Luís Eduardo Gomes
Realizado por iniciativa das deputadas estaduais Stela Farias (PT) e Manuela D’Ávila (PCdoB), o seminário Escola Sem Mordaça debateu na manhã desta sexta-feira (12), no Plenarinho da Assembleia Legislativa, o Projeto de Lei 190, de autoria do deputado Marcel Van Hattem (PP), conhecido como “Escola Sem Partido”. Com a presença de dezenas de estudantes que participaram do movimento de ocupações em escolas públicas na plateia, os palestrantes defenderam o arquivamento do projeto – em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) – e afirmaram que seus apoiadores são aqueles que realmente defenderiam que a escola deva ser local de ensino de uma ideologia única.
Segundo Stela Farias, projetos como a Escola Sem Partido têm dois eixos: a imposição de uma ideologia única ultraconservadora, com a criminalização de professores que emitam opiniões divergentes em sala de aula, e o interesse de grandes grupos na privatização de segmentos do mercado educacional, como o de apostilas. “Esse mercado está em aberto e articula grupos poderosos dentro do Brasil, como o grupo Anhanguera e Abril. Óbvio que isso ainda não aparece, mas nós estamos convencidos disso porque estamos acompanhado inclusive as doações de campanha de deputados federais que apresentaram projetos semelhantes e receberam de grupos como esses”, diz a deputada.
A parlamentar ponderou ainda que o projeto está sendo divulgado como “escola sem partido” para criar confusão e esconder os seus objetivos. “Em tempos em que há uma criminalização da classe política, em geral, feita ao longo de uma década pelo menos, obviamente quando se diz escola sem partido isso seduz. Mas nenhum de nós defende escola com partido. A questão é mostrar que há um esforço de uma ideologia de direita que quer amordaçar a fala dos educadores”, afirma.
Ao abrir o seminário, Manuela D’Ávila afirmou que a escola brasileira “tem partido há muito tempo”, uma vez que conta a história do país a partir dos feitos de homens brancos, relegando a um papel minoritário ou ao esquecimento mulheres, negros e índios. “Historicamente, estudamos a participação de alemães e italianos na história do RS, e é corretor estudar isso, mas, quando incluímos o ensino de história africana, eles pedem escola sem partido”, disse.
A deputada ainda lamentou que a educação pública esteja num momento de ataques pouco tempo depois de, a duras penas, ter conseguido alguns avanços. “Há alguns dias debatíamos 10% do PIB para a educação, agora debatemos escola sem mordaça e a terceirização das escolas”, disse.
Convidada a falar sobre o lado jurídico do projeto, a professora do Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Roberta Baggio expôs o caráter inconstitucional do PL 190. Ela ponderou, por exemplo, que não é de competência do governo estadual decidir sobre as diretrizes da educação, mas sim da União. Da mesma forma, o Estado não teria autoridade sobre universidades e escolas particulares. Salientou também que a liberdade de ensino faz parte de tratados e convenções internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil e que não podem ser revogados ou contrariados em âmbito do legislativo estadual.
Baggio afirmou que, quando ouviu sobre o projeto pela primeira vez, pensou que se tratasse de uma “bobagem”, mas disse reconhecê-lo agora como um “perigo iminente”.
Ela ainda demonstrou preocupação com a possibilidade de professores passarem a ser perseguidos em sala de aula caso o projeto seja aprovado e do estabelecimento de uma espécie de “disque-denúncia”. “Todos esses projetos têm uma previsão de que as secretarias de educação vão poder receber denúncias contras os professores que estão tendo uma postura ideológica dentro da sala de aula. Então, bem, qualquer divergência que eu tenho em relação a um professor, eu levanto o telefone, faço uma denúncia e esse professor então passa a receber notificação e a ser investigado. Abre a porta para que o professor vá para a sala de aula com medo do que vai dizer”, disse.
Baggio ponderou que o projeto sequer tem “ideologia liberal”, como apregoa o deputado Van Hattem, uma vez que o liberalismo clássico defenderia o livre debate de ideias, mas que faz parte de um pensamento da elite brasileira de que “o ideológico é só o de esquerda” e que a sua própria ideologia seria neutra.
O professor de Políticas Públicas Salomão Ximenes, da Universidade Federal do ABC Paulista (Ufabc), afirmou que a escola pública vive um momento de cerco e que está enfrentando quatro grandes ameaças: cortes de recursos públicos, movimentos de privatização – em especial da cessão da administração das escolas para Organizações Sociais (OSs), controle ideológico e militarização, citando o fato de que estados como Goiás e Piauí entregaram o controle de escolas públicas para estruturas militares.
Segundo ele, apesar de o debate sobre a Escola Sem Partido também poder ser considerado como uma cortina de fumaça para questões mais graves, como o corte de recursos e a privatização, ele também está inserido nesse mesmo contexto. “Implementar uma escola como essa traz também um conjunto de temas ocultos. Caminha de braços dados com a privatização e a destruição da carreira do professor”, diz Ximenes. Segundo ele, os projetos tratam os professores como criminosos porque sabem que precisarão passar por cima da resistência deles para serem implementados.
Professor de história e colunista do Jornal do Brasil, Walmyr Junior disse que a perseguição a professores já existe. Ele conta que foi demitido de uma escola privada no Rio de Janeiro após fazer uma comparação entre os Girondinos, que representavam a alta burguesia no tempo da Revolução Francesa, com os “batedores de panela” contra a presidenta Dilma Rousseff e que isso teria incomodado uma aluna.
Fabíola Loguercio, diretora de comunicação da União Brasileiro dos Estudantes Secundaristas (Ubes), salientou que os estudantes já ocuparam mais de 600 escolas pelo Brasil porque querem uma escola diferente, que seja mais democrática e os ensine a entender o lugar deles no mundo, não apenas a “copiar e colar”. “A gente quer que a escola fale sobre a gente. A fórmula de Bháskara não nos basta se a gente não puder usá-la para entender o nosso lugar na sociedade”, disse.
Ela salientou que apesar de os estudantes terem vivenciado uma “primavera secundarista” com as ocupações, projetos como esse demonstram que vivem diante de um “inverno conservador”.
A vereadora de Porto Alegre Jussara Cony (PCdoB) entregou às deputadas Stella e Manuela uma cópia do projeto Escola Sem Mordaça, que vai apresentar na Câmara como oposição ao Escola Sem Partido, de autoria do vereador Valter Nagelstein (PMDB).
O estudante William Santana, da escola Dom Diogo, de Alvorada, lembrou também que o projeto visa também impedir a discussão de gênero e que visões religiosas preconceituosas contra a população LGBT, por exemplo, possam ser desestimuladas. “Se eu não tivesse tido um professor de História no Fundamental que me disse que não tinha problemas em eu ser negro e gay, talvez eu já tivesse me matado, porque eu pensei nisso”, afirmou. Na sua visão, a Escola Sem Partido quer que o aluno que reprime um colega gay com a justificativa da religião não possa ser criticado por um professor.
Lucas Maróstica, da União da Juventude Socialista, ironizou o fato de que políticos conservadores se posicionam contra o que chamam de “ideologia de gênero” porque o ensino sobre a diversidade de gênero na escola supostamente levaria ao aumento do número de homossexuais. “Eu estudei numa escola de freiras no interior do RS e nem por isso deixei de ser gay”, disse.
Segundo a deputada Manuela D’Ávila, a intenção de promover o seminário foi mostrar que são os opositores ao PL 190 que defendem uma escola realmente livre. “Queremos escolas livres para os nossos estudantes e professores lutarem por aquilo que realmente importa: o fim do toque de recolher, a merenda que não seja a base d’água, a qualidade no ensino, a reposição de professoras e professores, a qualidade do material didático, a qualidade das estruturas da escola. Para isso acontecer, a escola tem que ser livre. A escola que os setores ultraconservadores defendem é uma escola sem luta pela educação pública. Eles querem um ambiente sem disposição para luta para que as escolas possam ser privatizadas como, afinal de contas, o governador Sartori já defende”, disse.
