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19 de novembro de 2016
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10:32

Fonte de renda para 500 famílias, produção sustentável está ameaçada por mineradora

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Sul 21
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A criação de ovelhas é dos destaques da região e a carne de cordeiro é carro-chefe da marca Alto Camaquã |Foto: Site Alto Camaquã
A criação de ovelhas é um dos destaques da região, e a carne de cordeiro é  o carro-chefe da marca Alto Camaquã |Foto: Site Alto Camaquã

Jaqueline Silveira

Os habitantes da região do Alto Camaquã viram, a partir de 2009, suas vidas se transformarem com a implantação de um projeto de desenvolvimento regional com enfoque territorial. O pedaço de chão mais preservado do Bioma Pampa do Rio Grande do Sul e de uma beleza peculiar, mas até então considerado atrasado e pobre, se descobriu singularmente fértil. Com o auxílio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o potencial natural da região foi usado a favor da própria comunidade e hoje os produtos são comercializados com a marca Alto Camaquã, sinônimo de qualidade e sustentabilidade. Esse trabalho consolidado e fonte de sustento e renda para 500 famílias, entretanto, está ameaçado pela possibilidade de instalação de uma mineradora pela Votorantim Metais e pela canadense Iamgold Brasil na Vila de Minas do Camaquã, a cerca de 90 quilômetros de Caçapava do Sul, Região Central, e nos limites com os municípios de Bagé, Pinheiro Machado e Santana da Boa Vista.

As extensas paisagens naturais da Serra do Sudeste são propícios para a pecuária familiar. A carne de qualidade produzida na região é comercialiazada nos municípios ||Foto: Site Alto Camaquã
As extensas pastagens naturais da Serra do Sudeste são propícias para a pecuária familiar. A carne de qualidade produzida na região é comercialiazada nos municípios | Foto: Site Alto Camaquã

Há nove anos, quando iniciou o trabalho diretamente com os produtores através da Embrapa, a Serra do Sudeste era considerada a região mais atrasada do Estado tanto do ponto de vista tecnológico e econômico quanto em termos de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), relembra o médico veterinário e pesquisador Marcos Borba. A reversão desse quadro negativo, entretanto, não precisou de nenhuma fórmula mágica, muito menos a instalação de um grande empreendimento. Bastou voltar os olhos para as potencialidades do lugar: áreas extensas de pastagens naturais, paisagens exuberantes e água em abundância, que corria do Rio Camaquã, um dos mais limpos do Estado. “Em função das condições ambientais peculiares, com muitas árvores, solos rasos e pedras, o denominado mosaico de campos e florestas, foi impossível mecanizar essa região”, explica ele, sobre as dificuldades para a atividade agrícola.

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Mas o salto no desenvolvimento do Alto Camaquã não ocorreu da noite para o dia. O trabalho, conforme Borba, foi construído gradativamente com os moradores, a partir, por exemplo, da abordagem sobre as estratégias de uso das potencialidades, prática de manejos, sistema produtivo, conservação dos recursos, entre outros aspectos. No início, recorda o pesquisador, os próprios moradores reagiam com desconfiança à ideia de as potencialidades que tinham à disposição se transformarem em fonte de renda.

A região também investe da criação de caprinos| Foto: Site Alto do Camaquã
A região também investe da criação de caprinos | Foto: Site Alto do Camaquã

“A gente tem um trabalho de valorização da região. Através da Embrapa, os pesquisadores mostraram um novo olhar para a região, que tinha uma imagem atrasada”, conta o presidente da Associação para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Camaquã (ADAC), Matheus Garcia, sobre o resultado do trabalho dos técnicos com a comunidade. “Na região, temos um modo de vida e de produção extremamente sustentável, um potencial diferenciado”, completa Borba.

Marca coletiva

Hoje, a Serra do Sudeste abriga o primeiro Arranjo Produtivo Local de Ovinos e Turismo (APL) do Estado e um dos mais importantes do país. O APL é, inclusive, reconhecido pelo governo do Estado, que já destinou recursos, por meio da Agência Gaúcha de Desenvolvimento e Produção do Investimento (AGDI), no valor de R$ 150 mil. O arranjo local, que é o primeiro de Ovinos do país, também recebeu apoio financeiro da Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica (CGTEE), e a ADAC trabalha para captar mais verbas, via edital da AGDI, que podem chegar até R$ 900 mil. Além disso, a Embrapa, calcula Borba, já teria investido na região cerca de R$ 10 milhões, entre verbas e recursos humanos.

A ADAC é responsável pela organização social das famílias e comercialização dos produtos. Constituída por 25 associações comunitárias de oito municípios – Bagé, Caçapava do Sul, Lavras do Sul, Santana da Boa Vista, Encruzilhada do Sul, Pinheiro Machado, Piratini e Canguçu -, a ADAC criou a Rede de Produtores e Empreendedores do Alto Camaquã e administra a marca coletiva Alto Camaquã. São cerca de 30 produtos comercializados com o selo de qualidade e sustentabilidade da região. O carro-chefe da marca é a carne de cordeiro. Mas a carne de bovinos e caprinos também tem um mercado consolidado.

Os doces produzidos na região também estão associados à marca Alto Camaquã|Foto: Site Alto Camaquã
Os doces produzidos na região também estão associados à marca Alto Camaquã|Foto: Site Alto Camaquã

A ADAC tem parcerias em nível municipal para a comercialização de seus produtos e já trabalha para expandir a venda em frigoríficos, como Alegrete, região oeste do Rio Grande do Sul. “Hoje, a pecuária sustentável é tida como uma verdadeira poupança para as famílias”, destaca o presidente da ADAC, que também é coordenador do Arranjo Local de Ovinos e Turismo. Há 200 anos, conforme Garcia, os moradores trabalham com a pecuária familiar extensiva em harmonia com o meio ambiente.

Além das carnes, a lã, o artesanato, os doces, o mel, o famoso bolinho de amendoim estão associados à marca Alto Camaquã e têm o reconhecimento do mercado pela sua origem. Sem falar no turismo. O território das Guaritas, justamente onde a mineradora pretende se instalar, foi eleito, pela Secretaria de Turismo do Estado, uma das Sete Maravilhas do RS, e as belas paisagens da região já serviram de cenário para inúmeros filmes e minisséries.

Frente e abaixo-assinado

Preocupados com a ameaça à preservação e à produção sustentável da região, moradores, produtores, ambientalistas e lideranças sociais e políticas se mobilizam. Eles, inclusive, criaram a Frente de Autodefesa do Camaquã e prometem fazer frente à Votorantim nas audiências nos dias 22, 23 e 24 em Santana da Boa Vista, Bagé e Pinheiro Machado, respectivamente, e barrar o empreendimento. Também organizaram um abaixo-assinado virtual, que já conta com a adesão de três mil assinaturas. A mineradora pretende extrair 36 mil toneladas de chumbo, 16 mil toneladas de zinco e cinco mil toneladas de cobre por ano.

As empresas vendem o “Projeto Caçapava do Sul” pelo enfoque da geração de emprego e argumentam que o empreendimento é sustentável e não oferece nenhum risco para o meio ambiente. “A preocupação é total, é uma ameaça ao setor produtivo, conquistamos um espaço com muito esforço”, comenta Marcos Sanchez Blanco, vice-presidente da ADAC e gestor do Arranjo Produtivo Local de Ovinos e Turismo. Devido à rede construída, segundo ele, é possível viabilizar uma produção de baixo custo e chegar ao mercado. O trabalho consolidado também ajudou a agregar mais parceiros. Além da Embrapa, a Emater e diversas universidades dão suporte aos produtores.

Por ter acompanhado e ajudado a construir o trabalho hoje consolidado no Alto Camaquã, Marcos Borba está engajado pessoalmente, enquanto pesquisador, na luta dos moradores e comunidades. “Essa região produz água, carne, essa região dá uma contribuição à sociedade que sequer a sociedade percebe”, observa ele, enfatizando que, além da pecuária, a área, de um milhão de hectares, abriga uma das maiores plantações de arroz. “Hoje, não estamos vendendo um produto, mas um conceito. É um prejuízo incomensurável”, argumenta ele.

Não há compensação com empregos

O empreendimento tem previsão da geração de 450 empregos num período entre 15 e 20 anos. Os metais serão extraídos na região e levados para Minas Gerais em estado bruto. O destino final, entretanto, será o Exterior. “Para um emprego gerado, serão destruídos cinco”, afirma Borba. Com a contaminação do solo e, por consequência, a desvalorização da marca Alto Camaquã, o pesquisador calcula que a mineradora desempregaria de duas a três mil pessoas, número correspondente as 500 famílias envolvidas no projeto de desenvolvimento regional. “Nós estamos na iminência de trocar o desenvolvimento por uma ideia de subdesenvolvimento”, alerta ele.

A mineradora pretende se instalar nas Guaritas, em Caçapava do Sul. A localidade foi considerado pela Secretaria Estadual de Turismo umas das sete maravilhas do Estado|Foto: Site Alto Camaquã
A mineradora pretende se instalar no território das Guaritas, em Caçapava do Sul. O local  foi considerado pela Secretaria Estadual de Turismo umas das Sete Maravilhas do Estado|Foto: Site Alto Camaquã

A arrecadação exclusiva para Caçapava do Sul com o empreendimento, de acordo com o presidente da ADAC, representará 1% do seu PIB (Produto Interno Bruto). O município, aliás, tem a menor porcentagem de sua área (menos de um terço) na Bacia Hidrográfica do Rio Camaquã, ao contrário das cidades vizinhas e ribeirinhas ao rio, que devem ficar só com os prejuízos. “Vamos gerar renda e riqueza para quem? O chumbo agrava qualquer tipo de enfermidade. Quais são os benefícios? O retorno é mínimo para o município”, sustenta Garcia, que também é presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pinheiro Machado. Os frigoríficos, de acordo com ele, rejeitam a compra de carne produzida num raio entre 30 a 60 quilômetros da área de mineradoras.

Na mesma linha, Borba frisa que “não é ético” Caçapava do Sul prejudicar os demais municípios, e que é legítimo a população se levantar contra a mineradora. Não se trata, avalia o pesquisador, de defender “apenas” a paisagem, a natureza, a saúde, mas de defender a evolução histórica construída na região. “A população vai até as últimas consequências. Os malefícios serão potencializados, e os lucros socializados pela empresa”, adverte o médico veterinário.

Confira mais fotos da produção e paisagem da região:

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Foto: Site Alto Camaquã
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