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10 de setembro de 2016
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11:50

‘Vai ter trans no cinema’: Trabalho universitário, curta ‘Ingrid’ conquista espaço em Gramado

Por
Luís Gomes
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30/08/2016 - GRAMADO - RS, 44 Festival de Cinema de Gramado. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Ingrid Leão é a protagonista do filme que leva o seu nome | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

“Ingrid é o meu nome, a minha história, só que hoje carrega o peso de uma minoria, carrega o problema social e humanitário que existe para a população trans no Brasil. Eu estou muito feliz que, de certa forma, a gente está tendo a visibilidade dessa certa forma. Ver o nome Ingrid dessa forma com essa projeção, me deixa muito honrada. O nosso nome é a nossa identidade”.

A atriz Ingrid Leão, 28 anos, é a protagonista do documentário “Ingrid”, que participou da mostra competitiva do 44º Festival de Cinema de Gramado, um feito e tanto para um filme universitário que aborda um universo ainda cercado de preconceitos no Brasil, a população transexual.

Quando o filme foi exibido em Gramado, no dia 29 de agosto, Ingrid subiu ao palco do festival e fez uma fala política em defesa dos direitos da população trans. “Tá na hora da sociedade acordar e realmente se preocupar com aquilo que é ‘preocupável’. Tem que dar oportunidade sim para a população trans, porque nós somos capazes de exercer profissões como qualquer outra pessoa”, afirma. “A perspectiva de vida da população trans no Brasil é de apenas 35 anos. Se for seguir essa teoria, só me restam sete anos. Eu não quero isso”.

Uma das causas para essa baixa perspectiva de vida é a violência e a intolerância com as quais esta população convive diariamente. Jackson Dias, produtor do filme, lembra que o Brasil é o país que mais mata a população LGBT. “Não é uma facada, são 10. Não é um tiro, são 20. É um crime de ódio, que explica essa opressão”.

Ingrid diz que a violência, verbal e física, faz parte da sua vida. “Violência verbal sofro praticamente todos os dias. Já sofri uma violência física há um tempo e hoje eu fico pensando em quais lugares eu entro, porque o ódio é uma coisa incontrolável”, diz. “Hoje o Brasil está numa intolerância política, vejo pessoas desfazendo amizades por discordar de partidos, mas a gente já convive com essa intolerância desde quando nos entendemos por gente. Você ser taxado como prostituta, marginal, o câncer da sociedade. Isso é triste. Não que ser prostituta seja um problema. Ser prostituta é uma opção, ser transexual não”.

Dentro desse quadro de intolerância, ela considera a exibição do filme em Gramado um “cala-boca” para políticos conservadores contrários a direitos da população LGBT. “Vai ter trans no cinema sim”, diz. “Espero que, com o ‘Ingrid’, as pessoas comecem a ver o outro lado”.

30/08/2016 - GRAMADO - RS, 44 Festival de Cinema de Gramado. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Filme participou da mostra competitiva de curtas brasileiros em Gramado | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Valorização da população trans

Uma das valorizações que Ingrid espera é a profissional. A atriz afirma que um dos maiores desafios enfrentados pela população trans no Brasil é a falta de oportunidade e diz conhecer diversas transexuais com ensino superior completo que não têm oportunidades em suas áreas. Ela própria cursou a faculdade de Química. “Meu sonho era trabalhar em plataforma petroquímica, mas eu vi que não dá. É dar murro em ponta de faca o tempo todo”, diz.

A falta de oportunidades faz com que muitas mulheres trans encontrem na prostituição a única forma de ganhar a vida. Segundo estimativa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 90% das travestis e transexuais estão se prostituindo no Brasil.

Para Ingrid, este quadro reflete a estigmatização dessa população na mídia e na sociedade. “Há uns anos atrás, um grande shopping se instalou na minha cidade e estava recrutando pessoas. Eu resolvi mandar meu currículo. Fui selecionada para fazer entrevista. Chegando lá, um dos diretores do grupo virou para mim e disse: ‘seu currículo é muito bom, mas…’ Aí eu já agradeci e saí. Passou uns dias, o meu telefone toca e era o cara me perguntando se eu queria sair com ele. Lógico que eu falei poucas e boas para ele. Mas me fez pensar que não adianta você tentar ser, tentar mostrar, porque para sociedade, o que a mídia sempre colocou é que toda travesti é prostituta”, argumenta.

Ela ainda afirma que ser prostituta não é um problema, muitas vezes trata-se de uma opção, mas não para todas. “Ser prostituta é uma opção, mas às vezes é a falta de opção que leva a pessoa à prostituição. Nós precisamos sobreviver. É triste ouvir ‘seu currículo é ótimo, mas…’Para satisfazer os desejos oprimidos de uma pessoa a gente serve, mas para estar ali na frente da empresa nós não servimos”.

30/08/2016 - GRAMADO - RS, 44 Festival de Cinema de Gramado. Foto: Guilherme Santos/Sul21
Maick Hannder, diretor do curta |Foto: Guilherme Santos/Sul21

As transformações de Ingrid

Diretor do filme, o estudante universitário Maick Hannder conta que originalmente sua ideia era fazer um documentário sobre quatro pessoas e a relação delas com a própria aparência. Apenas uma pessoa seria trans. No entanto, após conversar com Ingrid, acabou optando por fazer o filme só com ela. “O filme mostra as transformações que ocorreram no corpo dela desde que era criança até hoje”, diz.

Ele também conta que sua ideia era fazer um filme “bem intimista”, por isso entregou um gravador para Ingrid para que ela mesma, sem roteiros, contasse ao público sobre essas transformações. “Foi algo muito rico, porque sempre surgiam coisas novas. Eu sempre me surpreendia com as falas dela”.

Ingrid diz que sempre se reconheceu como menina, mas que, ao crescer, precisou enfrentar grandes conflitos internos e contra sua própria biologia. “Era confuso, não entendia bem as coisas, mas sempre gostei de coisas consideradas como de menina. Tive momentos traumáticos, os quais eu não tinha proporção do que iria me causar futuramente. Mas, se eu não fosse o que eu sou hoje, eu já teria morrido há muito tempo, porque é uma coisa psicológica muito forte. Só quem vive sabe”, diz. “Você vir transexual nesse universo é pagar os pecados de outras vidas. Luta contra a sociedade, luta contra a natureza. É você vir para lutar. Mas, ao mesmo tempo, eu penso, qual  seria o gostinho da vitória se não houvesse a luta?”.

Inicialmente produzido como um trabalho de faculdade, Maick diz que o filme começou a ganhar aspirações maiores depois que professores disseram que ele deveria ser exibido em festivais. “A gente esperava que fosse passar em festivais LGBT e experimentais”, diz. “Tínhamos a meta de passar no Mix Brasil, por ser o festival LGBT  mais importante do Brasil e o segundo do mundo. Se passasse no Mix Brasil, a gente estava realizado. De repente, ele passa em Gramado”.

Jackson Dias afirma que eles enviaram o filme para Gramado apenas porque “tinha que mandar”. “Quando passou, ficamos muito felizes porque ele vai atingir um público que a gente não atingiria normalmente”, diz.

“Ingrid” deve continuar sendo exibido em festivais de cinema pelo Brasil e no mundo (já foi exibido na Colômbia e na Alemanha) em 2016. Para o ano que vem, a ideia dos produtores é divulgá-lo em cine clubes e, posteriormente, na internet.

Confira o teaser do filme:


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