou de deputado que votou a favor da lei que obriga a realização de plebiscitos para aprovar privatizações no Estado, para o primeiro governador a propor o fim da medida. Em um ano, Sartori deixou para trás o brinde desejando “vida longa à Fundação Piratini”, para ser o impulsionador do pacote que extinguiu 9 fundações gaúchas em menos de 24 horas.

Dentro da Assembleia, enquanto Silvana Covatti (PP) se tornava a primeira mulher a assumir a Presidência da Casa, o Parlamento gaúcho tocava o segundo pedido de cassação de sua história, menos de seis meses depois de cassar o mandato de Diógenes Basegio (PDT). No final do ano, Mario Jardel (PSD) perdeu a cadeira. Na votação mais extensa da AL-RS, acordo traído em votação e ameaça de fim de sistema que rege as presidências há 12 anos mostraram que a cisão do Executivo com o funcionalismo pode estar chegando ao ambiente de “cavalheiros” do Legislativo.

Dois mil e dezesseis não foi fácil em lado nenhum e parece que durou uma década no Rio Grande do Sul. Especialmente para os servidores estaduais.

27/06/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Coletiva do governador Sartori sobre a LDO. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Coletiva do governador Sartori sobre a LDO | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Congelador

Sartori já começou o ano rindo de uma piada feita com seus parcelamentos e o placar de 5X0 de um Gre-Nal vencido pelo Grêmio. Até fevereiro de 2016, o governo havia alternado alguns meses de pagamento de salários dos servidores em parcelas e outros na íntegra. Em seguida, porém, resolveu adotar a medida como política oficial de governo. O governador chegou a mostrar seu extrato bancário para provar que a medida também valia para ele. Ainda que em proporções bem distintas das parcelas recebidas por professores e policiais. Em 2016, os servidores estaduais receberam parcelado durante 10 meses consecutivos, em parcelas que variaram entre R$ 250 e R$ 810. Para fechar a conta, em dezembro, o governo anunciou que o 13º também viria em 12 parcelas.

Sartori assinou decretos congelando novas contratações, depois de ultrapassar os gastos, passou a anunciar que teria de exonerar servidores, deixou o Rio Grande como o estado que concedeu menor reajuste do salário regional, conseguiu aprovar na Assembleia o segundo congelamento da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) “inviabilizando reajuste dos servidores e investimentos em áreas essenciais, como saúde, educação e segurança”.

Na metade do ano, o Executivo teve sua primeira derrota em uma votação da Assembleia. Os deputados de oposição e parte da base aliada, incluindo parlamentares do partido do governador, garantiram votos para derrubar todos os vetos do governador aos projetos de reposição salarial dos servidores do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Tribunal de Contas do Estado. Três dias depois da votação, Sartori encaminhou comunicado à presidência da AL dizendo que não iria promulgar os reajustes.

Mesmo em regime de cortes, em setembro, o Ministério Público de Contas recomendou que as contas do primeiro ano de governo fossem rejeitadas pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE). Já o TCE recomendou aprovação do relatório na Assembleia Legislativa. Em agosto, o governador prorrogou por mais 180 dias decreto de contenção de gastos que havia assinado em janeiro.

Enquanto o governador celebrava suas ações, em um seminário para o governo, dizendo que “em um ano se fez pela modernização do Estado o que não se fez em 50”, a Justiça determinava o pagamento integral de salário a um servidor doente, de 100 anos de idade. Para representar as dificuldades enfrentadas, servidores passaram a organizar protestos de “pão com salsicha”.

19/05/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Escola Técnica Estadual Senador Ernesto Dornelles ocupada. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Escola Técnica Estadual Senador Ernesto Dornelles ocupada | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Ocupa Tudo

Com o governo em contenção de gastos, cortes de servidores e professores com salários parcelados, estudantes das escolas estaduais do Rio Grande do Sul acharam uma resposta ao governador: ocupar tudo. O Estado chegou a ter mais de 150 escolas ocupadas entre maio e junho. A primeira delas foi a Escola Estadual Emílio Massot, em Porto Alegre, no dia 11 de maio.

Os estudantes denunciaram a situação crítica dos edifícios com goteiras, poças d’água e buracos; os problemas com a merenda escolar, escassa e insuficiente; a falta de professores em diversos turnos e disciplinas; o sucateamento da educação como política de governo; apoiaram a greve de docentes; transformaram as escolas ocupadas em local de oficinas e debates e ainda restauraram muitas delas que se encontravam em condições precárias.

Enquanto o movimento crescia, o então secretário de educação, Carlos Eduardo Vieira da Cunha (PDT), estava em férias. Vieira retornou ao cargo, realizou uma reunião com estudantes, e deixou o governo para concorrer à Prefeitura de Porto Alegre. No lugar dele, o secretário adjunto da pasta, Luís Antônio Alcoba, assumiu e tentou avançar o debate com os secundaristas. Sartori, no entanto, não abriu agenda a eles.

Para pressionar o governador a recebê-los, os estudantes ocuparam a Assembleia Legislativa. O movimento então teve um racha: enquanto parte dos estudantes, ligados à União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes) aceitaram a proposta oferecida pelo líder do governo na AL, Gabriel Souza (PMDB), e encaminharam as desocupações em suas escolas; outra parte, não aceitou os termos e resolveu ocupar a Secretaria Estadual da Fazenda e virou um episódio a parte.

A ação de desocupação da Sefaz envolveu mais de 25 viaturas para retirar do prédio 40 estudantes e dois jornalistas. Os jornalistas e oito estudantes maiores de idade foram encaminhados ainda ao Presídio Central sob alegações como “corrupção de menores, dano qualificado ao patrimônio, associação criminosa”. A última vez que um jornalista havia sido preso durante atividade profissional no Rio Grande do Sul, havia ocorrido no governo de Pedro Simon, em 1987. Na época, o então governador chegou a se desculpar pelo fato. Agora, no entanto, o repórter do Jornal Já, Matheus Chaparini, apesar de ter se identificado como jornalista, ter vídeos provando que estava trabalhando na cobertura da ocupação, ainda responde a processo.

Os professores que fizeram greve tiveram os dias descontados pelo governo do Estado| Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Os professores que fizeram greve tiveram os dias descontados pelo governo do Estado| Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Professores partem para greve e ‘pedágio’

Junto com as ocupações dos secundaristas, professores estaduais também entraram em greve protestando contra o sucateamento da educação e os parcelamentos consecutivos de salários. Sartori chegou a dizer que os docentes estariam “usando os estudantes” das ocupações para fins políticos. Mesma época em que um professor chegou a ser preso em Três Cachoeiras acusado de “pregação ideológica”, na onda da proposta da Escola Sem Partido.

Sem avançar nas negociações com o governo, depois da quarta reunião, a categoria decidiu ocupar o Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF). No início de julho, após 53 dias, a greve chegou ao fim. Porém, mais de um mês depois, a categoria ainda cobrava do governo a resposta da homologação do calendário para recuperação de aulas.

A única “mobília” das celas são pedaços de papelão espalhados pelo chão que fazem às vezes de cama para os presos dormirem. (Foto: Caroline Ferraz/Sul21)
Presos mantidos em celas de delegacias, em Porto Alegre | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

 

Caos no sistema penitenciário…

A crise do sistema penitenciário, que já não era novidade no Estado, escalou ainda mais em 2016. A foto de um preso algemado a uma lixeira, em novembro, em frente ao Palácio da Polícia, em Porto Alegre, resumiu a situação arrastada pelo governo durante o ano inteiro. Desde fevereiro, servidores da Segurança já denunciavam a situação de superlotação nas celas de delegacias no Estado. Nos presídios, o crescimento da população carcerária bateu recorde histórico.

A própria Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) divulgou uma nota cobrando posicionamento do Executivo a respeito. Um grupo de juízes alertou o governador para “o caos”. Outras entidades, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ministério Público e outros também se uniram ao apelo, demonstrando “extrema preocupação” com a situação a que chegou o estado, com presídios entregues à facções.

O governo só esboçou uma solução para o projeto em novembro, quando o secretário de Segurança Pública, Cezar Schirmer (PMDB), declarou que o episódio do preso algemado na lixeira era “inaceitável” e anunciou projeto de instalar contêineres para abrigar presos provisórios. Mesma medida denunciada como “sub-humana” pela Pastoral Carcerária e em outros estados do Brasil que a adotaram.

08/09/2016 - PORTO ALEGRE, RS -Ato Público na Esquina Democrática lembrando os 3.945 mortos pela violência no RS desde o início do governo Sartori. Foto: Maia Rubim/Sul21
Ato Público lembrando os 3.945 mortos pela violência no RS desde o início do governo Sartori | Foto: Maia Rubim/Sul21

…caos na Segurança Pública

Na Segurança Pública, o ano que começou com o governador prometendo que “o crime não teria vida fácil” no Rio Grande do Sul chega ao fim com uma das mais profundas crises da história do Estado. Porto Alegre entrou no ranking das 10 cidades mais violentas do mundo. Casos de esquartejamento se tornaram frequente na Capital. No interior do Estado, a realidade virou a falta de policiamento. Um latrocínio ocorrido em frente a uma escola, em agosto, acabou derrubando o então secretário de Segurança, Wantuir Jacini.

Pressionados por salários parcelados, concursos atrasados e promoções congeladas, os próprios servidores da Segurança se organizaram em uma série de protestos durante o ano. Entre brigadianos e policiais civis, os pedidos de aposentadoria bateram outro recorde. Algumas operações chegaram a ser suspensas no Estado até que os salários voltassem a ser pagos.

Se de um lado os policiais colocavam a culpa no governador e sua política de cortes, de outro, Sartori se eximia da responsabilidade alegando que “não havia criado a violência de hoje”. Com o menor efetivo da história da Brigada Militar, o governador teve de apelar para a Força Nacional para tentar atacar alguns dos problemas no Estado.

Com a saída de Jacini, a pasta da Segurança acabou passando para as mãos do ex-prefeito de Santa Maria e amigo pessoal do governador, Cezar Schirmer. A nomeação foi repudiada por familiares das vítimas do incêndio na boate Kiss. O novo secretário tomou posse dizendo que “é na escassez que se revela um gênio” e assumiu que “não conhecia os números” da violência no Estado.

A contradição do ano foi que sem efetivo suficiente nas ruas, o Estado garantiu viaturas, policiais, cavalaria em peso em todos os protestos contra os governos de Sartori e de Michel Temer (PMDB).

19/12/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Dia de votação do pacote do governo Sartori na Assembleia. Do lado de fora, repressão,confrontos e bombas de gás lacrimogêneo. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Primeiro dia de votação do pacote do governo Sartori na Assembleia | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Pacotaço

Em novembro, as ações do governo que vinham sendo costuradas durante o ano culminaram na apresentação do pacote para enfrentar a crise financeira. Citando Margaret Thatcher, Sartori anunciou medidas como a extinção de nove fundações, uma empresa e uma autarquia, o 13º parcelado por dois anos, alteração da data base do pagamento de salários, fim da obrigatoriedade do plebiscito para realização de privatizações e assumindo a política de privatização, encaminhando nela a CEEE, Sulgás e CRM. Um dia depois de anunciar o pacote, ele decretou situação de calamidade financeira no Estado.

Com a Assembleia Legislativa cercada pelo Batalhão de Choque da Brigada Militar, policiamento dentro do Legislativo, acesso restrito e controlado, confronto diário com servidores públicos, sessões que entraram na madrugada por quatro dias consecutivos, o governo conseguiu votar metade de suas 25 medidas e aprovar as extinções que deixam 1.200 desempregados no Estado.

No final da tarde, um helicóptero da Brigada sobrevoou a Praça da Matriz em círculos, a baixa altura, com um policial em pé junto à porta do aparelho com uma arma apontada para os manifestantes. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Helicóptero da Brigada sobrevoou a Praça da Matriz em círculos, a baixa altura, com um policial de arma apontada para os manifestantes | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O forte aparato policial mobilizado para sitiar a Praça da Matriz foi motivo de várias denúncias, por parte de deputados em Plenário. Além do gás lacrimogêneo, os policiais utilizaram balas de borracha, spray de pimenta e, no quarto dia de votação, um helicóptero com policiais armados, apontando para os manifestantes. Nas redes sociais, imagens mostravam policiais disparando e circulando dentro do prédio do Legislativo. A Presidência da Casa demorou a mostrar o documento que autorizava a presença da Brigada. Na quinta-feira (22), o único documento assinado pela Mesa Diretora tinha data do dia 20. Um dia depois de a BM já estar dentro do espaço do Legislativo.

Do lado de dentro da AL, com o apoio de federações empresariais e de uma pesquisa questionável, gastando em propaganda o equivalente ao orçamento de pelo menos uma das fundações, a primeira parte do pacote de Sartori – que recuou na votação de PECs depois do líder do governo, Gabriel Souza (PMDB), reconhecer que não teria votos suficientes para aprová-la – teve apenas uma derrota. Sob pressão do Judiciário estadual, do Ministério Público e da Defensoria Pública, a única medida rejeitada na AL foi a PEC do duodécimo, que previa alterações no critério de repasse dos recursos orçamentários ao Judiciário, MP, Defensoria e Legislativo, deixando repasses sujeitos à receita arrecadada.

Gabriel Souza já prometeu que o governo quer retomar as votações ainda em janeiro de 2017. Pelas previsões, antes que Silvana Covatti (PP) entregue a cadeira da presidência da Assembleia a Edegar Pretto (PT), de acordo com o acordo entre bancadas que existe há 12 anos na AL. Se 2016 foi ano de cortes, 2017 já começa apertando os cintos.


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