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29 de janeiro de 2016
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09:43

“Há várias regiões conflagradas em Porto Alegre, onde há um vácuo entre Estado e comunidade”

Por
Sul 21
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Sidinei Brzuska: "A situação está ruim. Estamos sem capacidade de investimento nas polícias e nas estruturas de segurança, e sem capacidade de diálogo também". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Sidinei Brzuska: “A situação está ruim. Estamos sem capacidade de investimento nas polícias e nas estruturas de segurança, e sem capacidade de diálogo também”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Marco Weissheimer

Nos últimos meses, Porto Alegre viveu alguns crimes que não faziam parte do cotidiano da cidade, mesmo no noticiário policial. Execuções à luz do dia no centro da cidade, mortes com decapitações, crianças e jovens mortos com tiros de fuzil e rajadas de metralhadoras. Problema estrutural no país, a crise na segurança pública em Porto Alegre e na Região Metropolitana, em especial, agravou-se com a decisão do governo do Estado de cortar o pagamento de horas extras e diárias dos policias, de congelar as nomeações de novos servidores, entre outros cortes no setor. Junto com o enfraquecimento da capacidade do Estado atuar na área, a capital gaúcha vem sendo palco de uma série de assassinatos motivados por uma disputa de territórios entre diferentes facções do tráfico de drogas.

“A coisa está bem ruim”, resume o juiz Sidinei José Brzuska, da 2ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, responsável pelo Juizado do Presídio Central. Cruzeiro, Rubem Berta, Vila Jardim, Bom Jesus, Farrapos e Nazaré são algumas das áreas conflagradas hoje, que sofrem os efeitos da disputa de territórios pelo tráfico e da ausência da capacidade de interlocução do Estado. Trabalhando há 18 anos no sistema prisional do Rio Grande do Sul, Brzuska analisa, em entrevista ao Sul21, o aumento da violência na capital e aponta alguns dos principais fatores que alimentam esse fenômeno. Além da disputa por territórios entre diferentes grupos do tráfico, o juiz aponta a banalização da violência, a ausência de investimentos na segurança e a perda da capacidade de diálogo e de interlocução por parte do Estado com as comunidades afetadas pela violência.

“O que existe hoje é uma cobrança das comunidades em relação ao Estado, que não consegue responder a essa cobrança, porque não tem efetivo, não tem dinheiro, não tem recursos”, diz o juiz que defende a implementação de um trabalho de justiça restaurativa junto às comunidades afetadas pela violência.

Sul21: Está havendo um aumento da violência em Porto Alegre motivada pelo acirramento das disputas entre grupos de tráfico de drogas?

Sidinei Brzuska: Essa é uma sensação muito forte que traduz uma realidade. De fato, nós vivemos, de uns tempos para cá, um acirramento dessa violência. Há vários fatos envolvidos aí. Não é algo que começou agora. Não faz muito tempo, houve uma execução dentro de um ônibus do transporte coletivo de Porto Alegre (na Avenida Farrapos). Tivemos também execução dentro de um hospital, tentativa de resgate e de execução dentro de outro hospital. Moradores de algumas comunidades gravaram áudios de disparos de tiros de fuzil e de rajadas de metralhadora. Isso vem ocorrendo há certo tempo, de um modo crescente.

"Tivemos o caso daquela criança que foi morta com um tiro de fuzil aqui na Cruzeiro. Na minha memória, foi a primeira criança que morreu com um tiro de fuzil no Estado do Rio Grande do Sul". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“Tivemos o caso daquela criança que foi morta com um tiro de fuzil aqui na Cruzeiro. Na minha memória, foi a primeira criança que morreu com um tiro de fuzil no Estado do Rio Grande do Sul”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Muita gente acaba morrendo e vira uma cifra que, em determinados momentos, ganha maior visibilidade. Tivemos o caso daquela criança que foi morta com um tiro de fuzil aqui na Cruzeiro. Na minha memória, foi a primeira criança que morreu com um tiro de fuzil no Estado do Rio Grande do Sul. Não tenho lembrança de outro caso. Tivemos mais recentemente outro episódio em que deram uma rajada de tiros numa rua e acabaram matando uma criança. Há o caso ainda de um jovem que teve a cabeça cortada e fotografa ao lado de um monte de armas. Todos esses casos são sinais exteriores dessa violência que vem acontecendo.

Sul21: O que está por trás desses episódios mais recentes de violência?

Sidinei Brzuska: Por trás dessa violência, existe uma disputa por territórios. O tráfico é uma atividade ilegal e a lei brasileira pune quem trafica. Nós prendemos os traficantes. Mas como há consumo e a demanda por drogas não acaba, alguém acaba assumindo o lugar da pessoa que foi presa. Para alguém estabelecer um ponto de venda de drogas e manter esse ponto, como se trata de uma atividade ilegal, essa pessoa faz isso por meio da violência. Neste enfrentamento, tem se usado muitas pessoas jovens, bem jovens, que são mais impulsivos. A violência praticada por esses jovens é mais aguda.

Um dia destes, eu conversei com um preso, um traficante antigo aqui de Porto Alegre. Perguntei para ele, entre outras coisas, o que estava havendo na Cruzeiro. Ele me respondeu: – Doutor, que o que está acontecendo na Cruzeiro é que, quem botava ordem lá, ou morreu ou foi preso e que a gurizada não tem quem os coordene e estão se matando adoidado.

Veja como é complexa essa situação da violência e do tráfico. O Estado, quando vai lá e prende o traficante, acaba retirando um controle do local. Aí surge uma disputa para ver quem é que passará a deter aquele controle. Até que isso se resolva, muitas pessoas morrem. Há cerca de três anos houve uma quebra de comando no tráfico da Conceição. Quando isso aconteceu, 43 presos foram para o portão do Presídio Central. Esses 43 presos eram de uma única galeria e pediram para sair dela. Há um pacto dentro do Central estabelecendo que não se pode matar ali dentro. Na sequência dessa quebra de comando na Conceição, ocorreram muitas mortes ali e nos arredores.

Nesta mesma cadeira em que você está sentado agora, esteve uma senhora que veio me pedir para acabar com as mortes na Conceição. Eu perguntei o que ela queria que eu fizesse. Ela me respondeu: – Eu quero que o senhor coloque fulano, fulano e fulano na mesma cela, porque aí eles vão conversar, vão acertar os territórios e vão parar os homicídios. Evidentemente que eu não fiz isso. Essa é uma situação difícil para o juiz de execução. Se aceitasse um pedido como esse, estaria ajudando a organizar o tráfico. Mas o tráfico acabou se reorganizando ali do seu jeito. Morreram várias pessoas, os territórios foram divididos entre três e hoje a Conceição está calma.

No final do ano passado, um preso importante de um grupo criminoso, que estava há um ano usando tornozeleira eletrônica, se apresentou para mim pedindo para voltar para o regime fechado. Ele voltou para o fechado. Outro preso, do mesmo grupo, estava no regime semiaberto, foragiu e antes de qualquer decisão sobre a regressão ou não de regime, veio a mim e disse que queria permanecer no regime fechado. Então, tivemos duas pessoas importantes deste grupo que pediram para ficar no regime fechado e estão no fechado. Uma terceira pessoa deste mesmo grupo pediu para sair. Ao sair, foi morta com um tiro na cabeça.

"Quando a cadeia fica tensa, na rua as coisas estão ruins. Essa tensão dentro da prisão é consequência desse acirramento da violência na rua". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“Quando a cadeia fica tensa, na rua as coisas estão ruins. Essa tensão dentro da prisão é consequência desse acirramento da violência na rua”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Sul21: Pediram para voltar para o fechado para não morrer…

Sidinei Brzuska: Essa é uma conclusão tua. Tens que ver que, nesta questão do tráfico, os territórios têm que ser mantidos fora e dentro do presídio. Se você pegar as pessoas que forem presas hoje na Cruzeiro do Sul, cada uma delas vai querer ir para um lugar dentro do Presídio Central. Isso significa que não há um comando central lá. Se pegarmos outras regiões, os presos vão todos para a mesma galeria.

Sul21: A Cruzeiro é o principal ponto de conflito hoje?

Sidinei Brzuska: Não, há outros, no Rubem Berta, Vila Jardim, Bom Jesus, Farrapos, Nazaré. Eu falo isso pelo reflexo que vejo de dentro da cadeia. Não sou polícia e não tenho função de polícia, apenas observo os movimentos que ocorrem dentro da prisão. As pessoas destas regiões que são presas estão entrando em várias galerias ou pedindo transferência de uma galeria para outra. Isso é um sinal que as coisas não estão bem. Quando a cadeia fica tensa, na rua as coisas estão ruins. Essa tensão dentro da prisão é consequência desse acirramento da violência na rua. Esse negócio de preso pedir para ficar no fechado, ou é o que você disse (medo de morrer) ou é para segurar o território dentro do presídio, porque se ele perde esse território dentro, perde fora também.

Essa é a situação bem complexa que estamos observando. Nesta disputa, muitas pessoas que dela não fazem parte acabam sofrendo as consequências e morrendo como vítimas dessa violência. É o caso da menina atingida por um tiro de fuzil, do menino atingido por uma rajada de metralhadora ou da professora de Canoas, morta perto do albergue.

Sul21: Houve alguma morte dentro do Presídio Central, relacionada com essas disputas de territórios, como chegou a ser noticiado na imprensa de Porto Alegre?

Sidinei Brzuska: Não, o que ocorreu foi com alguém que saiu do Central, mas foi morto na rua. Pelo que observamos dentro da cadeia, essa situação hoje na Vila Jardim e na Bom Jesus é consequência de várias outras mortes que vêm acontecendo na rua e que desencadeiam atos de vingança. Isso é o que se observa a partir da movimentação interna na prisão.

Sul21: Há quem defina a atual situação como um conflito entre os grupos Bala na Cara e os Manos. É isso mesmo?

Sidinei Brzuska: Isso não existe. Não vislumbro essa disputa entre Manos e Balas. Dentro do Central, os Manos estão quietos. Tem semiaberto em Charqueadas, onde a metade é Manos e a metade é Bala. Se houvesse uma guerra entre eles ia aparecer lá. O que há é uma disputa do pessoal dos Abertos e da Farrapos com os Bala.

Sul21: Quem são os Abertos?

Sidinei Brzuska: Quando foram gestadas as facções no Central, havia os Manos e os Brasa. Houve um grupo que não quis ficar com nenhum deles, dando origem aos Abertos. Havia uma família ligada a este grupo que cumpria pena em uma galeria do Central e que acabou dizimada. Vários deles foram mortos. Pelo que ouvi, parece que os remanescentes dessa família uniram-se com outros para fazer uma vingança. Um deles foi executado no hospital. A minha função, repito, não é investigar essas situações. Como eu sou responsável por muitas transferência de presos, preciso ficar atento a isso para saber onde estou colocando esses presos.

Eu tenho uma ideia que venho gestando e sobre a qual tenho conversado com algumas pessoas para tentar diminuir um pouco essa violência. A ideia é tentar replicar na rua o que já estamos fazendo dentro do presídio: estabelecer um canal de diálogo, ensinar as pessoas a conversar um pouco e que é possível chegar a um objetivo sem ser pela morte de alguém. Dentro do sistema prisional nós passamos a verificar as mortes, uma a uma, em 2009, não com uma proposta de punição ou repressão, o que compete à Polícia Civil e ao Ministério Público, mas sim com o objetivo da prevenção. A ideia foi tentar evitar que outra pessoa morresse no mesmo lugar, pelas mesmas razões. Nós fizemos esse trabalho. Em 2009, quando começou esse trabalho, 86 pessoas morreram dentro de nossas casas prisionais, em Porto Alegre e na Região Metropolitana. Em 2015, esse número caiu para 16. Tivemos uma redução na casa dos 80% de mortes dentro da cadeia. Então, se foi possível reduzir mortes dentro do sistema, talvez dê para reduzir fora também. Esse trabalho ainda não começou, mas eu gostaria que ele começasse. É um trabalho de prevenção e não de repressão.

Sul21: Esse trabalho envolveria Polícia, Ministério Público, comunidades…?

Sidinei Brzuska: Envolveria agentes, autores da violência, e vítimas das comunidades afetadas.

Sul21: Um trabalho de justiça restaurativa…

"Há espaço para fazer esse trabalho de prevenção e temos a ideia de colocá-lo em prática nas comunidades". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“Há espaço para fazer esse trabalho de prevenção e temos a ideia de colocá-lo em prática nas comunidades”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Sidinei Brzuska: Isso. Nós fizemos isso dentro do Central e seguimos fazendo, embora sem muita estrutura. Esse tipo de trabalho demanda bastante serviço. A ideia é fazer esse trabalho de justiça restaurativa com as comunidades afetadas pela violência. Como isso funcionaria? Vamos considerar, por hipótese, que está ocorrendo uma mortandade na Restinga. Nós pesquisaríamos onde estão as pessoas dentro do sistema prisional que são desta comunidade. Colocaríamos eles dentro de uma sala e deixaríamos ele conversando um pouco. Depois ouviríamos o que a comunidade que sofre essa violência tem a dizer, deixando que conversassem um pouco entre eles. Em um terceiro momento, faríamos um grande círculo entre comunidades e presos, deixando que conversassem. Nada disso impede punição de crime ou repressão. É um trabalho de prevenção para evitar outras pessoas morram no mesmo lugar e pela mesma razão. Acredito que esse é um caminho interessante.

O que existe hoje é uma cobrança das comunidades em relação ao Estado, que não consegue responder a essa cobrança, porque não tem efetivo, não tem dinheiro, não tem recursos. Ao mesmo tempo, o Estado não dialoga, nem com quem agride, nem com quem é agredido. Há espaço para fazer esse trabalho de prevenção e temos a ideia de colocá-lo em prática nas comunidades.

Sul21: Como é que você definiria essa situação de violência que Porto Alegre está vivendo hoje?

Sidinei Brzuska: Estamos vivendo um processo de banalização da violência. Escrevi rapidamente sobre isso há alguns dias. Há uma sensação muito grande nas pessoas de impunidade e de justiçamento pelas próprias mãos, pela força, etc. Boa parte das pessoas não faz isso, mas pensa e simpatiza com a ideia de que, se ela for lá e matar o sujeito, resolve o problema dela. E há quem acabe fazendo isso que as pessoas gostariam que se fizesse. Mata-se por pouca coisa hoje, por muito pouca coisa. Qualquer coisa é suficiente para se matar alguém. Há uma perda de valores e de referência muito grande, uma perda de sensibilidade, de não sentir o sofrimento do outro. Isso eu percebo bastante.

A situação está ruim. Estamos sem capacidade de investimento nas polícias e nas estruturas de segurança, e sem capacidade de diálogo também. Nós não dialogamos. Eu tenho a convicção de que, se nós dialogássemos mais, se conversássemos mais, diminuiríamos um tanto dessa violência. Não tudo, mas seria possível evitar muita coisa. Nós perdemos a capacidade de diálogo e estamos sem interlocução. Há um vácuo entre Estado, autoridades e comunidade. Nós só sabemos resolver as coisas pela repressão e estamos sem capacidade de reprimir, porque não tem viatura, não tem presídio, não tem salário, não tem hora extra. Nós perdemos a capacidade de diálogo porque somos ignorantes e ninguém quer fazer essa interlocução que poderia ser feita, por exemplo, pela Câmara de Vereadores. Temos vereadores de praticamente todas as regiões da cidade. Há várias regiões conflagradas hoje em Porto Alegre, onde não há nenhum diálogo. Esse diálogo poderia começar, por exemplo, pela questão da saúde, que é o que todo mundo precisa. Nós não estamos conseguindo conversar mais com as pessoas.


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